O Quebra Cangalha

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E se eu lhe disser que, se você percorrer de carro o Vale do Paraíba, não notará que existe uma longa serra, como se ela fosse invisível? Que provavelmente você passará por ela e nem perceberá? Se estiver a pé ou de bike saberá como é árduo atravessá-la. E, se a sobrevoar de avião, ficará surpreendido com seu desenho único.

A Serra do Quebra-Cangalha é pouco conhecida, embora se situe em região de fácil acesso. Fica no Estado de São Paulo, no planalto entre o Vale do Paraíba e a Serra do Mar, como resultado dos grandes enrugamentos que deram origem às colinas da região. Acho que o desconhecimento que comentei acima acontece por duas razões.

Primeiro, as rodovias que cruzam a Via Dutra basicamente só percorrem a região transversalmente, no rumo do litoral de Caraguatatuba, Ubatuba e Paraty. E, segundo, suas cidades pararam no tempo depois do ciclo do café. Paraibuna, São Luiz do Paraitinga e Cunha foram esquecidas pela industrialização do planalto e pela urbanização do litoral.

O mar de morros (Fonte – Divulgação)

A serra não é pequena, pois corre por mais de 100 km até a altura de Cruzeiro, quase na divisa com o Estado do Rio, onde é interrompida pela Bocaina. Entretanto, por ter uma orientação sinuosa e não ser muito alta, dificilmente é percebida como um conjunto.

Vista de cima, é uma impressionante sucessão de serrotes paralelos, como se fossem as incessantes ondulações do mar. É um notável testemunho do empurrão geológico que soergueu a Mantiqueira e afundou o Paraíba, criando o chamado mar de morros.

Dizem, por sinal, que seu nome deriva do esforço que os animais de carga tinham de fazer para transpô-la – eram bois unidos pelas cangalhas de madeira. O trecho que vou descrever é a Serra Fria, um dos mais centrais e elevados.

Para chegar lá vindo de São Paulo, tome o rumo de São Luiz do Paraitinga, cidade antiga com muitas histórias que sua posição isolada contribuiu para manter. O Paraitinga é um rio que banha a cidade e, junto com o Paraibuna, forma o conhecido Paraíba, o principal da região. Estes nomes tão sonoros significam respectivamente águas claras, escuras e ruins (no sentido de pouco navegáveis). Nesta região, existe um conhecido rafting pelo Paraibuna.

Visão do cordão de colinas (Fonte – Divulgação)

Descendo de Taubaté, existe um momento em que a rodovia percorre um trecho elevado 8 km antes do trevo de Paraitinga, do qual se descortina uma vista magnífica: à frente, o relevo acidentado da encosta interior da Serra do Mar, abaixo os terrenos agrícolas ondulados e à esquerda o perfil do Quebra Cangalha, ponto culminante da região. É a esse relevo movimentado que pertence a Serra Fria.

Depois que você descobre o caminho, é bem fácil chegar ao pé da serra. Vá no rumo do vilarejo próximo de Lagoinha, até encontrar uma casa grande à esquerda. Nela existe uma placa (na época, amarela) indicando o Bairro do Ribeirão. Deste ponto até o início da trilha serão menos de 20 km.

A Cachoeira Grande (Fonte – Divulgação)

A partir de agora, você percorrerá uma estrada de terra bastante razoável até atingir o pequeno bairro do Ribeirão. Ao longo dos pontos altos deste trajeto já é possível avistar-se o perfil da Serra Fria.

Chegando ao bairro, tome o sentido do Curralinho. Agora você percorrerá um caminho muito bonito, em que as colinas típicas da região se abrem numa ampla várzea, com algumas belas fazendas, como a Carvalho e a Rainha Luz.

Ao chegar no minúsculo Curralinho, você deve seguir paralelo à serra, passando por uma igrejinha e meia dúzia de casas, bem ao pé da serra. Continue pela fazendinha logo à sua frente e, se não quiser arriscar seu carro, deixe-o embaixo.

Suba a rampa a pé, mesmo porque logo você chegará no sítio onde se inicia a trilha. Seus moradores são muito hospitaleiros e vão lhe mostrar o caminho que começa logo após o curral. Na realidade, a viagem até aqui, mesmo sem a trilha, já vale o passeio.

Ao subir o morro, você atravessará um bosque de eucaliptos, uma pequena roça e uma larga rampa na mata, por ser usada por cavaleiros. Será um momento especial quando chegar a um passo que dá acesso à vertente da serra. Este é um lugar muito bonito, voltado para o lado oposto ao da subida. Nele você encontrará um pasto elevado com diversas árvores, ao longo do dorso sinuoso da serra, como é típico do Quebra-Cangalha.

Você poderá despender mais uma hora percorrendo as trilhas do pasto, ao longo deste belo espigão, que é divisa entre muitos municípios. A Serra Fria tem cerca de 5 km de extensão, seu ponto mais alto atingindo praticamente 1.500 metros, cerca de 50 metros acima do passo por onde você chegou.

Vista das colinas acidentadas (Fonte – Divulgação)

A vista voltada para o Curralinho é muito bonita, com os morros arredondados à frente do perfil distante da Serra do Mar. A vista oposta é muito ampla e alcança o Vale do Paraíba, à altura de Roseira. A rota perpendicular do sol dá a estas vistas uma luminosidade bem diferente.

As cidades desta região foram percorridas por bandeirantes e portadores de minérios e tiveram seu apogeu quando o café invadiu o Vale do Paraíba. Porém nunca se recuperaram da migração desta lavoura para o interior paulista – permanecem estagnadas até hoje.

São pequenas vilas interioranas e conservadoras, com poucos casarios antigos, diferentes das cidades industrializadas do vale e turísticas do litoral. Geográfica e historicamente (e também culturalmente), elas ficaram no meio do caminho.

Destas cidades, embora as demais tenham seus atrativos, a mais interessante me parece São Luiz do Paraitinga. Não deixe de visitá-la, possui um lindo núcleo histórico, além de tradições muito interessantes.

No verão de 2010, o Rio Paraitinga inundou a cidade e destruiu a Igreja de São Luiz de Tolosa. Com muito esforço, nos quatro anos seguintes, todo o centro foi reconstruído, junto com a Matriz. Assim como aconteceu dez anos antes com Goiás Velho, talvez este desastre tenha criado uma nova união entre os moradores.

Vista aérea do centro histórico (Fonte – Divulgação)

A cidade mantém a tradição de grandes festas populares, recriadas com entusiasmo e imaginação. Em particular, a melhor Folia do Divino que conheço (e que acompanhava desde sempre), no começo de maio, junto com a Festas do Saci e de Santa Cecília em outubro.

As danças de origem africana ainda são praticadas (principalmente por idosos), junto com as cavalgadas. E você não pode deixar de conhecer os bonecos gigantescos e coloridos de João Paulino e Maria Angu, que continuam uma tradição portuguesa.

Cena do Carnaval (Fonte – Divulgação)

O Carnaval de Paraitinga é outra história. A cidade passou 2/3 de século sem a festa, por ter sido considerada profana por um padre sem alma. É um acontecimento único, com marchinhas, blocos e fantoches. À noite, no desfile da praça central, monstros de papel machê assustam as crianças e os crédulos – e causam mais emoção do que as tradicionais cabrochas.

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Sobre o autor

Nasci no Rio, vivo em São Paulo, mas meu lugar é em Minas. Fui casado algumas vezes e quase nunca fiquei solteiro. Meus três filhos vieram do primeiro casamento. Estudei engenharia e depois administração, e percebi que nenhuma delas seria o meu destino. Mas esta segunda carreira trouxe boa recompensa, então não a abandonei. Até que um dia, resultado do acaso e da curiosidade, encontrei na natureza a minha vocação. E, nela, de início principalmente as montanhas. Hoje, elas são acompanhadas por um grande interesse pelos ambientes naturais. Então, acho que me transformei naquela figura antiga e genérica do naturalista.

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