Nas trilhas do Guapituba

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Ele passa despercebido pra quem se dirige a Paranapiacaba, embora se situe a menos de 2kms do centro de Mauá, região do Grande ABC (SP). É o tranquilo Jardim Guapituba, loteamento que se expandiu com a passagem da São Paulo Railway. Mas a desatenção fica mais patente qdo se sabe que no pacato bairro tem uma unidade de conservação bem do lado da estação, que toma emprestado até o nome do bairro. É o “Parque Natural Guapituba”, uma incrível, charmosa e desconhecida área de preservação criada em 1996 bem pertinho do centro, mas longe da agitação. Aproveitando menos de meio período fui lá bisbilhotar suas rústicas veredas que, acreditem, dão impressão de se estar no miolo natureba da ilustre “vila inglesa”.

Nas trocentas ocasiões que fui pra Paranapiacaba de trem, uma enorme área verde chamava minha atenção qdo a composição da linha turquesa da CPTM passava entre Mauá e Ribeirão Pires. Bem na frente da Estação Guapituba e pouco antes dum impressionante recorte de um morro que permite a passagem do trem, que só recentemente soube se tratar de uma unidade de conservação. Pesquisando sobre o lugar, imediatamente a curiosidade bateu e resolvi meter as caras num domingo bonito de sol, sem nada oficialmente programado. E lá fui eu então praquele lugar situado apenas duas estações antes de Rio Grande da Serra.
Não tem erro e muito menos desculpa. O parque está bem do lado da Estação Guapituba, bastando cruzar a Av. Capitão João pra aceder a entrada, aliás, a única forma de acesso é essa. Uma guarita ao lado do letreiro do lugar saúdam de cara o visitante. Uma larga passarela de paralelepípedos me convida a seguir em frente, mas opto por tomar a via, mais rústica, que nasce pela direita. É a “Alameda Melaleuca” e recebe este nome devido á presença logo no inicio dos curiosos e pitorescos exemplares desta árvore (a tal Melaleuca) oriunda da Oceania. Se chegar perto dela e sentir a textura do tronco perceberá que a mesma parece seda compacta, tanto que os locais a chamam de “Árvore-Papel”. Na hora havia alguns orientais “reenergizando” nela, sinal de suas propriedades esotéricas.
Tocando pela tal alameda já é possível sentir a exuberância da mata ao redor assim como o frescor da sombra proporcionada pela frondosa vegetação, composta basicamente por um sub-bosque de Mata Atlântica. Com boa infra, imediatamente topei com um rústico playground, sanitários e uma casa que serve como Centro de Educação Ambiental e biblioteca. Dali parte outra minúscula vereda de trajeto circular chamada de “Trilha do Arboreto”, da qual não consegui completar sequer metade pois estava abandonada ao descaso e coberta de mato. Uma pena.
Voltei à alameda principal que passa a se chamar “Alameda das Palmeiras” tocando pro miolo do parque, mas um simpático laguinho e picadas mais rusticas no meio da vegetação, a esquerda, novamente me desviam da rota principal. Situado numa baixada de vale, o “Lago das Flores” reluz ao sol daquele início de manhã e me convida a prosseguir no sentido de sua nascente. Ali me deparo com as veredas calçadas do fantástico “Jardim de Pedra”, um emaranhado de escadas e caminhos talhados na rocha que acompanha ambas encostas daquele rústico vale. Dizem que isso foi construído com as antigas rochas extraídas da pedreira que ali outrora existiu, num projeto paisagístico inspirado nos bosques europeus.
O musgo e o limo conferem um charme especial ao “Jardim de Pedra”, mas é bom estar atento pra não derrapar de liso que as vezes ficam. Este lugar é fantástico e a luz matinal filtrada pelo frondoso arvoredo – cujo tronco é abraçado por emaranhado de lindas trepadeiras – dá ao jardim um ar que vai do místico ao onírico. O detalhe desta baixada de vale é a presença de muitos aguapés na água. Detalhe: o nome “Guapituba” em tupi significa “abundância de aguapés”.
Dali me encaminhei por vereda nascendo pela esquerda, uma tal de “Trilha das Araucárias” que praticamente serpenteia em nível o limite sul da unidade de conservação e desemboca no casarão que hoje serve de administração do parque. Dali nascem duas veredas: a “Trilha dos Tapiás”, um breve vereda calçada cercada de cipós, mata espessa e cerrada que logo desemboca num estacionamento; e a “Alameda das Bromélias”, um caminho que vai de encontro a via principal, sim, aquela que larguei em duas ocasiões, a “Alameda das Palmeiras”, espinha dorsal do lugar. Mas minha atenção é desviada pela presença de outra vereda que, meio escondida deliberadamente, a “Trilha da Samambáia”, abre meus olhinhos de forma impar. Uma corrente barrando acesso junto duma placa avisando que a entrada dali em diante se dá apenas com “gente autorizada pra visita monitorada” bate o martelo que é por ali que devo me pirulitar.
Olho pra ambos lados e, sorrateiramente, salto a corrente e me pirulito mato adentro, abrindo o pouco de vegetação no peito que aparenta cobrir este início da vereda. Mas após passar pelas ruinas de uma velha construção a picada limpa e o trânsito se dá de forma razoável, mas nada do outro mundo. Percebo que vou ganhando altitude de forma imperceptível na medida em que avanço, cruzando túneis de vegetação e alguns gigantes da floresta. Jardins de maria-sem-vergonha pincelam a ascensão, assim como voçorocas de arbustos que me enchem de carrapichos grudados na blusa. Mas logo alcanço o que parece ser a cumieira dos morros que cercam o parque, pois a vereda me deixa bem na base duma torre de alta tensão. Com algum esforço, pelas frestas da mata vejo a horizontalidade de Guapituba e até as represas do entorno.
A continuidade da vereda é achada na sequência, mergulhando novamente mata adentro ainda palmilhando a cumieira daquele minúsculo serrote tão urbano como doméstico. Embora o silêncio seja rei absoluto do rolê, eventualmente quebrado por uma ou outra buzina ao longe. O avanço é tranquilo e a picada está relativamente limpa, apesar que vez ou outra algum mato ou tronco no meio do caminho me desviam da rota. O pouco uso da vereda é corroborado pela presença abundante de trocentas teias de aranha no caminho, que me obrigam a fazer uso de um pedaço de madeira afim de “abrir caminho” a minha frente. Não fui com bússola desta vez, mas percebi sem muita dificuldade que a rota me levava sempre pro extremo oeste do parque. No caminho, orquídeas, bromélias, samambaias-açu e muitas flores pontilham a margem da simpática via.
Mas não tardou pra rota mudar de curso, pois reparei que meu trajeto descrevia lentamente uma curvatura como que voltando pra leste. Noutras, uma “ferradura”! Simultaneamente o caminho perdia altitude suavemente, ainda serpenteando as encostas da morraria que palmilhava. No trajeto, mais mata tombada no caminho, algumas discretas ramificações que ignorei e um belo portal de pedras coroaram este final de percurso neste miolo “selvagem” do parque. Selvagem pois no curto tempode trilha me deparei com um jacú, um tucano, um elétrico lagarto, rastros deixados por um gambá e até uma minúscula coralzinha, que fugiu assustada da margem desta picada. E assim prossegue a pernada, sem nenhuma parada. Até pq qq pit-stop é motivo pra centenas de sanguessugas alados virem se fartar com lanche fresco!
E assim, conforme previsto, após quase 3km de pernada desemboco na “Trilha do Saruê”, quase a margem do “Lago do Encontro”, outro belo lago situado na baixada noroeste do parque. A “Trilha do Saruê” é uma vereda de trajeto circular de menos de 1km que percorre as encostas do vale em questão. Larga, bem batida, cercada de muita mata e com pouco desnível, é a preferida pra caminhada pelos visitantes. Em tempo, “saruê” significa lagarto ou teiú. No decorrer desta vereda há outras vias menores das quais não vi vestígio, a “Trilha das Nascentes e “Da Pedreira”, provavelmente tiveram mesmo destino que a do “Arboreto”.
Dali não me restou opção senão retornar pela espinha dorsal do lugar, a tal “Alameda das Palmeiras”. Na sequência passei pela entrada das veredas anteriores e por um curioso setor chamado “Pergolado”, uma bonita armação de madeira que sugere ali ter havido cultivo de parreiras, onde havia um grupo praticando tai-chi. Dali fui descansar próximo da entrada, afim de conversar com o senhor que lá tomava conta na guarita. Ali percebi que o parque tem formato de machado, onde a parte permitida de acesso aos visitantes correspondia a apenas 1/3 do que seria a “lâmina” do mesmo. Já a “Trilha da Samambaia” percorria pouco mais de 2/3 dela. Quem sabe as ramificações que ignorei mergulhassem no setor referente ao “cabo” do tal machado. Bem, fica pra próxima.
Na guarita conheci o Claudio, que com mais outras duas pessoas (uma moça e um segurança) tomavam conta dum lugar de cerca de 580 mil metros quadrados, que me contou particularidades interessantes da reserva. Comentou que a área do parque foi outrora a chácara de veraneio de um alemão, Alfredo Klinkert, que embora morasse em Santos passava os finais de semana ali devido ao clima mais ameno, na década de 40. Fez diversas obras e introduziu algumas espécies á mata nativa do lugar. Relatou que seus filhos não prosperaram como o pai e, endividados, cederam a área pra prefeitura que a transformou em reserva natural. Dai vem o nome oficial da mesma, que é “Parque Ecológico Alfredo Klinkert Jr”. Quando perguntei da mata ele foi incisivo: “Boa parte da mata original serviu pra alimentar as máquinas a vapor da E.F. Santos Jundiaí! O que agora tem é mata secundária que se desenvolveu desde o século passado, mas que ainda guarda espécies nativas e exóticas que coexistem com palmeiras, eucaliptos, pinheiros e araucárias!”.  Quando indaguei da segurança foi enfático: “Aqui é tão calmo como era antes! Os boatos de assalto não procedem pois geralmente são aqui do lado, no Jd América, mas o pessoal já coloca o parque no meio, alimentando a má-fama!”.
Falador e muito prestativo, fiquei um tempão conversando como simpático senhor, que não esconde o orgulho que sente do parque, mas lamenta que a população do bairro sequer conheça o lugar, visitado por pouca gente. “Por conta disso a prefeitura esquece de dar mais apoio e recursos pra manter aqui!”, emenda, deixando subentendido que faz das tripas coração pra tocar o lugar com apenas mais dois funcionários. Como sou gde adepto de lendas e causos pitorescos, perguntei se o parque guardava algo do gênero. “Olha, dizem os mais antigos que durante a Segunda Guerra alguns nazistas vieram pra cá, e que seu Alfredo explorou o trabalho braçal deles na construção do `Jardim de Pedra`…”, contou meio desconfiado.
Me despedi do simpático senhor cerca de 3 horas após ter ali pisado. “Volte sempre!”, acena Claudio. “Sem dúvida!”, pensei comigo mesmo diante das dicas de rolês naturebas que aquele bravo guardião do parque me indicou pelos arredores de Guapituba. Dali não me restou opção senão procurar um mercadinho afim de garantir meu “néctar de cevada”, de modo a voltar a viagem de trem molhando a goela a contento. Lembrar que este breve e descontraído rolê dispensou mochila de qualquer espécie, pois se resumiu a um singelo “passeio no parque” numa área urbana. Sim, mas um passeio num parque tão rústico, charmoso e encantador, diga-se de passagem. Afinal, o “Parque Natural de Guapituba” não apenas compõe a paisagem do bairro. É uma área de preservação ambiental não apenas importante pra Mauá, mas pra toda região do estado de São Paulo pela sua riqueza e, claro, sua história. Seu Alfredo Klinkert ficaria orgulhoso disso.
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Sobre o autor

Jorge Soto é mochileiro, trilheiro e montanhista desde 1993. Natural de Santiago, Chile, reside atualmente em São Paulo. Designer e ilustrador por profissão, ele adora trilhar por lugares inusitados bem próximos da urbe e disponibilizar as informações á comunidade outdoor.

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