Muitas são as tribos indígenas com histórias interessantes: os Tupi e Tupinambá do litoral, os Nhambiquara e Xavante do Centro-Oeste, os Paiaguá e guaicuru do Pantanal ou os Caiapó e Yanomami da Amazônia.
Mas vou lhe falar de uma tribo por assim dizer oposta à dos Kaapor: uma população pequena, com origem recente, sem língua própria, com um convívio conflituoso mas não dramático com os brancos, numa reserva diminuta para o padrão amazônico – os Pankaru.
Os Pankarus
A referência mais antiga sobre os Pankararu data do século XVII, quando eram patrocinados pelas missões religiosas do médio São Francisco. Ao longo do tempo, foram esquecendo sua língua nativa (como ocorreu com todas as tribos do Nordeste) e adotando a religião católica, tornando-se aos poucos índios aculturados.
Sua reserva resultou de uma doação nos tempos da Monarquia. Porém só foi demarcada recentemente, ocupando um pequeno vale de terras férteis, da bacia do São Francisco.
Situada próximo de Petrolândia (PE), possui 8 mil hectares – um pouco mais da metade do direito original, o resto foi espoliado – e abriga cerca de 5.400 indígenas. É um dos centros de difusão da cerimônia toré, de que falarei a seguir.
No início do século XX, morava perto da atual reserva Pankararu um índio chamado Apolônio Kinane. Tendo se desentendido com o cacique, migrou para a Bahia e lá conheceu a Serra do Ramalho.
Era na época recoberta por um denso cerrado e por uma caatinga arbórea e banhada por rios caudalosos afluentes do São Francisco. Era conhecida como um oásis no meio da região semiárida. Apolônio ficou encantado e trouxe sua família, numa penosa viagem de 750 km que levou meses.
E, por volta de 1950, lá estabeleceu a sua pequena aldeia. Trinta anos depois, para evitar confusão com o povo Pankararu, mudou o nome para Pankaru.
Mas a região que habitavam foi desapropriada pelo Governo, para o assentamento em 250 mil hectares de colonos, desalojados pela construção ao norte da Represa de Sobradinho.
Um sistema de agrovilas agrícolas foi então planejado, felizmente por uma empresa privada, com lotes familiares de 20 hectares (um tamanho razoável) à volta de pequenos núcleos urbanos, cada qual com seus equipamentos comunitários básicos.
Na realidade, este sistema de agrovilas foi sendo ampliado para receber outros colonos nordestinos. Existem hoje cerca de 20 agrovilas, tendo uma delas originado a sede do município, e 40 comunidades no total, num raro exemplo de colonização bem sucedida.
Seja no Jaíba (MG) ou em Petrolina (PE) foram implantados na mesma época outros projetos de colonização – mas, a meu ver, o pouco conhecido Ramalho mostrou-se mais próspero e estável.
As terras ocupadas pela tribo de Apolônio foram violentamente invadidas por um poderoso fazendeiro. Os indígenas recorreram ao longo dos anos sucessivamente à FUNAI e ao INCRA – depois de muitas hostilidades, obtiveram sua atual reserva de mil hectares. Nela menos de 200 índios habitam moradias em alvenaria, construídas para eles por um órgão federal.
A pequena comunidade de Vargem Alegre vive da agricultura do milho, mandioca e feijão, além do trabalho como mão de obra para terceiros. Como é comum em muitas das terras indígenas, é um território árido e pobre. A estratégia dos Pankaru foi oposta à dos Kaapor, ou seja, buscaram a aculturação junto aos brancos, a proteção junto às autoridades e o apoio junto aos órgãos públicos.
Mas há um aspecto em que conservam a sua herança cultural: os rituais do toré. Eles apresentam duas modalidades, uma delas lúdica e a outra, religiosa.
A primeira contém cantos e danças circulares em ocasiões públicas e festivas. Na segunda, é ingerida a jurema, beberagem à base de uma infusão de uma raiz, junto com pedaços de cascavel, com efeitos poderosos, talvez semelhantes aos da ayahuasca.
O chamado toré dos encantados é praticado em isolamento na mata, quando os espíritos são chamados e os encantamentos são realizados. Este ritual serve para clarear a mente, para dar força e unir a aldeia. Os encantados são índios vivos que se encantaram.
O seu culto não pode ser portanto confundido com o dos mortos. A forma deste encantamento é um mistério e um segredo. Segredo de índio, o branco não pode saber, conta o cacique Alfredo Pankaru.
O contato com os encantados é feito nos sonhos, quando eles entregam uma semente à pessoa que irá zelar por eles. As sementes funcionam como o transporte dos encantados. Somente depois de pedirem para ser levantados é que os encantados podem ser cultuados no toré.
As moradas dos encantados pertenciam às cachoeiras que foram inundadas pelas barragens. Extintas as cachoeiras, os índios estão limitados aos encantados já existentes.
Isto não é considerado suficiente para acomodar o crescimento da sua população. Hoje os indígenas (particularmente os Pankararu) procuram descobrir um novo segredo que permita a reprodução dos encantados.
O ritual toré é considerado o símbolo maior de resistência e união entre os índios do Nordeste (…) celebrando a vida e afirmando o futuro de uma comunidade imaginada e benfazeja entre todos os que dela participam, no dizer de João Pacheco de Oliveira.
Ele é um ritual que expressa tanto a individualidade, como a cultura e a religião. Os habitantes dos centros urbanos, mesmo das cidades pequenas, perderam há muito o acesso à plenitude dessas manifestações.