O Pico Perfeito

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Estou a mês e meio de quarentena depois que retornei do interior parananense pra cair direto no olho do furacão pandêmico do país, São Paulo. Nesse período de confinamento só saí brevemente do apê pra ir no mercado e resolver assuntos diversos, ocasiões contadas em ambas mãos. Vai, quase o dobro disso. E mesmo assim estou ficando entediado (e principalmente agoniado) em ver um dia mais lindo que o outro se diluir bem na minha frente.
Não que não tenha o que fazer em casa pra manter a cabeça ocupada, mas o fato de ser lentamente consumido pela necessidade de sentir o cheiro de mato estava no limite. Bem, não disseram no rádio e tevê que era pra sair do isolamento apenas em caso de necessidade? Pois era o caso. Assim sendo e conhecendo de cor e salteado a cartilha de prevenção contra o Covid-19, decidi me brindar com um breve momento outdoor seguindo todos os protocolos de segurança e higiene necessários.
E o rolê? Sim, foi aí que pus a cabeça pra funcionar. Logo lembrei que tempos atrás enquanto desfrutava da vista do alto da Serra do Mursa, em Várzea Paulista (SP), perguntei prum moleque local se sabia algo daquela bela elevação que destoa a leste, bem próxima, coroada por torres de telefonia. “Ah, esse aí é o Pico Perfeito!”, respondeu ele. “A vista lá é muito louca! E dá pra chegar de carro porque tem estrada de chão até lá!”, emendou.
Havia tempo que tencionava conhecer aquele simpático morro que já despertava minha atenção nos deslocamentos pela Linha Rubi da CPTM, uma vez ele se destaca na paisagem no trecho entre Botujuru e o túnel homônimo. “Sei que tem uma trilha que sai do asfalto da SP-354 e vai até o alto, só não sei em que condições ela tá agora!”, finalizou ele. Pronto, foi o suficiente pra me animar a conhecer aquele pico á minha maneira, ou seja, na base da pernada! Pronto, estava decidido! Munido não apenas das dicas do moleque mas principalmente de disposição, me mandei então pra esse programinha despretensioso e aparentemente sem dificuldade alguma pro alto dos 1045m daquela simplória elevação, que geograficamente figura como a tríplice divisa entre Sampa, Campinas e Jundiaí, segundo cartas atualizadas da região.
Com a mochila de ataque adaptada á nova realidade, peguei minha máscara, luvas e álcool gel, e saí de casa por volta das 8 horas rumo o metrô. Uma certa ansiedade tomava conta de mim pois não embarcava em transporte público desde que o mundo tinha virado de cabeça pra baixo, mas essa sensação logo se diluiu quando vi que era só estar atento a cada movimento, onde os detalhes de prevenção em ambientes fechados fazem toda diferença. Sim, portava máscara e luvas e não foi fácil me adaptar ao novo modelito, mas relevando alguns poréns a viagem transcorreu sem nenhuma outra intercedência, apesar que qualquer espirro ou tosse de terceiros já me despertava uma certa dose de desconfiança.
“Três máscaras por déiz real, uma por quatro!!!”, anunciava o ambulante já dentro da composição quase vazia da Linha Rubi. Sim, a pandemia mudou até a ofertas de mercadorias dos marreteiros. Máscara, álcool gel, luvas e outros utensílios de prevenção do corona atualmente tem mais saída que as habituais tralhas pra celular, salgadinhos, água engarrafada e pen-drives! Outro reflexo da pandemia no transporte público foi, além do baixo fluxo de passageiros, não ver nenhum anúncio nas estações. A fileira de painéis em branco retrata que o mercado publicitário já deve ter começado demissões, tendo em vista o investimento nulo das empresas nestes tempos de crise e futuro incerto.
Deixando estas observações pertinentes á crise, saltei na Estação Botujuru (690m altitude) por volta das 10:30hr sob um dia tremendamente isento de qualquer nebulosidade e Sol brilhando alto no céu! Botujuru (“boca dos ventos”, em tupi) tem um aspecto de cidade do interior de tão pequena que é, uma vez que seu surgimento confunde-se com a história de Campo Limpo Paulista: ambos nasceram às margens da Estrada de Ferro (SPR), de onde o outrora pequeno povoado se expandiu com a proliferação de loteamentos.
Depois de passar num mercado (devidamente “mascarado”) onde garanti um lanche me pirulitei pro sul, ainda pela via principal, passando pela minúscula rodoviária local onde avistei meu destino logo atrás, ao fundo. Em meio a pequenas colinas elevava-se o Pico Perfeito, tendo suas três antenas de telefonia espetando o céu azul. Cruzei praticamente toda vila Santo Antonio, passando pela simpática igrejinha do mesmo nome, até ganhar o comecinho da empoeirada Estrada do Botujuru. Mas mal encosta nesta via a abandono por outra que ramifica dela e sobe suavemente na direção oeste, deixando a pacata Botujuru pra trás.
Logo adiante surgem ramificações, mas sempre me mantenho na direção oeste, acompanhando a sinalização “Chácara Moinho”. Chinelada esta tranquila subindo e descendo lombadas serranas, cruzando com um ou outro sítio no caminho. Uma vez na chamada Estrada dos Cristais há a opção de se manter sempre nela e dar no alto do pico almejado, mas na metade dela eu a abandono, tomando a via que me leva ao bairro do Moinho e, consequentemente, ao asfalto da SP-354. Neste trecho é possível observar toda a crista descendente do Pico Perfeito, logo ao lado, e imaginar a rota que em tese vai ser adotada mais adiante. Em tempo, este trecho de estrada de chão é basicamente o mesmo da tradicional travessia Várzea Paulista a Botujuru!
Pois bem, depois de descer por uma íngreme piramba de chão piso no bairro do Moinho, ás margens do asfalto da SP-354, pouco antes do meio-dia. Daqui tomo o asfalto na direção sul, passando inclusive pela entrada da cachu do Moinho, do outro lado da estrada. Logo adiante passo pelo sopé da torre de telefonia local e pela entrada do “Sítio Olhos Azuis”. Surge então outra estrada de chão, sem sinalização alguma, que é a que tomo em busca da trilha (ou algo que o valha) em questão. Esta estrada percorre um bucólico vale e leva a uma chácara no final, cerca de 2kms a leste.
Dessa forma comecei a percorrer sem pressa aquela via de chão explorando minuciosamente a encosta á minha direita tentando achar a entrada da supracitada trilha, ou pelo menos algum bom acesso ás baixas lombadas que me levassem ao espigão principal. No final desta breve checagem encontrei três possíveis acessos mas terminei decidindo pelo primeiro, que se pirulitava encosta acima um pouco antes da via principal descer em direção á supracitada fazenda. Respirei fundo, fiz o sinal da cruz e lá fui eu, torcendo pra ter tomado a decisão certa.
E lá fui eu me enfiando naquela vala enquanto abria caminho com ambas mãos e tateava cautelosamente com os pés terreno firme pra pisar. Eventualmente minha rota limpava e podia ver muito bem o chão, repleto de buracos, mas logo o mato tornava a cobri-lo me obrigando outra vez a atentar melhor a cada passo meu. No entanto, o visível corte vertical de ambos lados denunciava ali já ter sido um caminho, infelizmente agora em parte tomado não só de vegetação arbustiva baixa mas principalmente por capim-gordura. Sim, aquela maledita relva de odor característico e superficie viscosa que deixa a mão pegajosa ao menor contato. E foi por causa da abundante presença dele no caminho que coloquei em xeque a ascensão por aquela rota, torcendo pro caminho limpar mais á frente. Bem, pelo menos não era vegetação espinhenta ou cortante, como unha-de-gato ou capim-navalha…
Assim fui avançando e ganhando altitude aos poucos em meio aquele terreno descampado, porém tomado por capim-gordura cuja altura chegava quase no peito. Conforme subia podia avistar os horizontes se descortinando a minha volta, tanto o espigão ascendente á minha frente como todo terreno percorrido até então, além dos verdejantes vales laterais, ficando cada vez mais distantes. Mais adiante o terreno pareceu se tornar mais amigável, com menos vegetação agreste, me proporcionando avançar com mais agilidade. Mas como alegria de pobre dura pouco, logo depois voçorocas daquele maldito capim gelatinoso tornaram a tomar conta da trilha outra vez, me obrigando em mais de uma ocasião a literalmente me jogar sobre o mato pra baixá-lo e assim prosseguir morro acima. Processo este que se repetiu por um bom tempo. A vontade de desistir era grande a certa altura, mas bastou não apenas olhar o quanto já havia ganho de altitude pra me manter ali; bastou observar também o quanto eu já estava sujo da cintura pra baixo pela mistura de mato queimado, terra e gordura, pra me agarrar com mais afinco á decisão de continuar minha ascensão por ali. “Porra, já to fudido mesmo então porque vou voltar de forma inglória de mão abanando?”, pensei.
Fui aos poucos então ganhando mais e mais terreno, vagarosamente, até conseguir pisar num largo ombro serrano onde a declividade não apenas suavizou como o arvoredo me proporcionou sombra naquele início de tarde quente e ensolarado, onde fiz um breve pit-stop de descanso sentado num cupinzeiro. Ali, entre goles de água e respiração ofegante, comecei a divagar sobre o pouco que sabia do meu inimigo natural daquela tarde, assimilado em aulas de biologia na adolescência. Lembrei que o capim-gordura era originário da Africa mas adaptou-se muito bem em solo tupiniquim, chegando até a ameaçar espécies nativas. Foi trazido pra cá pra servir de pastagem uma vez que o óleo que recobre sua superficie é repelente natural de carrapatos. Bem, pelo menos tinha uma boa notícia: não voltaria pra casa com aqueles maleditos parasitas grudados ao corpo.
Retomei a chinelada bravamente no mesmo compasso anterior, alternando ora menos ora mais mato na minha frente, mas com a noção exata da rota a ser seguida, sempre navegando visualmente. Sim, a esta altura do campeonato já nem olhava mais o quanto eu estava imundo, principalmente nas pernas, que pareciam estar besuntadas duma mistura heterogênea de graxa, cinzas, pó, mato, terra e um pouco de sangue!
Mas o sufoco do capim-gordura só abrandou mesmo bem mais adiante, quando o restante de encosta que tinha ainda pela frente foi tomado por vegetação bem mais simpática, onde a trilha novamente se tornou reconhecível. Quase no final e extremamente cansado pelo esforço em baixar o mato, me brindei com mais uma breve parada pra descanso no pasto, á sombra dum solitário pinheiro onde pude remover boa parte do mato grudado ao corpo, alguma sujeira e avaliar os estragos da cintura pra baixo. Apesar de tudo, o mais legal era a paisagem que agora se descortinava a meu redor. Nela eu distinguia á perfeição não só apenas toda crista percorrida desde o asfalto e os fundos vales laterais, como também uma vista privilegiada da Serra do Mursa, cujas corcovas reluziam aos sol verpertino á oeste; panorama este emoldurado pelo recorte difuso da Serra do Japi, logo atrás.
Finalizei a ascensão por volta das 13h50 numa grande clareira com vestígios de acampamento e jeitão de mirante, cuja vista não era muito diferente da descrição anterior. Dali segui pela poeirenta Estrada dos Cristais pra, num piscar de olhos, cair no sopé das torres de telefonia que tomam conta do cume verdadeiro. Assim, as 14 horas pisei nos quase 1045m do tal Pico Perfeito, onde fiz outra breve parada antes de retomar o caminho de volta. Se o mirante anterior contemplava o quadrante do Mursa, este aqui era generoso com ampla vista do setor leste. Ali, a pacata Botujuru dividia a planície permeada de colinas com vestígios a urbe de Francisco Morato enquanto atrás, ao fundo, levantavam-se as escarpas da Serra da Cantareira, do Pico Olho D´Água e até da Pedra Grande de Atibaia.
Descansado, retomei a chinelada morro abaixo pela Estrada dos Cristais de volta pra Botujuru. Minha idéia era voltar pelo mesmo caminho, mas só de lembrar o quanto de chão ainda tinha pela frente desanimava tendo em vista o quebrado que estava. “É, tô ficando velho pra este tipo de programa…”, pensei comigo mesmo. Mas pra não romper a tradição da solidariedade do ser humano, consegui carona no velho Camaro dum tiozinho que realizava reformas num sítio perto dali. Benzadéus!! Dureza foi aturar durante a viagem, entre uma conversa e outra, a teoria dele de que a pandemia atual era obra dos Iluminati a mando do Trump! “Sabia que eles lá já inventaram um nanochip que é implantado por meio do álcool gel?”, afirmava ele com toda convicção do mundo. Como a “cavalo dado não se olha os dentes…” eu simplesmente concordava com sua dissertação maluca.
Agradeci assim que o tiozinho me largou em Botujuru, no calor da tarde às 15 horas, me poupando de me arrastar por quase 5kms. Antes de tomar condução de volta passei numa conveniência que desrespeitava a quarentena mantendo seu negócio “não essencial” aberto, onde garanti minha “ampola de diurético” pra viagem. Durante o moroso retorno de trem pra casa, agora numa composição relativamente mais lotada que pela manhã, fiquei matutando a respeito da esquecida vereda do Pico Perfeito.
Sim, é uma elevação de altitude modesta se comparada às maiores vedetes de Sampa, mas é um morro que tem vista privilegiada de um marco geográfico pitoresco – o da tríplice divisa municipal citado na introdução – e é pouco conhecido, exceto por quem reside na região. E mesmo com uma precária estrada de chão chegando no alto parece que os únicos que a percorrem são os responsáveis pela manutenção das torres de telefonia lá instaladas.
Logo, a vereda é uma boa alternativa de chinelada diferenciada pela região e que foge do arroz e feijão básico do Mursa & Cia, mas tem aquele problema de estar parcialmente fechada. Bem, eu já deixei um rastro recente e baixei um bom mato por lá, agora cabe a você ir lá manter a trilha pisada pra consolidar de vez essa antiga rota. E quem sabe assim o Pico Perfeito seja incluído em definitivo na cartilha trilheira quando a poeira do Covid-19 baixar. Ou assuma o risco como eu fiz, saindo da quarentena. Até porque ta mais que provada a importância da atividade ao ar livre na manutenção da saúde física e, principalmente, mental. Mas sempre respeitando todos os protocolos de higiene, limpeza e segurança em vigor. Ou pelo menos nos deem opção melhor ao confinamento, uma vez que assumir riscos sempre foi fator preponderante a atividade outdoor.
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Sobre o autor

Jorge Soto é mochileiro, trilheiro e montanhista desde 1993. Natural de Santiago, Chile, reside atualmente em São Paulo. Designer e ilustrador por profissão, ele adora trilhar por lugares inusitados bem próximos da urbe e disponibilizar as informações á comunidade outdoor.

3 Comentários

  1. Jorge, compreendo sua necessidade e confesso que tb quebrei o isolamento, com todo o cuidado pra não levar o vírus pra ninguém, e fui no Pico do Lopo…
    A gente precisa cuidar da saúde mental tb, e quem gosta do mato sabe o quanto isso é restaurador.
    Nesse fds, um mês depois, vou novamente pro mato, conhecer uma tal placa lá em Cajamar…
    O site é bem legal, parabéns e boas trilhas a todos!

  2. Esse cara estava com depressão e com medo igual todo mundo que fica em casa
    Para combater qualquer doença é tudo ao Contrário do governo
    Fomos feitos para caminhar respirar ar puro e se alimentar de coisas da natureza

  3. Olá!
    Eu estava lendo seu texto e gostei muito. Sou jornalista e moro em Jundiaí. Só um detalhe sobre o Morro do Mursa. O local faz divisa com Várzea Paulista, Campo Limpo Paulista e Franco da Rocha, ok? Parabéns pelo texto.

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