No Rastro de William Michaud

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Findas as festas do natal de 2013, os amigos seguem para os Andes escalar o Licancabur e o Llullaillaco na distante fronteira Argentino-Chilena sem mim que desta vez escolhi a direção oposta influenciado, pouco é verdade, pelas pressões familiares.

– Se passar mais este fim de ano longe de casa nem precisa voltar!

Nosso destino seria a ilha de Superagui na extremidade norte da baia de Paranaguá onde se construiu o mito de William Michaud, imigrante suíço que ali se fixou na metade do século dezenove depois de algumas andanças pelo Rio de Janeiro até o sertão de Goiás. Para saber do Michaud histórico basta fuçar o acervo das bibliotecas, mas da lenda é necessário falar com os caiçaras, beber muita cachaça com catáia e mergulhar nos canais e matas desta ilha artificial.

Conhecida desde os tempos remotos do descobrimento e da povoação de Cananéia, de onde os desbravadores partiam pelos canais interiores, percorrendo rios de maré até cruzar uma faixa de areia pantanosa com os barcos puxados por braços e cordas para chegar aos confins da baia dos Pinheiros e de lá alcançar Paranaguá sem se expor aos perigos do mar aberto. Situação que perdurou até o fim da segunda guerra quando se cavou um canal pelo Varadouro e de península, Superagui passou a ilha.

Dali nos vem notícias de uma próspera fazenda dos padres Jesuítas, da cidade fantasma de Ararapira, das narrativas de Hans Staden que também passou alguns perrengues na região e de William Michaud, imigrado, agricultor, professor e empresário que passou a história principalmente pelo talento artístico. Exímio desenhista, aquarelista e pintor, registrou em tela os costumes locais e sua paixão pela paisagem de mata atlântica que desde sempre nos surpreende e encanta.

De Florianópolis trouxe, no teto de uma Palio Adventure, o kaiak de madeira fabricado por um artesão gaúcho com especialização em construção naval e marcenaria na Itália de onde também vieram os projetos. Depois de usá-lo por dez anos navegando por entre as ilhotas e enseadas da extremidade sul da ilha da magia estava precisando urgentemente de uma parada técnica para manutenção. Foram-se seis meses dominando a preguiça e outros seis no projeto domingueiro para fins de semana chuvosos. Desmontando, lixando e envernizando, três demãos de verniz marítimo com tempo preciso entre elas, trocado todo o cordame do leme, substituindo cintas desgastadas, parafusos e arruelas corroídas pelo zinabre marinho. Depois a equipagem; novos remos de alto desempenho, coletes salva-vidas certificados, presilhas de silicone, anorakes marítimos, sapatilhas de neoprene e bags impermeáveis de todo tamanho para conter todo tipo de bugigangas.

O objetivo maior de toda esta trabalheira ainda esta por vir, mas isto é outra história e no dia seguinte ao natal já estava ele novamente no teto de outra Palio Adventure a caminho de Paranaguá para o teste na água. Deslizamos pela Estrada da Graciosa descendo a serra até a BR 277 com o cuidado de evitar os postos da polícia rodoviária, passando pelo último ao meio dia na hora do rango. Encontramos o Moisés com a família nos esperando no cais do porto velho e descarregamos as tralhas na calçada para em seguida levar os carros até a casa do Ivon Cesar Sales, nosso velho camarada Índio Sexta Feira que deles se encarregou até nosso retorno.

No porto, de onde saem as barcas para Guaraqueçaba, Ilha do Mel, das Peças e Superagui, carregaram tudo no teto da barcaça e sentados na calçada, sob uma temperatura de 40º C. à sombra, esperamos a hora da partida a um passo da desidratação, bebendo qualquer coisa líquida que os ambulantes nos ofereciam em meio a montanhas de lixo espalhadas pelo entorno, mas como bom curitibano não se faz de rogado, separei uma sacola plástica onde concentrei o lixo de toda nossa turma. Ao terceiro toque do apito levantei para o embarque e quando procurei a sacola para depositá-la na lixeira, cadê? Já era, havia sido surrupiada de fininho na suposição que dentro dela poderia ter algo de valor.

A barca zarpou em direção a desembocadura do Rio Itiberê com todos os passageiros ordenadamente acomodados, mas nem mesmo o prédio da Capitania dos Portos havia desaparecido na retaguarda e já se instalava a tradicional e salutar desordem nacional. Gente pendurada no costado, fumando maconha no teto, circulando livremente no contra fluxo, bebendo cerveja e jogando as latinhas no mar. Tudo muito civilizado e cruzou-se o Canal da Galheta por entre gigantes graneleiros e porta containers esperando pacientemente para atracar, depois costeando as praias da Ilha do Mel até a base da marinha e a seguir encostando na Ilha das Peças na altura da fortaleza para se afastar dos arrecifes  e do velho cargueiro afundado no limiar do mar aberto.

No horizonte próximo se desenha a praia deserta e contornada a costa da Ilha de Peças surge a entrada do canal de Superagui com suas águas escurecidas pela matéria orgânica que transporta de nossas matas e serras. A barca, ainda distante, anuncia sua chegada com um longo apito que sacode a paz do vilarejo. Da praia um exercito de formiguinhas se movimenta para o trapiche. Turistas, caiçaras, cachorros e carroças disputam espaço na ânsia de encontrar algum conhecido, a namorada, um resto de sanduíche ou faturar um frete até uma pousada ou camping. Três infinitas horas a separam da civilização de terra firme e aqui, prestativos, todos cooperam gratuitamente com os estranhos recém chegados e rapidamente a carga toda se desloca do barco para descansar na areia.

Os cavalos magros e raquíticos pela pobreza dos pastos usam fraldas, mas nem por isto a praia está isenta de seus dejetos que se unem aos deixados pelos cachorros, aos restos de pescado e as cabeças de camarão. Nada que a maré alta, depois de um dia escaldante e perfumado, não varra para a mãe de todas as águas ao cair da noite. Todo quintal tem uma rústica pousada, um restaurante, um boteco e um camping.

Montamos acampamento numa elevação do terreno, a sombra de uma árvore, e depois de desligar os telefones celulares e jogá-los no fundo da barraca já estávamos à vontade para explorar a freguesia e conversar com os nativos. Por sorte descobrimos na dona do botequim uma legítima descendente de William Michaud nascida em Barbados e criada junto à capela. Juliana se disse tetraneta, depois no correr dos dias descobrimos outros, e muitos mais. Por fim concluímos que todos os caiçaras tinham suas raízes ancestrais e laços estreitos de parentesco com o velho suíço, assim como na encarnação passada foram invariavelmente Alexandre, Julio Cesar ou Cleópatra.

Seguiu-se dois dias de absoluto ócio e preguiça consumindo montanhas de pastel de camarão, sonho com doce-de-leite e prato feito, os PFs, contendo invariavelmente feijão, arroz, salada de tomate ou cenoura, peixe ou camarão pelos botequins da ilha onde encontrei uma tela pintada pelo Nelson (Farofa) Penteado, mas toda esta moleza também enjoa e na manhã do terceiro dia tratamos de nos lançar ao mar já nas primeiras horas, finalmente no rastro de William Michaud.

Colocamos o kaiak na água para aproveitar a maré enchendo e de cara o primeiro problema; uma das saias não se fixava e o jeito foi abandonar as duas o que transformou o kaiak numa simples canoa modificada. Afundamos as pás de remo com gosto por entre dezenas de barcos ancorados ao longo do canal. O Moisés com suas pernas curtas sofrendo para manobrar o leme e evitar os contínuos zig-zags que uma direção frouxa provoca. Após ultrapassar as ruínas do velho trapiche avançamos muito próximo da margem já nos aproximando do início do mangue onde duas mulheres se entretêm com os caranguejos. Por educação cumprimentei a mais próxima que nos olhava com curiosidade quando a outra, enciumada, marcou território largando um beijo de língua na primeira. Então tá, descobriu que nossa curiosidade pelo mangue era maior.

Enfim o horizonte estava preenchido apenas por água, mato e montanhas distantes. Desperdiçamos a força da maré para seguir junto ao mangue e apreciar toda a exuberância deste; árvores retorcidas, raízes aéreas, aves peraltas e caranguejos vermelhos. Silenciosamente deslizávamos pela água sem assustar nenhum animal e vez por outra saltava algum peixe ao nosso lado. Depois de uma curva surge um muro caiado de branco sobre um barranco de piçarra e nos encontramos face a face com William Michaud enterrado aqui desde 1902.

Contam que naufragou nesta região e se apaixonou por uma caiçara, depois por outra no lado oposto da baía de Pinheiros e viveu com as duas, separadas pelo canal, produzindo filhos em série. Pela extensa e autodenominada descendência nem se duvidaria disso, mas é fato que estava desempregado no Rio de Janeiro quando foi convencido pelo cônsul suíço na capital do império a se integrar no projeto de colonização juntamente com outros patrícios seus e algumas famílias francesas. Dois anos depois de estabelecido em seu lote realmente casou com uma caiçara, Custódia Amerigo e juntos tiveram nove filhos. Sua correspondência com as irmãs na Suíça comprova sua dedicação a esposa e a profunda depressão em que mergulhou com seu falecimento até sua própria morte seis anos mais tarde.

Adentramos no velho cemitério de San Martim perseguidos pelas butucas ávidas por um almoço grátis. Um pequeno quadrilátero com menos de trinta metros de lado espremido entre a floresta e o mar. Dois ou três túmulos em ruínas, algumas antigas covas cobertas simplesmente por pedras soltas, e outras tantas apenas covas rasas cavadas na areia e marcadas com uma tosca cruz de madeira, tudo coberto de erva daninha. Impossível identificar precisamente a última morada dos Michaud, mas também são bem poucas as possibilidades de erro.

Colocamos força nos remos para fugir ao impiedoso ataque das butucas e muitas devem ter se afogado seguindo mar adentro em nosso encalço. Faltou uma haste de capim para o Moisés mostrar quem manda no pedaço e aterrorizar toda esta geração de insetos, mas isto só vendo para crer. Muitas horas e braçadas a frente adentramos numa profunda enseada cercada por morros revestidos de mata densa e aos poucos foram se mostrando algumas casas no entorno de uma antiga capelinha colonial.

Dois cachorros soam o alarme e quando aportamos o bico do kaiak em terra trataram logo de sumir da vista enquanto as galinhas se refugiavam debaixo da primeira casa. Seguimos para visitar a pequena e isolada capela, tosca construção de duas águas com esquadrias de tábuas rústicas. No interior apenas um altar simples e quatro bancos decrépitos, duas pobres imagens de gesso pintado; Nossa Senhora com o Menino na parede e o Menino Deus num berço de vime com uma toalhinha rasgada de crochê sobre a mesa. Tudo denunciando muito tempo de abandono. Ninguém a vista e continuamos a exploração do entorno; outra casa, alguns telheiros já desmoronando, esqueletos de antigas canoas, aves exóticas nos mangues próximos e um lagarto que faria correr qualquer jacaré.

É notória a decadência da igreja católica e suas tradições nestes rincões pobres e atrasados prontamente substituída pelos zelosos empreendedores que rapidamente ganham espaço com suas franchising da fé evangélica. No Pontal da Ilha vi três delas contra nenhuma de Roma, em Barbados havia duas franqueadas para uma romana e em Bertioga só encontramos os templos do “bispo”. Vender um deus que retribui na terra os donativos em dinheiro é bem mais fácil, e lucrativo, do que vender aquele que nos premia apenas depois de morto. Certa vez um delegado de polícia me confidenciou que tem vontade de mandar prender também a vítima denunciante do “conto do vigário” porque é necessário ser tão ou mais desonesta que o vigarista para cair neste golpe. Junto com o catolicismo agregador e permissivo desaparecem também as tradicionais festas dos santos padroeiros que atraíam gente das comunidades distantes a se hospedarem em casas de amigos, parentes e até desconhecidos. Paulatinamente morre o fandango e as paróquias se fecham como ostras diante de tantas proibições de cunho religioso decretados pelo fanático da vez.

Atrás da capela apareceram algumas ruínas e os pisos de uma casa demolida recentemente onde ainda se viam muitos vasos e orquídeas fixadas em tocos e troncos. Depois, no camping perguntamos a caiçara que aqui viveu a infância, qual delas era a sua. Melancólica e demonstrando visível tristeza respondeu que eles (IAP) a demoliram assim que sua avó morrera. Bom saber que os pequenos ditadores do fundamentalismo ambientalista zelam com tanta presteza pelo patrimônio da humanidade a custa desta pobre gente indefesa. A sistemática expulsão dos caiçaras se faz necessária devido a seus próprios maus hábitos, afinal estavam lá desde o descobrimento e por pura incompetência nada destruíram.

Michaud, apesar de apolítico, também teve seus problemas com o Estado. Durante a revolução federalista foi, junto de toda a comunidade, extorquido pelos maragatos (oposição) e depois preso pelos pica-paus (situação) do Mal. Floriano e arrastado com os dois filhos para Paranaguá. Ao retornar encontrou a casa saqueada pelos soldados e a família escondida no mato. Novamente na miséria caiu em lenta depressão que se agravou um ano e meio depois com a morte da esposa e companheira de uma vida difícil de imigrante. Nem bem fora declarada a república já sentia saudades do velho imperador. Em política nada é ruim o bastante que não possa piorar e desconfio que muito em breve novamente nos certificaremos disto.

Com sol a pino e o estômago nas costas navegamos para contornar o morro que define a enseada quando apareceram muitas casas em linha do outro lado do canal. Se tem gente há comida e para lá apontamos a proa do barco mergulhando com força os remos na água. Chegamos a Bertioga e iniciamos a peregrinação de trapiche em trapiche a procura de um restaurante até que alguém declarou que teríamos que ir a Barbados.
– Onde?
– Ali em Barbados. Apontou com o dedo na direção em que viemos.

Do outro lado do canal, na encosta do morro oposta a capelinha. Praguejando os ensejos da má sorte tratamos de botar mais força nos remos enquanto o sol fritava nossa pele embebida em protetor solar. A fome roubou todo nosso bom humor e a distancia triplicou nosso infortúnio, mas finalmente desviamos de um veleiro fundeado defronte a vila e mergulhamos a proa na areia bem ao lado de três sujeitos entretidos em rebocar um barco inflável para terra. Nem nos desvencilhamos dos remos e dos coletes salva-vidas e um deles veio mais do que ligeiro babar em cima do kaiak. Era um negão forte e muito simpático que me crivou de perguntas sinceramente interessado pelo kaiak que a seguir se apresentou como o “prático” que estava conduzindo o veleiro pelo Varadouro para um casal de turistas paulistanos.

De primeira nos tornamos amigos de infância e rumamos para o restaurante enxugar umas cervejas enquanto procurava extrair dele o máximo de conhecimentos sobre os canais, maré, ventos e pontos de orientação para minhas futuras investidas pelo labirinto de canais, mangues e enseadas deste verdadeiro mar interior. Com o peixe e o camarão cheirando gostoso na cozinha e a cerveja bem gelada tudo ficou mais agradável e depois do estomago estufado já dava para novamente investir na vida do velho Michaud que devia ter morado aqui perto. O proprietário enfim indicou uma trilha que nos levaria até as barbas do suíço e realmente agora precisávamos de uma caminhada para assentar toda aquela comida dentro da pança antes de voltar ao mar.

Avançamos na trilha por entre as casinhas do povoado subindo a encosta em paralelo com o mar, cruzando quintais e botando os cachorros para correr. Desviando de imensos patacões através das passagens pelos vãos entre as pedras reencontramos o mangue, o centro comunitário e duas ultimas casinhas depois de uma pinguela. Nos apontaram um trilha adentrando o mato e estávamos na casa de William Michaud, na realidade no pouco que dela sobrou; um sócolo em ângulo coroado pelo que restou de um pilar de pedras assentadas com argamassa a moda antiga. Tudo coberto por árvores e trepadeiras e ainda seguimos adiante na procura de mais ruínas, mas nada mais havia para ser visto.

No tempo da colônia todas as encostas eram cultivadas como aparece numa gravura à grafite que William enviou enrolada dentro de um bambu para suas irmãs, onde ainda se destacam sua casa de dois andares e mais duas construções térreas. Em sua propriedade, como na dos demais colonos, plantavam café para exportação, parreiras para o vinho fabricado em sociedade com o vizinho alsaciano Sigwalt, mandioca, feijão, arroz e milho para consumo. Também criavam galinhas e porcos. Todos tinham sua própria fábrica de farinha que torravam para misturar com banha e certamente exploraram as madeiras nobres que carregavam em barcaças a vela com destino a Paranaguá. Possuía uma casa de comércio e uma olaria onde fabricava telhas e tijolos. A colônia foi muito próspera antes da invasão federalista e ainda completava a renda como professor da escola primária que por falta de lugar melhor funcionava dentro de sua própria casa além de juiz de paz e agente dos correios. Manteve longa e proveitosa amizade com o Visconde de Nacar e Alfredo Taunay que em visita a colônia se hospedaram em sua casa. A eles enviava gravuras e recebia livros, revistas, tintas, pincéis e papéis especiais para sua arte, assim como as irmãs também o abasteciam da distante Suíça. Na hora do aperto foram os descendentes do Visconde que o livraram da prisão, mas não das misérias que se seguiram.

Retornamos ao povoado um pouco decepcionados pelo pouco que sobrou desta obra toda e ainda seríamos atacados por um cachorro a meio caminho do atracadouro. O pobre cão fugiu assustado ao se deparar com minha simpatia e tratou de se refugiar entre as pernas do dono que com um último safanão terminou com a alegria do companheiro. Desconfio que o velho esperava nosso retorno para uma prosa e aproveitou da oportunidade para se apresentar. Antonio Lopes, proprietário do Restaurante Natura o mais antigo, e até o mês passado, o único de Barbados e que se diga de passagem já muito para aquele lugar.

Estávamos com sorte, o velhinho é uma simpatia, e nos convidou para ver seu museu particular; uma casa artesanal de farinha preservada desde os tempos da colônia. Na longa e agradável conversa que tivemos, recordou saudoso da infância e da juventude quando ralavam a mandioca, fabricavam canoas de um só pau e faziam muitas festas. Na sua simplicidade nos deu a receita do fim do mundo para aquelas comunidades ali assentadas desde o descobrimento.

Relata que poucas coisas precisavam ir buscar no continente e praticamente desconheciam o dinheiro, então apareceu o motor a gasolina e as distancias desapareceram e já em seguida veio o parque e os fiscais.
– Proibiram a pesca do “engodo” feita com a tarrafa, mais rápida para dar tempo de cuidar da roça. Proibiram a roçada e tudo tem que vir de Paranaguá em barco a motor a custo de dinheiro que muito poucos tinham.
– Antigamente não corria dinheiro por aqui – disse saudoso – era tudo mutirão. Os vizinhos vinham ajudar no plantio e na colheita e depois terminava em festa noite adentro, tinha namoro e fandango. O parque acabou com o “sapo” (mutirão) e não têm mais festas, o fandango está morrendo e os jovens vão embora para cidade, não tem mais namoro também.

As lamentações continuavam.
– Apesar da proibição continuam derrubando árvores para fazer canoas, mas agora escondido e ninguém mais chama os vizinhos para ajudar com medo de denúncia.

Lembrei do nazismo, comunismo e outros ismos semelhantes.
– Na época certa se colhia a cuia do porongo para cortar na metade e tirar água da canoa, mas também é proibido e se tem que usar garrafa pet assim como os balaios e as peneiras que eram feitos de cipó imbé cortado no mato, tudo proibido e agora tudo é de plástico. Tem que fazer as coisas bem escondido, sem chamar ninguém além dos filhos. Tio não conhece mais o sobrinho, não se visitam com medo de denuncia. Quando um velho morre derrubam a casa para os filhos não voltarem da cidade.

O diabo não é mais inteligente do que qualquer um de nós, é sábio porque velho!

Que fazer se a culpa é deles mesmos por preservar e viver tantos séculos em perfeito equilíbrio com a natureza? Se como nós destruíssem tudo enquando podiam não teriam do que se queixar.

A maré estava parada e a imensa baia parecia um lago de águas tranqüilas, tínhamos de esperar ainda duas horas pela vazante. Rumamos a norte, avançando ainda mais pela baía, acompanhando os mangues de uma comprida ilha que terminava num morro pronunciado. Sabia que se tratava do morro da Ilha da Pinheira, pequena e escarpada em contraste com as demais que não passavam de bancos de areia arborizados. Mas como estava ficando difícil achar uma posição menos desconfortável dentro daquele kaiak fervendo ao sol. Grudamos na costa tentando aproveitar um pouco da escassa sombra das árvores de mangue e só arranjamos enrosco e arranhões.

Vencendo uma ultima curva as pequenas ilhotas montanhosas se destacam a frente, numa enseada vimos algo insólito. Um sujeito trepado na árvore parecia nos observar de longe, mas que de perto era apenas um espantalho convenientemente vestido. Guardava a entrada pouco dissimulada de um rancho de pesca. Encalhamos a sombra duma frondosa árvore ávidos pela oportunidade de esticar as pernas e sair da assadeira em o kaiak havia se transformado. Nos arredores encontramos um poço com aquelas antigas bombas manuais de sucção a alavanca e cansamos os braços de tanto bombar pra só tirar ar quente lá de dentro até que o Moisés teve mais sorte extraindo um jorro farto e fresco, mas levemente salobra. Deu pro gasto.

Incrível que derrubem as casas dos caiçaras assim que morrem, mas nem conhecimento tomem destes inúmeros ranchos de pesca espalhados por toda a baía.

Estávamos com as bundas quadradas pelo tempo sentados nos bancos de madeira e antes de novamente embarcarmos providenciamos um estofamento com os coletes salva-vidas. Contornamos a ilha entrando na Baía dos Pinheiros onde ao norte se viam lanchas seguindo para Sebuí, Fátima ou Varadouro e com poucas remadas atracamos defronte a casinha do Constantino Custório que veio nos dar as boas vindas ainda na água. Bom de papo e hospitaleiro como quase todos os caiçaras fez questão de buscar uma jarra de água na geladeira, mesmo sob os grunhidos da patroa ranzinza escondida em algum canto da casa. Construiu sua moradia ao lado das ruínas do armazém do Francês, que a seguir visitamos, e ali criou os filhos a peixe e farinha de mandioca para depois se espalharem pelos quatro ventos.

Descansados e abastecidos estávamos prontos para aproveitar a maré vazante que se iniciava, despedimo-nos do velho Constantino e posicionamos o kaiak no centro da correnteza, ao largo da ilha da Pinheira. Remadas vigorosas aumentavam o rendimento contra uma suave brisa de proa. Rapidamente cruzamos por Bertioga a direita e Barbados no fundo da enseada ficava para trás, encoberta pelos morros. Fácil não era, mas a vazante ajudava bastante e tratamos de nos orientar para o cemitério onde poderíamos esticar as pernas mesmo com o risco de sermos devorados pelas butucas. Nossa despedida e homenagem ao velho suíço que descansava por 111 anos depois de 73 anos de vida atribulada em que não cessou de produzir belas gravuras e aquarelas retratando as paisagens que tanto amou.

Andando por ali encontrei um pedaço do cabo de energia submarino instalado no começo deste ano vindo de Guaraqueçaba para criar uma espécie de backup para o antigo sistema que vem de Pontal do Sul. Na realidade a energia elétrica chegou a ilha ainda em 1998 para felicidade de muitos e tristeza de outros tantos. Com a eletricidade veio o “bico de luz”, a geladeira e a televisão. Com a televisão veio o Jornal Nacional, a novela das sete, das oito, das nove e mais recentemente o BBB, além de coisas piores.

Helena Michaud, outra descendente do velho William, detestou este modernismo que chegou um ano antes de sua morte aos 92 anos. Afirmava a quem se dispusesse a ouvir que gostava da “luz de vela” e que quando morresse, do céu, acabava com esta porcaria. E assim o fez. No dia se sua morte ocorreu um apagão em todas as ilhas do litoral que durou exatamente 24 horas para espanto dos caiçaras que desde então alimentam novas lendas e mitos a seu respeito.

Depois de oito horas de força nos remos para percorrer pouco mais de quarenta quilômetros de distancia retornamos ao ponto de partida no Pontal de Superagui onde fomos recebidos pelas caretas do “Monstro da Areia” já na entrada do camping. O pequeno caiçara passava o dia todo enterrado na areia fina e seca brincando sozinho com seus barquinhos de madeira talhado a semelhança do barco do pai. A passagem dos turistas emergia escorrendo areia dos cabelos aos pés e sem dizer uma palavra se desmanchava em caretas e trejeitos selvagens.

Encerrou-se assim um ciclo de quinhentos anos de desenvolvimento da cultura tradicional no Lagamar com os quatro cavaleiros do apocalipse caiçara. Começou com o motor a gasolina, intensificou-se com a criação do parque, recebeu o tiro de misericórdia nos cultos evangélicos e a última “pá de cal” veio de carona com a eletricidade. É a inevitável marcha do progresso.
 

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Sobre o autor

Julio Cesar Fiori é Arquiteto e Urbanista formado pela PUC-PR em 1982 e pratica montanhismo desde 1980. Autor do livro "Caminhos Coloniais da Serra do Mar", é grande conhecedor das histórias e das montanhas do Paraná.

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