Na distante época do Pleistoceno, o mundo atravessou sucessivas glaciações, os grandes animais da megafauna reinaram soberanos e surgiram nas estepes africanas os primeiros modelos do homem. Viveram neste período os extintos mamutes, gliptodontes e smilodons, bem como os animais modernos que sobreviveram às mudanças climáticas, como alces, cavalos e lobos. E o humilde hominídeo evoluiu para o glorioso homo sapiens.
Pois, na última glaciação, o gelo formou uma gigantesca ponte da Sibéria ao Alasca, permitindo a migração do homem da Europa para a América, onde ele não havia ainda chegado. Assim, a colonização do continente americano teria sido feita, à busca de um clima propício, do norte para o sul.
A teoria Clovis First afirma que as primeiras populações a habitar as Américas estavam ao norte: Clovis é uma vila no Novo México norte-americano onde foram encontrados fósseis com 13 mil anos de idade. Você verá a seguir como esta teoria está sendo contestada. Provavelmente foi durante este período que o homem chegou às Américas, onde quer que isso tenha ocorrido, seja ao sul ou no norte – se é que não chegou antes. Este texto abordará este assunto.
No Brasil, o período seguinte ao fim do Pleistoceno foi de uma crescente aridez, quando a mata atlântica do nosso interior foi sendo substituída pelo cerrado e pela caatinga, especialmente no Nordeste. Isto ajudou a preservar as inscrições rupestres feitas posteriormente nos abrigos de arenito e nas cavernas de calcário (que você conheceu em outros livros meus). E a tornar a megafauna mais escassa, até que acabasse por desaparecer.
Foi Peter Lund, arqueólogo dinamarquês, quem cunhou o termo Povo de Lagoa Santa, para se referir aos inúmeros esqueletos por ele encontrados em 1843, naquela região calcária próxima à capital mineira. Ao descobrir fósseis contemporâneos da megafauna, concluiu que os humanos conviveram com aqueles grandes animais extintos – diferentemente do que então se acreditava. Embora tenha vivido no Brasil até a morte, Lund enviou sua coleção para a Dinamarca.
Annette Emperaire chefiou a missão arqueológica franco-brasileira que realizou importantes escavações nesta mesma região de Lagoa Santa. Em 1974, desenterrou o que na época foi o mais antigo fóssil humano das Américas, com algo como 12 mil anos. Madame Annette morreu por acidente antes que pudesse concluir a análise deste achado. Este fóssil foi então armazenado (e esquecido) no Museu Nacional, no Rio de Janeiro. Você voltará a encontrá-lo a seguir.
Em 1988 um polêmico biólogo exonerado da USP chamado Walter Neves encontrou abrigo num museu do Pará, onde implantou um núcleo de pesquisas em antropologia. Ao representar este museu num evento na Europa, pôde realizar o velho sonho de conhecer o acervo que Peter Lund tinha enviado para Copenhague.
Lá mediu inúmeros dos crânios do Povo de Lagoa Santa. E verificou que eram surpreendentemente diferentes daqueles dos nossos indígenas. Para explicar este enigma, criou o interessante modelo dos dois componentes biológicos, que você logo conhecerá.
Neves tinha uma atitude crítica em relação à arqueologia nacional. Em represália, era a ele negado acesso aos acervos de Lagoa Santa, que tanto queria estudar. Porém, em 1995 pôde finalmente conhecer o crânio descoberto vinte anos antes por Madame Annette, aquele esquecido no Museu Nacional.
E novamente constatou que sua morfologia era semelhante às ossadas de Lund e diferente das dos indígenas brasileiros. Foi ele quem deu ao fóssil o nome de Luzia, em referência a Lucy, o mais antigo vestígio hominídeo, achado na Etiópia com mais de 3 milhões de anos.
O artista plástico Richard Neave se especializou na reconstrução facial, seja de criminosos ou de personalidades. Em 1998, a rede britânica BBC pediu-lhe que reconstituísse o crânio de Luzia. Seu trabalho mostrou de forma espetacular a figura de uma moça negroide, em nada semelhante ao habitual formato mongoloide dos indígenas brasileiros. E Walter Neves, que havia criado uma teoria para explicar este fato, tornou-se então uma celebridade, apontado como o Príncipe da Arqueologia brasileira.
Entretanto, talvez Neave tenha se enganado. Alertado por análises genéticas inexistentes naquela época, André Strauss da USP (sempre ela) encomendou recentemente uma nova reconstrução facial de outro dos crânios de Lagoa Santa. O resultado não foi mais uma feição negroide, e sim um rosto vagamente – ou convenientemente – genérico. Assim, talvez Neves venha a perder a sua realeza.
O Museu Nacional, onde Luzia repousava, foi construído por um comerciante carioca no começo do século XIX, na charmosa Quinta da Boa Vista. Foi a seguir cedido como moradia à família real de Dom João VI, quando este chegou no Rio de Janeiro. No fim do século, tornou-se a sede do Museu Nacional, que havia sido fundado pelo monarca português.
O Museu Nacional foi nosso maior centro para o estudo da história natural. Possuía um acervo gigantesco de espécimes minerais, vegetais e animais. Não existia no mundo nenhuma coleção tão completa da flora tropical. O Museu abrigou nossos mais antigos laboratórios e funcionou como um importante núcleo de pesquisas, com quase uma centena de professores.
Foi este o museu que, abandonado pela burocracia, pela inércia e pela ignorância, teve sua estrutura física deteriorada e ardeu em chamas numa noite de setembro de 2018. Foram perdidos, entre outros, os carvões fósseis da Serra da Capivara, a coleção de ossadas humanas de Lagoa Santa, o conjunto de crânios dos extintos índios botocudos e todo o acervo de botânica antiga. O primordial crânio de Luiza felizmente sobreviveu.
Com o incêndio, a pesquisadora Caroline Bachelet retornou à sua França natal, depois de cinco anos de estudos no Museu Nacional. Ela analisava os carvões de Santa Elina no Mato Grosso – um dos sítios de mais antiga ocupação humana na América – que deveriam ajudar a entender o ambiente e a cultura de nossos povoadores primitivos. Como ela, inúmeros pesquisadores tiveram seus trabalhos interrompidos.
Walter Neves teve a sorte de visitar o Museu um quarto de século antes. Se tivesse esperado, lá só teria talvez encontrado depois do incêndio o indestrutível meteorito Bendegó.
Mas afinal quem é Walter Neves? Ele nasceu no interior de Minas, filho de um pedreiro que se mudou para São Paulo. Foi office-boy no ABC paulista e estudante de biologia da USP. Ao mostrar ao pai a foto da sua primeira escavação, ouviu dele: Lutei tanto nesta vida para você não pegar numa colher de pedreiro…
Após seu doutorado, entrou em atrito com o corporativismo obsoleto da USP, da qual acabou demitido. Depois do período no Pará, desenvolveu a prática do que chamou de antropologia ecológica, sendo então admitido por concurso na mesma USP, onde lecionou por quase vinte anos. Em 2017, no primeiro dia em que completou 60 anos, solicitou seu desligamento e aposentadoria.
E qual a importância de sua teoria? Walter Neves propôs que duas ondas migratórias teriam colonizado as Américas, ingressando ambas pelo Estreito de Bering. A mais antiga, com talvez 14 mil anos, foi de asiáticos ainda negroides e a segunda, de 10 a 12 mil anos atrás, de povos cuja morfologia já tinha estranhamente evoluído para mongoloide, sob o frio siberiano.
Aparentemente, a primeira leva mostrou-se menos fértil, agressiva ou engenhosa, sendo absorvida pela outra. Segundo ele, esta morfologia negroide sobreviveu, os índios botocudos a mantiveram até o século XIX, quando acabaram sendo extintos. Assim como muitas de suas amostras no Museu Nacional.
E seus trabalhos encontraram acolhida numa série de descobertas na Colômbia e México, no Peru e Canadá, e especialmente no Chile, onde existem vestígios da presença humana há cerca de 15 mil anos. Esqueletos semelhantes aos do Povo de Lagoa Santa foram encontrados nestes locais. A primazia de Clovis First parecia ter sido definitivamente superada.
Os estudos de Walter Neves ajudaram a apoiar outras hipóteses para o povoamento das Américas. Há teorias de até quatro levas migratórias e de deslocamentos pelas ilhas do Pacífico, não apenas pelo Estreito de Bering. Esta possibilidade foi reforçada pela descoberta de que havia hominídeos na China em época muito remota.
E a ocupação na Serra da Capivara no Piauí, polemicamente datada de 50 mil anos atrás, foi mais uma peça neste enigma. Os humanos teriam chegado pelo relativamente estreito Atlântico, seguindo ventos e correntes que os levaram seja à costa da Bahia, seja ao delta do Parnaíba. Este povoamento teria sido muito remoto.
E sua origem teria sido asiática, não africana, como aliás afirmava Neves. Esta hipótese de povoamento da arqueóloga Niède Guidon levou vinte anos para ser (parcialmente) aceita por Neves. Mas ele comemora a afirmação de Niède de que na Serra da Capivara habitaram povos com as morfologias tanto negroide como mongoloide.
Porém, há fragilidades. Embora as escavações de Lagoa Santa tenham confirmado que as características de Luzia eram comuns às do seu povo, nenhum vestígio foi lá achado que fosse contemporâneo ou anterior a ela.
Falhei em demonstrar que houve uma ocupação pré-Clovis na região, lamentou Walter Neves. E hoje se afirma que o primeiro povoamento das Américas há 16 mil anos não teria conexão genética com Lagoa Santa.
Pois a datação que é feita a partir do chamado Carbono 14 só funciona a partir de restos orgânicos – e não sobrou nenhum colágeno em Luzia para permiti-la. Na realidade, não há vestígios de DNA do povo de Luzia nos índios atuais.
A preocupação de Neves com a morfologia craniana não foi estendida aos exames de DNA, tornando sua tese geneticamente vulnerável. De certo modo, perdeu o trem da história, escreveu Bernardo Esteves. Espero que os discípulos de Neves, usando os novos recursos da biologia molecular e da genética evolutiva, possam afinal provar sua tese.
Mas as análises de DNA não estão sendo favoráveis a Walter Neves. Novas evidências da análise genética sugerem não haver parentesco entre o Povo de Luzia e as populações da África. Teria havido uma única onda migratória e não as duas propostas por Neves.
André Strauss (que foi orientado por Neves durante seu mestrado) diz agora que a origem de Luzia teria vindo de nenhum outro lugar senão Clóvis – a linhagem ancestral que teria povoado Lagoa Santa. Assim, surge uma renovada teoria Clovis First Again.
Mas Walter Neves não se deixou abater. Mesmo aposentado, continua pesquisando nosso mais remoto passado, inclusive fora do Brasil. Talvez ele ressurja com uma nova teoria que ilumine tantos enigmas da nossa origem.
Geólogos, astrônomos e arqueólogos compartilham em suas profissões o fascínio pelo passado – eles enxergam o presente a partir das lentes dos tempos esquecidos. A meu ver, isto traz uma consequência: sempre precisam de uma teoria que explique o passado.
Nós os julgamos cientistas, embora pertençam a uma classe distinta, por exemplo, dos físicos, biólogos ou matemáticos. Pois eles não trabalham com verdades irrefutáveis, medições precisas ou provas completas. Sua realidade é semelhante à dos naturalistas, historiadores ou sociólogos, envolvida por incertezas e imperfeições.
Eles precisam recorrer à imaginação para conseguir ordenar o passado. Suas conclusões sempre parecerão falíveis e superficiais aos cientistas exatos. E maravilhosamente criativas àqueles que, como eles, vivem imersos na confusão da dúvida.