Chegamos agora a um Parque Estadual que acaba de ser criado, após longa luta da comunidade de Botumirim. Ele é espetacular, com uma campina alta, que replica a situação e o visual do Cipó, e um cordão de serras com um desenho deslumbrante na sua extremidade.
Informado sobre suas belezas, passei três anos antes por Botumirim, durante uma viagem ao norte de Minas. Lá encontrei um vilarejo acanhado e pobre, ocupando uma colina de forma desajeitada, sem atrativos aparentes. Diziam que eu deveria subir por trilha até uma campina alta a oeste da vila. Mas não tive tempo, pois só dispunha daquela manhã, quando pude conhecer uma bela cachoeira.
Situado no alto vale do Jequitinhonha, Botumirim fica a apenas 50 km ao sul de Grão Mogol. Toda a região foi colonizada a partir da mineração de diamantes de Grão Mogol – quando esta se exauriu, a população assentou-se e passou a dedicar-se à agropecuária. É um lugar serrano, com certo clima de altitude, de noites frias e neblinas matinais.
Há quase 20 anos foi proposta por uma ONG a formação de um Parque com 30 mil ha na campina acima do vilarejo, num formato estreito e num sentido norte-sul (ver mapa). Ficaria num platô alto e isolado, recoberto por cênicos campos rupestres, veredas e cerrados, encerrados pelas escarpas.
Muitas águas nasceriam nesta reserva. Uma das principais seria o Rio Noruega e seu afluente o Rio do Peixe. Ao sul, correria o Ribeirão do Gigante, todos os dois tributários do Jequitinhonha. Ao norte, estariam as nascentes do Rio Bananal, que desce para o Itacambiraçu, principal curso da região.
Seus solos pobres e arenosos só se tinham prestado à criação extensiva de gado. Teria, portanto, escassa ocupação humana. Além disto, mais de 2/3 de sua área seria de preservação permanente, com rios, veredas e rochosos. Acreditava-se que estes fatores deveriam facilitar as expropriações necessárias ao Parque.
Mas o fato é que ele não tinha até aquele momento avançado. Quando retornei dois anos depois, os estudos tinham sido feitos, o IEF mineiro preparava-se para consultar a população e já havia até um gestor proposto para a reserva.
Pois finalmente visitei Botumirim com o tempo necessário. Subi à campina por duas trilhas, de São Domingos ao lado da vila e do Zé Rico ao norte dela, foram 200 a 300m de ascensões moderadas, de até 4 km. São caminhos distintos, o primeiro encarando a parede de uma maneira tradicional e prosseguindo por uma bonita ravina, e o segundo aproveitando uma colina para se aproximar dela.
São Domingos designa um vale cênico, cujas encostas são sombreadas pelas palmeiras catolé e pelo paredão da serra. Por lá passavam as tropas que subiam a campina com destino a Montes Claros. Mais tarde soube que há outras trilhas, pelo Tinoco a norte e pelo Toazinho a oeste.
De fato, o visual da campina é notável, assemelha-se ao Cipó – se não tem o mesmo alcance panorâmico e a mesma ondulação suave, apresenta uma rusticidade encantadora, com uma natureza um pouco mais robusta, numa altitude maior. Os campos são interrompidos por pequenos capões de mato, por carreiras de pedras ou por encostas que escondem o lado oposto.
São três os campos que avistei: a norte, a Campina do Maracujá, mais alta (1.400m) e separada por uma ondulação rochosa; à frente, do Bananal, contendo a calha escura do rio; a sul, de São Domingos, mais baixa (1.200m) e ligada ao seu prosseguimento ao sul. Entre as duas subidas a extensão não passa de 3 km, permitindo subir por uma e descer pela outra.
A presença do Rio Bananal é especial: permite que você repouse ou mesmo acampe nele e, dependendo da estação, aproveite a precipitação de 210 m de sua queda rumo ao planalto, bem como os poços e as praias lá em baixo. A campina terá de 5 a 8 km de largura e um comprimento de mais de 12 km de norte a sul.
Portanto: sim, não tive dúvidas sobre a conveniência de uma reserva neste local abençoado. Ainda mais considerando as muitas nascentes, os campos de sempre vivas, o ambiente ainda preservado e a ausência de ocupação permanente. Mas isto não garantiria a ela mais do que 10 mil ha. Onde estaria o restante?
Empreendi em seguida uma volta de 150 km pelas estradinhas vicinais, procurando contornar a capina. Parti no rumo sul, com vistas a um fantástico vale encerrado por montanhas, chamado de Matão – até descortinar toda a magnífica extensão da serra, de talvez 40 km.
À minha frente havia uma sucessão de cristas, que subiam em corcovas abauladas ou pontudas e desciam em colos que separavam o conjunto em cinco distintas formações. No norte mais distante, eu voltava a rever as paredes que encerravam a campina do dia anterior. A extensão desta parede seria de 6 km e seu ponto culminante estaria a 1.470m. Ela prosseguia na chamada Serra da Bocaina, com comprimento e altitudes semelhantes.
A seguir, três maciços recortados traziam um movimento à serra: Bela Vista (ou Santana), Gigante e Fonseca. O menor deles é curiosamente o Gigante, com cerca de 6 km, e que parece tão grande; os demais estendiam-se por quase o dobro cada. Mais tarde fui perceber que a mais impressionante destas formações era o Fonseca, que assim não parecia, por estar numa direção transversal E-W, diferente da orientação geral N-S. Contém o mais alto ponto dos três, a 1.525m, próximo ao município de Itacambira, onde belas serras poderão no futuro integrar uma nova reserva.
Este conjunto, certamente inexplorado, deve conter travessias bonitas e árduas, em especial nos desníveis da Bela Vista. Mas nenhuma delas poderá ser tão especial como atingir o enorme corpo do Fonseca, chamado lá em cima de Cantagalo. É esta extensão serrana, somada a áreas laterais no entorno, que fez a futura UC crescer para a dimensão projetada.
Só que a existência de um pássaro endêmico, a rolinha do planalto, colocou em risco a criação do Parque, já que o aumento de visitação poderia afetar a ave tão rara. E não foi ainda naquela ocasião que surgiria a nova reserva.
Voltei então, teimosamente, para enfrentar no ano seguinte o Fonseca. Estou na estrada e descubro que, dois dias antes, havia sido criado o Parque Estadual de Botumirim, agora com 36 mil ha. Então, acho que Alessandra e eu fomos os primeiros forasteiros a conhecer esta serra. Foi emocionante escalar sua árdua parede exposta e caminhar por seus cênicos campos rupestres, com panoramas estupendos das movimentadas serras próximas.
A vegetação dominante é o cerrado, exceto quando a altitude faz surgirem os campos rupestres. Existem aparições de caatinga, mais raras do que em Grão Mogol – talvez por ser uma região mais úmida e menos pedregosa. Encontrei na minha volta reflorestamentos em eucalipto. Os animais são aqueles típicos do cerrado.
Ao longo deste trajeto, existem dois rios imperdíveis: o Ribeirão da Onça e o Rio do Peixe, cada qual numa direção. Suas águas escuras contrastam com as lajes claras à volta, formando belos remansos nos muitos poços. São paisagens especiais, com o anfiteatro da serra e a vegetação do cerrado abraçando seus vales. Lembro que a principal cachoeira, a Quatro Oitavas (uma menção à época da mineração), fica a apenas 3 km da vila – certamente seus 80 m de queda serão uma visão poderosa nas chuvas.
Gostaria de comentar sobre dois outros atrativos. Um deles são as veredas de buritis, sempre cercadas por muita vida: água, gramíneas, árvores e pássaros. Outro são as grutas, a exemplo da Tartaruga. Mas nenhuma rivaliza com a Lapa do Bugre, onde encontrei um conjunto de desenhos com o traço mais delicado e elegante que jamais havia visto – com razão, é chamada de a Capela Sistina da região.
Depois desses dois Parques vizinhos, você conhecerá uma das reservas mais radicais de toda a cordilheira, já no fim de seu trecho mineiro, que chamo de Espinhaço Acima.
2 Comentários
Prezado Alberto, grande matéria! Contudo, preciso atentar a um parágrafo específico, que não está correto. Você disse: “[…] Só que a existência de um pássaro endêmico, a rolinha do planalto, colocou em risco a criação do Parque, já que o aumento de visitação poderia afetar a ave tão rara. E não foi ainda naquela ocasião que surgiria a nova reserva.”
Pois bem, sou o coordenador do projeto para a conservação da rolinha-do-planalto e gostaria de deixar ainda mais clara a sua excelente matéria. Desde 2015, quando a espécie foi redescoberta em Botumirim, O IEF (MG), o IGS (Instituto Grande Sertão) e a SAVE Brasil trabalharam para a proteção desta região, pois abriga esta que é uma das espécies mais raras do planeta. A proposta de criação do PE de Botumirim era uma luta antiga do IGS e a presença da rolinha (e da SAVE Brasil) fez a criação sair a toque de caixa. Desta forma, a ocorrência da rolinha-do-planalto acelerou a criação do parque, jamais colocou-a em risco. A prioridade número 1 do nosso trabalho em Botumirim foi a proteção integral da região, que não bastasse todos os atributos mencionados por ti é um lugar ímpar para a proteção da biodiversidade brasileira. Grande abraço!
A “vila” a que se refere o texto, é a cidade de Botumirim, temos aproximadamente de acordo com o último senso,8 mil habitantes. A cidade conta com Escolas estaduais e municipais, banco, agência dos correios , pousadas ,hotéis etc O santo padroeiro é São Francisco de Assis, cuja festa se comemora em outubro. Sou filha dessa terra linda e estou de volta após muitos anos longe, este é o meu pedaço de Paraíso… temos linha de ônibus diariamente para Montes Claros, pela BR 251, e temos asfalto em todo o percurso. A “vila” não é tão subdesenvolvida como deixou a entender o texto e a cidade de Botumirim que antes era comarca de Grão Mogol, encontra-se emancipada desde 1963.