O Morro da Viúva

0

Não é de hoje q namoro os cumes situados entre Santana do Parnaiba e Cabreúva. De elevações significativas, uma continuidade de cristas e distante apenas 60km de Sampa, estas montanhas menores – filhos desgarrados da Serra do Japi – são programa ideal prum bate-volta semi-selvagem. Começando uma série de investidas à região, meti as caras num tal Morro da Viúva, q a despeito do curioso nome é uma elevação respeitável q requer fôlego e determinação se a intenção é ganhar os quase mil metros do seu pedregoso topo. Um rolê puxado sem trilha alguma q começou na “Estrada dos Romeiros”, escalaminhou um misto de capim e rocha, palmilhou td extensão do morro bordejando paredões verticais, e findou merecidamente num boteco em Pirapora do Bom Jesus.

Dando vazão a minha veia de alma-penada, mais uma vez me vejo madrugando solitariamente em pleno fds de modo a otimizar ao máximo o rolê proposto praquele dia. E assim, cambaleando de sono após duas baldeações relativamente rápidas, desembarco na Estação Barueri (pertencente a linha diamante da CMTC) um pouco depois das 6:30hrs da matina.Ainda no escuro, ando na direção da Av. Anhangüera e fico prostrado no pto de bus a espera da minha condução sgte, q não tarda em passar.

Uma vez no interior do azulão “Terminal Barueri – Pirapora”, da Viação Osasco, a viagem transcorreu no maior chacoalho e bréu imaginável. Dei até umas breves cochiladas, mas pelo fato do cobrador do circular estar “pescando” ate mais do q eu, permaneci a maior parte do tempo alerta por q não seria desta vez avisado da hora do desembarque. O q ocorreu de fato apenas por volta das 7:30hrs, ainda envolto sob o manto negro da noite. Em tempo, a gente sabe q chega na cidade não pelas qualidades e atrativos desta mas através duma desagradável característica sensorial q invade as narinas: o mau cheiro do Tietê, q marulha mansa e espumosamente ao longo da cidade.

Já estivera em Pirapora do Bom Jesus em duas outras ocasiões, mas estar ali naquele momento de pré-alvorada, conferia aquela pacata cidadezinha, gde centro de peregrinação religiosa, um charme especial. A Igreja Matriz q o diga, com sua arquitetura clássica reluzindo á precária iluminação se dissipando lentamente. Ali, me dirigi a uma padoca q recém iniciava seu expediente, onde mandei ver um pingado e um delicioso salgado enqto aguardava a iluminação natural tornar as coisas mais claras (e menos opacas) pra mim.

Dessa maneira, começo minha pernada pouco depois das 8hrs, cruzando a ponte João Mimoto sobre o espumoso (e fétido) Rio Tietê, tocando na direção de Itu e Cabreúva. Daqui são algo em torno de 5 ou 6kms pela “Estrada dos Romeiros” (SP-312) até o inicio da pernada propriamente dita. Sei q existem três horários (bem irregulares) de ônibus da Viação Itu q poderiam ter me deixado já na entrada da trilha, mas resolvi aproveitar a manhã fria pra começar a andar dali mesmo, da cidade. Estava bem disposto e a idéia era essa, caminhar. Nada q um rolê pelo asfalto da “Mogi-Bertioga” já me deixasse calejado.

Comecei assim minha pernada pelo asfalto cinza da SP-312 enqto o dia amanhecia ainda envolto em brumas opacas, se anunciando preguiçoso e acinzentado. Um último olhar por sobre o ombro traz um belo enquadramento de Pirapora, cada vez mais pequenina, ao sopé do Morro do Capuava e, ao longe, da Serra do Voturuna. Ambos, com sua cumieira totalmente encoberta por espessa nebulosidade. E assim transcorreu bem tranqüila minha caminhada solitária em meio a baixos morrotes, sinuosa e com pouca variação de declividade na direção no noroeste. Imaginei quem sabe conseguir carona, mas a idéia se desvaneceu pois durante td trajeto só passou uma meia dúzia de veículos, tds na direção contraria a do meu trajeto. O consolo era ver, após a primeira curva, a larga e espichada elevação do meu destino espichando-se no sentido leste/oeste, ao mesmo tempo q se destacava de forma respeitável, tal qual o dorso duma baleia flutuando na linha do horizonte.

E assim, após um bom tempo de chinelada, passar pela entrada da Usina do Rasgão e pelo estreito pontilhão sobre o córrego Sta Quitéria, já começo a estudar um lugar pra cair no pé do serrote q antecede o Morro da Viúva. Este lugar oportuno encontro no exato km 62, as 9:20hrs, num caminho de terra na base da encosta de pasto. Salto uma cerca e prossigo pelo tal caminho apenas pra ele terminar alguns metros logo acima. Mas não tem erro, a encosta do morro aqui é relativamente suave e é possível subi-la tranquilamente, rasgando o pasto baixo q forra td o morro.

E assim ganhei rapidamente altitude ate alcançar o primeiro cocoruto, onde os horizontes se ampliaram de tal forma q pude estudar td o trajeto pra prosseguir minha jornada, sem necessidade de consultar seja carta ou bússola. Com navegação puramente visual, bastou acompanhar a crista ascendente ate dar no cocoruto sgte. O pasto aumentava e diminuía de tamanho, mas não oferecia dificuldade alguma de transposição. Dureza foi constatar a presença de dejetos de boizinhos e, consequentemente, de carrapatos, q logo vi circulando pelo antebraço e pelas canelas. Paciência, né? Como quem ta na chuva é pra se molhar, ignorei os maleditos e dei continuidade a minha rasgação de capim baixo até dar no pré-cume avistado.

Uma vez neste falso topo, fui obrigado a rasgar mato atraves dum breve trecho de florestinha maior, onde ganhei uns arranhões de capim-velcro e outro tanto de furos, cortesia de emaranhados de taquarinhas espinhentas, até cair novamente no descampado de pasto do verdadeiro topo do morro q integra a crista principal q o une ao meu real destino. Mas o melhor foi desembocar num aceiro desprovido de mato, por onde corria um cercado q ia justamente na direção do meu objetivo, bem a minha frente. Aqui, as 9:50hrs a perspectiva do Morro da Viúva era bem diferente do asfalto; ao invés de se apresentar um morro longo e espichado, aqui a visão era a duma pirâmide ou um vulcão, cujo topo espetava o céu de forma impressionante.

Pois bem, uma vez neste aceiro divisor de propriedades bastou apenas seguir por ele, acompanhando a cerca. Inicialmente perdi um tanto de altitude até mergulhar noutra florestinha ao sopé do morro visado. Mas não demorou pro aceiro de chão batido desaparecer por completo, mas daí foi so acompanhar a cerca, q começou a subir a encosta do morro suavemente, ora dum lado ora do outro. Este trecho me lembrou bastante a subida ao Pico Bonilha, em Sto André, pois a gente vai costurando a cerca conforme o mato se debruça sobre ela, ora dum lado ora do outro.

Mas td q é bom dura pouco, pois após um tempo de avanço tranqüilo a declividade aumentou de vez e ai sim a subida apertou mesmo. Pra piorar a cerca tb havia sumido. Na verdade, ela estava ai, alias, o q restara dela pois enormes blocos rochosos desmoronados a haviam sepultado parcialmente. Mas dali o sentido era mais q obvio. Ou seja, pra cima. Foi ai q começou de fato a escalaminhada de pedras, onde as mão foram buscando boas agarras e fissuras pra firmar o corpo enqto os pés tateavam bem onde pisar pra dar impulso. Aqui td cautela é pouca pois há muitas pedras soltas no trajeto e muita vegetação sobre os rochedos, ocultando gretas tão perigosas qto traiçoeiras.

Meu avanço prosseguiu firme e forte até finalmente emergir da floresta fechada e me ver escalaminhando por terreno íngreme e mais aberto, composto apenas de rocha, capim e pequenos arbustos. Embora a vista descortinada impressionasse, a pausa pra contemplação era bem dosada pois foi neste trecho q a declividade apertou de vez e se tornou quase vertical. Mãos se tornaram tão importante qto pés e, suando em bicas num piscar de olhos, fui escalando o restante do morro no melhor estilo calango, me firmando em aderências, agarras e no caule dos arbustos mais firmes.

Por volta das 10:20 hrs a piramba vertical deu lugar a um terreno mais suave, sinal claro q já estava quase no topo. Forrado de pasto alto, arbustos espinhentos e principalmente capim-gordura, este largo e abaulado cume é desprovido de trilha alguma. É possivel ver um ou outro sulco, mas nada bem definido. Contudo, o avanço é obvio e basta se manter no alto e tocar sempre sentido leste, uma vez q em ambos lados o penhasco é vertical e bem perigoso, e ir desviando das voçorocas de mato maiores. Aqui é difícil afirmar onde é cume de fato, pois ele é largo e plano boa parte do tempo, só sei q por volta das 10:45hrs fiz uma parada num rochedo cercado dum capinzal avermelhado q dançava a suave brisa daquela manha ligeiramente opaca.

Embora exista algum mato em volta é possível ter bela panorâmica de td entorno: o norte totalmente dominado pelas enormes cumieiras das Serras de Guaxinduva e do Japi; a oeste as elevações da Serra do Pirai ao lado duma minúscula Cabreúva e do reflexo dum fiapo do Rio Tietê; ao sul, entre morros menores, destaca-se a Serra do Voturuna e Pirapora e Aracariguama, pequeninas; e finalmente a leste temos as escarpas pontiagudas da Serra da Sapoca, dando continuidade a crista do Morro da Viúva. Reparei q aqui no alto há boas clareiras pra acampamento, mas nenhum sinal disso. Nem fogueira, nem lixo, nada.

Por volta das 11hrs comecei a descer do morro, satisfeito e revigorado pelo momento de descanso. Era preciso descer agora, até pq o desgaste da subida havia me obrigado a consumir os modestos 500ml de água q havia levado. Podia ter retornado pelo mesmo lugar, mas decidi prosseguir sentido leste. Dali do alto vi q isso era possível, pois havia uma fazendinha logo abaixo. O terreno palmilhado por este contraforte do morro é bem mais suave (e menos íngreme) q aquele q me valera pra subir. Aqui reparei nalguns trilhos de boi aqui e ali, e foi por eles q me guiei boa parte do tempo, embora isso não me isentasse de rasgar capim alto metade do trajeto. Mas nada assim tão perrengoso, embora ate aquela altura eu já me encontrasse totalmente preto de sujo, num misto de mato, pó e capim-gordura.

Pois bem, desci durante um tempo sem intercedências, mas ali, enqto um gavião chia no alto dum galho, reparei q tinha q quebrar aos poucos em diagonal pra sudeste. Ao reparar q os contrafortes norte e sul da montanha já não eram tão vertiginosos comecei a descer pela encosta lateral, mergulhando de vez na mata fechada e perdendo altitude num piscar de olhos. Ao contrário do q imaginei, a descida foi mais tranqüila e menos perrengosa q a subida. Desci pela encosta desviando de bambuzais, taquarinhas e mata espessa, ate cair no filete duma nascente, no sopé duma figueira gigantesca, onde me fartei de água!  Dali bastou apenas acompanhar o mirrado curso do precioso liquido ate onde finalmente cai numa captação! Dela nascia uma picada q simplesmente acompanhei, inicialmente pela encosta mas depois em forte declive, pra depois emergir nos fundos do q parecia ser a tal fazendinha avistada, ao mesmo tempo em q assustava uma macacada q ali garfava frutos no arvoredo.

Uma vez na “civilização”, depois do meio-dia, minha preocupação foi sair daquela fazendinha sem alertar a cachorrada q visivelmente sabia q ali havia. Latidos já eram audíveis durante td descida e me deixaram bem mais preocupado q o risco de cobra ou abelhas. Bem, estudei o trajeto e vi q era impossível sair dali sem passar pela casa principal e entreguei os ptos: fui de encontro dela pra me apresentar ao seu dono. Mas mal cheguei perto a cachorrada já veio na minha direção. Peguei um pedaço de pau por precaução e bati palmas pra me anunciar. Um senhor, q se diz ser Sr Waldemar, saiu curioso ao me ver e espantou os cachorros. Expliquei q queria apenas sair dali ele me indicou o caminho, avisando q ali era parte da Fazenda Santa Tereza. Aproveitei pra perguntar de novas rotas aos demais picos da região, dicas já anotada pra futuras investidas.

Me despedi do simplório senhor e cai fora dali, tomei um estradão de terra q me levou a outro maior, uma tal de “Estrada do Caracol”, e dali retornei pra Pirapora na direção basicamente sul, serpenteando a baixa morraria do caminho. Uma ultima olhadela por sobre o ombro me deu novamente a visão, desta vez de despedida, do Morro da Viúva largo e espichado, feito uma baleia.

O poeirento caminho da volta só não foi tão entediante por conta duma capelinha e uma pedreira q pincelaram o longo trajeto. E assim me vi na simpática Pirapora do Bom Jesus pouco antes das 14hrs, onde simplesmente encostei num boteco e fiquei la prostrado, bebendo e observando o vai-vem dos poucos turistas zanzando naquele dia. Aproveitei tb pra analisar melhor a carta da região e avaliar as possibilidades alentadas nesta primeira incursão a região. E as perspectivas são bem animadoras, com mais morros, gdes serras, belas cumieiras, cristas escarpadas e, logicamente, altos visuais. Programas breves de um dia totalmente desconhecidos e de fácil acesso q podem ser esticados, conforme a disposição ou tempo mandar. Motivos mais q suficientes pra voltar a região, claro.

Compartilhar

Sobre o autor

Jorge Soto é mochileiro, trilheiro e montanhista desde 1993. Natural de Santiago, Chile, reside atualmente em São Paulo. Designer e ilustrador por profissão, ele adora trilhar por lugares inusitados bem próximos da urbe e disponibilizar as informações á comunidade outdoor.

Deixe seu comentário