O Último Voo do Pardal

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Certa vez convidaram um atleta para nos acompanhar numa caminhada relativamente tranquila ao Pico Paraná. Sujeito grande e musculoso vestindo roupas camufladas, coturno militar e faca do Rambo. Nem esperou o carro estacionar para iniciar uma corrida de aquecimento onde os joelhos quase tocavam no queixo. A tragédia estava encomendada e antes da Pedra do Grito já tínhamos a companhia de um zumbi cheio de determinação que aos poucos também se desfez.

É bastante comum o pensamento de que para escalar uma montanha bastam um excelente condicionamento físico e muita determinação. Nosso amigo tinha os dois com sobras, assim como Jeovael R. Ferreira, o Pardal, e Fabio V. Ferreira que no dia 23 de fevereiro de 1997 desembarcaram na Estação Marumbi com a montanha encoberta por densa neblina.  Ambos muito jovens com não mais de 25 anos, fortes, desportistas de reconhecido valor e muita determinação, mas nenhuma experiência em montanha. Pardal voava alto no salto com vara, estando cotado para o sul americano na modalidade.

Indagados ainda na Estação sobre o itinerário escolhido, apontaram diretamente para as brumas do desconhecido:

– Direto ao cume, sem rodeios nem concessões.

E cruzaram por entre as casas com passos firmes e rápidos até encontrarem um grande desbarrancado, restos de uma recente avalanche, que para o leigo de primeira viagem facilitaria a ascensão. Escalaram pequenos lances de segundo e terceiro graus rolando pedra e entulho morro abaixo, na força e na raça, até o meio dia quando o Fabio finalmente jogou a toalha. Completamente exaurido e suando as bicas, se decidiu por retornar à Estação, mas não conseguiu convencer o Pardal que lhe entregou a mochila desejando bom retorno. Na descida tomou alguns pacotes, esfoladuras e pedradas antes de alcançar as casas da vilinha e na Estação seguiu vagabundeando enquanto a tarde se esvaia vagarosamente.

Na montanha, o Pardal seguia firme e forte em linha reta para cima com o terreno se verticalizando, mas nada que o intimidasse e continuou subindo agarrando em hastes de taquaras. No meio da tarde se deparou com o primeiro obstáculo aparentemente intransponível, alcançou uma enorme laca tombada sobre a encosta junto a parede vertical da qual se desprendeu. Sem capacidade técnica para escalar e sem campo de visão para melhor avaliação, escolheu tentar o contorno pela direita.

Resgate do Pardal.

Prosseguiu aos trancos até tomar consciência de que estava irremediavelmente perdido na encosta, sem nenhuma possibilidade de continuar subindo e muito menos descer, mas a providência pareceu vir ao seu encontro quando ouviu gritos de euforia não demasiado distantes. O sábado brumoso pela completa ausência dos ventos favorecia a comunicação a distância e iniciaram um diálogo aos berros.

Três rapazes retornavam do cume pela Frontal do Olimpo urrando de alegria e responderam aos chamados do Pardal. Se posicionam separados por intervalos de alguns metros para tentar identificar a direção de origem do som.

– Estou perdido.

– Siga a água que todo riacho chega na Estação.

– Ouço o riacho, mas nada enxergo adiante de dois metros.

O som desaparecia por instantes para retornar em seguida, talvez abafado pela vegetação mais espessa ou alguma dobra no terreno. Houve ocasiões em que julgaram ouvir o estalido de galhos se quebrando, mas as 16h30 avisaram que precisavam continuar descendo para alcançar o trem de retorno. Pardal demonstrava tranquilidade na voz e se despediu agradecendo pela ajuda.

Duas horas depois o Fabio percorria aflito os corredores dos vagões de passageiros a procura do Pardal enquanto soava o apito de partida. Diante da total falta de notícias comunicou o desaparecimento do amigo as autoridades somente na tarde do dia seguinte e na mesma noite os jornais televisivos já alertavam para o ocorrido. As informações fornecidas em seu depoimento mais atrapalharam que ajudaram nas buscas devido ao total desconhecimento da montanha demonstrado pelo Fabio e na segunda feira haviam voluntários percorrendo todas as trilhas do Marumbi com apitos e aos berros, na procura pelo Pardal.

Vasculharam as trilhas da Frontal a Noroeste, no Vale dos Cubos, no Formiga e na Crista do Galo sem encontrar vestígios. Os esforços começaram a ficar mais assertivos ao reconstituírem o percurso da escalada com a presença do Fabio que se prontificou a conduzi-los até o local da separação. Inadvertidamente alcançam a Crista do Gigante muito acima do Ninho do Gavião sem nenhum visual devido à forte neblina, nenhum conhecimento técnico de escalada e nenhuma experiência em montanha. Reuniram num só pacote todos os ingredientes para uma tragédia perfeita.

As equipes de buscas investiram pela Crista do Gigante vasculhando cada fenda e precipício da laca ao cume sem nenhum resultado, mas novas pistas surgiram nos depoimentos dos três rapazes, os últimos a terem contato com o desaparecido, que o Vitamina entrevistou no Bairro do Boqueirão onde residiam. Todos marinheiros de primeira viagem. Os indícios apontavam para o insano Vale dos Faraós entre a linha da Crista do Gigante e a trilha Frontal do Olimpo onde nenhuma criatura racional ousaria se arriscar numa travessia as cegas.

Após nove dias de exaustivas buscas e do alto do precipício, um voluntário finalmente visualiza o corpo inerte numa grota com 150 metros de profundidade. Safou-se do primeiro desfiladeiro para despencar 45 metros verticais no segundo. Impossível iniciar o resgate naquela mesma tarde pelo adiantado da hora e pela falta do material técnico adequado.

Na manhã seguinte partem para a Tutancâmon no Vale dos Faraós apenas as 11h00 devido a imposição da presença de um profissional do Instituto Médico Legal. Calor e sede insuportáveis quando param para descansar e se hidratar na base de um acentuado degrau onde escorria um diminuto filete d’água, fresco e refrescante. Beberam até se fartarem antes de prosseguir a escalada, mas imediatamente após vencer o degrau se deparam com o inimaginável.

Meio metro a frente do degrau, represando a água que lhes saciara a sede, jazia o corpo em avançada decomposição com os vermes necrófilos em ebulição por toda a superfície aparente. Houve quem vomitou até as tripas ao confirmar o último voo do Pardal.

Croqui da posição em que o corpo do Pardal foi encontrado.

História verídica extraída dos “Diários do Vita” em tradução livre.

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Sobre o autor

Julio Cesar Fiori é Arquiteto e Urbanista formado pela PUC-PR em 1982 e pratica montanhismo desde 1980. Autor do livro "Caminhos Coloniais da Serra do Mar", é grande conhecedor das histórias e das montanhas do Paraná.

3 Comentários

  1. Essa historia foi incluida no documentário Ensaio do Adeus de Cristiane Lemos. Disponivel no Yutube. Tem depoimw to dos bombeiros e dos montanhistas!

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