Pico da Neblina – Parte 2

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Chegou, enfim, o grande dia! Um baita solzão e aquele calor de antecâmara de inferno. Estou como o diabo gosta.


Veja a primeira parte

Deixamos São Gabi, mal acomodados na carroceria dum toyotão bandeirantes, a la retirantes nordestinos. Repleta de tralhas (400 litros de gasol pra voadeira, uma enorme caixa retangular contendo comida e utensílios diversos, mais mochilas) e pessoas (além de nós quatro, são passageiros, ainda, Branco, Pepe, Beto, Deisi e Messias), o jipão, conduzido pelo hábil motorista Coelho, roda pela BR 307 rumo ao km 85 do Parque Nacional do Pico da Neblina, onde embarcaremos numa voadeira rumo à boca do Tucano (um dos igarapés que alimenta o rio Cauaburis, afluente do Negro), ponto de partida da caminhada rumo ao topo do Neblina.

A estrada de terra vermelha não é das piores, salvo quando chove, explica Branco. Daí é um lamaçal só. Paramos, pras indefectíveis fotos, na linha do Equador, divisor imaginário entre os hemisférios sul e norte. Marcelo, enquanto urina, balança o corpo pra lá e pra cá, teatralizando com tais gestos que ora se encontra no sul, ora no norte. Revela-se, dessa forma, o palhaço do grupo. Adorável, aliás!

Quando chegamos ao posto de fiscalização da FUNAI, no km 55, após hora e meia de viagem, uma dezena de soldados do Exército, portando fuzis, faz barreira, impedindo nossa entrada no parque. E aí começa a confusão. O tenente, responsável pela soldadesca, nos explica, educadamente, que só poderemos continuar viagem com autorização de Zé Guilherme, diretor do parque, administrado, desde 2007, pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade – ICM-Bio, sucessor do IBAMA quando da polêmica divisão desta autarquia federal. Armindo, um yanomami, pasmem, de olhos azuis, piloto da nossa voadeira e presidente da AYRCA – Associação dos Yanomamis do rio Cauaburis e Afluentes, se indigna. Não admite que ninguém impeça seus convidados, nós, de entrarmos em sua casa. Isso porque a reserva desses indígenas localiza-se no interior do Neblina. O bate boca resulta inútil.

Voltamos, pois, a São Gabriel, alvoroçadíssimos, especulando sobre o que deu errado e enchendo de impropérios o chefão do instituto. Enquanto Branco, Armindo, mais Ely vão até a sede do órgão federal, encarregado de fiscalizar parques e reservas nacionais, eu, Lili, e Marcelo tratamos de almoçar e traçar um plano B caso nossa expedição resulte malograda. E aproveitamos pra tecer conjecturas que se revelaram estapafúrdias quando soubemos da verdade dos fatos. Mas bem que serviu pra nos distrair durante a tensa espera. Acontece que o Neblina se encontra fechado desde janeiro, motivo pelo qual, convocou-se uma reunião, no final desse mês, entre os líderes tuxauas yanomamis, cujos corpos foram pintados para o encontro, e a diretora do ICM-Bio, Silvana Canuto. Em decorrência, foi permitida a entrada de nosso grupo no parque. Contudo, sem nada assinado, só de boca. Enquanto estávamos em São Gabi, na sexta, dois madeireiros foram pegos com a boca na botija, extraindo, ilegalmente, madeira na região. Daí a presença do Exército.

Retornamos à estrada, dessa feita, acompanhados de Zé Guilherme que seguiu em condução oficial, já que a autorização tinha de ser feita, em pessoa, pessoalmente, como diz um atrapalhado personagem criado pelo escritor italiano Andrea Camilleri. Infelizmente, a equipe sofreu um desfalque: Beto, o outro guia da expedição, filho de Seu Julio Lopes, tuxaua yanomami da comunidade Maturaká (as aldeias, hoje em dia, passaram a adotar tal denominação), furioso com o imbroglio, desertou da aventura. Peninha, seu grito de guerra “Nebliiinaaaa” não irá mais se fazer ouvir.

Finalmente, às 17 horas, transcorridas 3 horas de viagem, chegamos ao km 85, onde está estabelecida a comunidade Tucana Yá-Mirim. Acampamos ali, porque a navegação no rio Cauaburis, em época de seca, durante a noite, torna-se bem arriscada, devido a enorme quantidade de pedras e troncos de árvores espalhados ao longo de seu leito. As redes, então, são armadas sob um telheiro de zinco. Eu, cabreira, armo com ajuda de Pepe Legal, por via das dúvidas, minha barraca.

Sei lá se vou conseguir dormir a noite toda na balouçante cama. Minha experiência com redes, até agora, limita-se àqueles rápidos cochilos, cuja duração não ultrapassa um par de horas. Eu, Lili e padre Marcel, assim apelidado por mim, pois sua cara faz jus ao título, vamos nos refrescar no igarapé Yá-Mirim. Um bando de taludos besouros circula, zumbindo, ao redor de minha cabeça. Basta, no entanto, um piparote com os dedos pros insetos procurarem outra freguesia.

Nos deitamos logo após a janta, exaustos de tantas emoções. O céu nublado revela vez por outra o brilho de pequenas clareiras de estrelas. E eis eu aqui nas, entranhas da floresta amazônica, embalada pelo coaxar de sapos e pios de aves. Tal sinfonia, ai ai ai, é quebrada, contudo, pelo desafinado coro de alguns roncos masculinos. Nem tudo, tsk tsk, é perfeito!!

Subindo o rio Cauaburis

Pois não é que dormi super bem na rede? Muito mais confortável que dormir em barraca.

Vão de carona conosco além de 4 yanomamis, Deisi. Embora casada há três meses com um índio baré, a indiazinha de 18 anos, bem bonitinha, é cortejada pelos outros índios. Conta que é a netinha do papai. Peço explicações e sou inteirada que seu Julio, pai de Beto, é, seu tio-avô. Também de carona, uma conterrânea, Flavia, enfermeira, natural de S. Luiz Gonzaga. Vai ao encontro do namorado, um tenente responsável pelo pelotão do Exército, sediado alguns quilômetros da comunidade de Maturaká.

O destino de todos é a boca do rio Maturaká. As duas contam que os seus homens vão buscá-las de canoa pra levá-las até a aldeia. Os tarzans aqui não usam, como veículos, cipós pra conduzirem suas janes. A aldeia yanomami, com 2.000 habitantes, tem uma certa infraestrutura, mesmo assim a maioria das casas é de palha, exceto algumas poucas de madeira e outras de alvenaria. Sei disso conversando com os carregadores porque nossa entrada em Maturaká está proibida.

Pra visitá-la só com convite do cacique Joaquim. Flavia conta que em São Gabriel há um surto de malária, confirmado por Armindo, quando retornamos à cidade. E o local onde as larvas se desenvolvem localiza-se, justo, num poço de águas paradas, perto da casa onde os yanomamis se hospedam quando em visita à cidade. Rola um falatório de que em Maturaká também há focos de malária. Aliás, muito comum, nessa região, pessoas infectadas pela fêmea do carapanã, mosquito do gênero Anopheles, vetor dessa parasitose tropical, cuja maior atividade ocorre do crepúsculo ao amanhecer, de preferência no interior das residências, embora haja contaminação ao ar livre.

A gravidade dessa praga é mensurada em cruzes, à semelhança da tuberculose. Partimos às 9 na voadeira, uma embarcação de alumínio, com motor de popa de 40 hp, onde se acomodam 12 pessoas, afora os 400 litros de combustível e mais um tanto de alimentos e equipamentos. Armindo, piloto experiente em tais cursos d’água, atravessa sem maiores problemas, nas duas primeiras horas iniciais, os igarapés Yá-Mirim e Yá-Grande até desembocar no Cauaburis, rio que coleta vários igarapés, dentre eles os dois que deixamos pra trás.

Como o rio se encontra na vazante, afloram em seu leito blocos de rochas, troncos e galhos de árvores caídos nas margens e arrastados pela correnteza até o meio de seu curso, o que dificulta em muito a navegação. Em certos trechos, a lâmina d’água não ultrapassa 50 cm, assim frequentes os rec rec da quilha do barco raspando o solo arenoso deste corredor fluvial. Árvores com belas e delicadas flores róseas predominam nas margens. Suas pétalas caídas na água colorem as águas escuras do rio.

Entretanto, surge uma que outra árvore cujas flores amarelas quebram a hegemonia da floração rosada. Muitos buracos redondos, cavados pelos caranguejos nos barrancos do rio, na época da cheia, são ocupados, agora, por ninhos de andorinhas. Pendem dos galhos de certas árvores curiosos ninhos em formato cilíndrico, tecidos pelos xexeos, pássaros de plumagem negra e amarela. Sabiamente protegidos, localizam-se ao alcance de formigueiros ou vespeiros.

Apesar do céu nublado, o calor é de fritar bolinho. Dois manguaris de plumagens cinza-azulada e branca (espécie de garça) voam graciosas sobre o rio, acompanhando-nos uma boa parte do trajeto. Em certos trechos, nota-se nitidamente, que os barrancos das margens não são formados apenas por areia mas entremeados por camadas de folhas.

Uma chuva forte, cuja duração não excede mais que 15 minutos, obriga-nos a usar uma lona azul como proteção. Eli usa o pé pra servir de estaca, impedindo, assim, que a proteção de plástico nos sufoque. Ninguém se aborrece com o tosco arranjo, tá todo mundo numa boa. Fumacinhas de evaporação evolam-se do rio após o chuvaral. Tô tão feliz, mas tão feliz que bate até um medinho bobo. Vá que meu coração estoure de tanto bem estar, hein? Deixa de ser boba mulher, sem medo de ser feliz, uai!!

No meio da tarde, eis a magnífica serra do Opota (opo, em yanomami, significa tatu, ta, serra), vulgarmente apelidada de serra do Padre. Tal denominação irrita os índios. Não admitem seja ela conhecida por tal nome. Como explica Junior, primo de Armindo, “nós estamos aqui muito antes desses padres”. E não pára mais o festival de serras que se sucedem umas às outras, sobressaindo na paisagem a do Baruri, em cuja retaguarda se esconde o mítico Yaripo, ou pico da Neblina e a do Pirapucu. Revelam, ao contrário da maioria das outras serras, extensos trechos de paredões pelados de vegetação. Mais adiante a verdejante serra do Barro e a do Jordão, nascente do igarapé de mesmo nome cujas águas claras e frias encontram um contraponto nas escuras águas do Cauaburis.

O Opota, já imerso no lusco-fusco da tarde que cai, brinca de esconde-esconde nas mis curvas traçadas pelo rio. Um cheiro gostoso de flor misturado com terra molhada evola das margens. Eu rio à toa. Às 19 horas, aportamos numa prainha onde há um sítio de propriedade de duas famílias de yanomamis. Deise traz num prato carne de tatu e tucumã pois sua avó encontra-se visitando alguns parentes que aqui vivem. Provo um tucumã, de textura meio farinhenta. Nada de muito interessante seu gosto. Duas índias trazem cestas de cipós pra vender, artesanato que recuso pois não apresenta maiores atrativos.

Sobre a fogueira cozinham uma panela de arroz e linguiças fincadas em gravetos improvisados de espetos. Após a janta, sentados em canoas emborcadas, conversamos e fumamos cigarrinhos, caprichosamente, enrolados por Deisi. Boa demais essa vida, não fossem as mariposas noturnas que teimam em visitar o interior dos meus olhos quando acendo a lanterna. Os índios preparam a brejera, fumo misturado com cinza, algodão e água, colocado entre o lábio e o maxilar inferiores. Em linguagem yanomami significa pee (tem til nos 2 “e” mas o teclado, bem burro, só aceita em cima do “o” e “a”). Servem-se dela pra minimizar a fome.

Originários, da Venezuela, o povo yanomami adentrou o território brasileiro, espalhados hoje em dia pelo Amazonas e Roraima. Há diferenças de sotaque conforme a localidade onde estão arraigados. Seu idioma, meio anasalado, lembra na cadência o chinês. Aprendo algumas palavras da língua local como parika, bebida alcóolica preparada pelos pajés para cerimônias especiais, sua, mulher, xita, homem e naka, irmã. Porém tal tradução é reducionista porque cada vocábulo tem um signficado bastante elástico. Quando tento falar seu difícil idioma, corrigem com energia minha péssima pronúncia. Coaxar de sapos, grasnidos de patos e latidos de cachorros ecoam sob o céu estrelado, um convite pra ser admirado se estivéssemos deitados em redes. Infelizmente, há que se dormir em barracas. Merda!

Continua….

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