Foi o grande geólogo do século XIX Agassiz quem primeiro percebeu que o gelo era um formidável modelador do relevo. Era responsável pela erosão das montanhas e formação dos vales. Foi ele quem concebeu que a terra já teria passado por uma Idade do Gelo.
Há um fato para nós curioso na vida de Agassiz, que também era zoólogo. Quando o naturalista Spix faleceu, seu colega Martius (daquela famosa expedição em nosso país) pediu-lhe que estudasse os peixes amazônicos que trouxera do Brasil. Foi este estudo que gerou uma nova classificação dos peixes. Mais tarde, passou dois anos no Brasil.
Eu pensava em Agassiz quando retornava do meu trek pelo PN de Sagarmatha no Nepal, que tem o Everest como principal atração. O Rio Dudh Kosi corria à minha direita, com aquele colorido desmaiado dos cursos de degelo. Imaginava como aquele rio tão singelo fora capaz de esculpir a monumental geografia da região.
O Dudh Kosi faz parte de um sistema de sete rios, chamado de Saph Kosi. Cabe a ele drenar o glaciar do Everest, atravessar a capital sherpa de Namche Bazar, contornar a vila de Lukla, que é a porta de entrada da região, e finalmente submergir no Sun Kosi, no seu permanente rumo sul.
Mas minha emoção era tanta que as lágrimas mal me deixavam enxergar a trilha. Faz muitos anos, mas me lembro perfeitamente da rampa final antes de chegar ao vilarejo de Lukla, de onde havia partido umas duas semanas atrás. Foi um período de plenitude e conhecimento, que agora chegava ao fim.
Eu não sabia, mas Lukla tinha passado por uma grande crise. Naquela época (se não mesmo hoje) não se voava para lá com o clima enevoado. Os pilotos diziam que, dentro de uma nuvem, podiam encontrar uma montanha escondida. O mau tempo impedira que os voos lá chegassem (e de lá partissem) por uma semana – e isso na alta estação do outono. Não havia mais hospedagem ou alimentação disponível, com a vila atulhada de turistas histéricos para partir.
Pouco antes de minha chegada, o tempo abriu e voos sucessivos puderam escoar o pessoal. A vila voltara à normalidade. Fui me alojar numa pousada de onde partia um americano que havia feito tempos atrás o cume do Everest. Estava se despedindo com um sorriso simpático, desta vez voltava ao Nepal não para escalar e sim para caminhar.
A notícia se espalhou e alcançou duas gringas branquelas que já havia encontrado na trilha. Eu estava com uma barba de semanas, com aquele ar experiente de um montanhista bem-sucedido. Elas pensaram que era eu o autor da façanha, ficaram me encarando deslumbradas – claro que me desejavam como um prêmio ao final da longa caminhada, uma recordação especial para fechá-la com chave de ouro.
Depois de uma ótima noite, quando cheguei no aeroporto entendi por que na ida tantos turistas portavam colares de flores brancas. Eram os amáveis sherpas que os presenteavam, como despedida após tantos dias juntos. Então, eu também ganhei o meu colar.
Depois, foi o momento de embarcar de volta. Naquela época, voávamos em pequenos Dart Heralds com bancos de lona. Foi a primeira vez em que vi montanhas mais altas do que o avião. O pouso na pequena pista de Lukla só parecia acontecer pela frenagem da rampa inclinada, antes que o aparelho se espatifasse na escura rocha em frente (hoje a pista está asfaltada).
Foi a pior emoção por que passei naquele trek. Mas, já acostumado, o retorno a Katmandu foi até tranquilo. A segunda emoção foi quando cruzei pela primeira vez o Dudh Kosi, numa daquelas pontes pênseis sobre seu abismo vertiginoso. Mas também acabei me acostumando – na volta, dividi tranquilamente a última ponte com uma manada de yakis, os bovinos do Nepal.
Acho que continuo para sempre cruzando aquela ponte – toda vez em que encontro outra, por menor que seja, e toda vez em que penso na altitude, no frio e na felicidade daqueles dias.