Sherpas na Serra Fina

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A idéia era passar o feriado de Corpus Christi guiando a travessia Petrópolis x Teresópolis, que é um passeio no parque, caminhada linda e tranquila que nem suja a bota. No entanto bobeamos e perdemos o prazo de reservar os lugares nos locais de acampamento do Parque Nacional e meio em cima da hora mudamos o roteiro para a Serra Fina, que tem fama de ser a “travessia mais difícil do Brasil”. Como eu só tinha feito esta pernada pela metade e conheço bem outras travessia bem difíceis, achei muito interessante a possibilidade de realizar esta caminhada e melhor ainda trabalhando.

Vindo do Rio, onde havíamos acabado de escalar dois clássicos brasileiros, o Pico das Agulhas Negras e a via dos Italianos no Pão de Açúcar,acabamos chegando tarde na pousada em Passa Quatro, que estava bastante movimentada com os grupos que se preparavam para fazer a travessia da Serra Fina. Apesar de nem ser meia noite, já havia um grupo de guias saindo para reservar os locais de acampamento a seus clientes.
 Chegamos na frente do resto do grupo, apenas eu, Maximo e Maria. O resto veio de madrugada com o Bruno e o Jurandir, que veio de Paranaguá para fazer esta travessia pela primeira vez nos ajudar. Na verdade, sabendo da fama desta caminhada, convidei Jurandir Constantino que junto com Elcio Douglas realizou a travessia Alfa Crucis, de 105 Km pela Serra do Mar do Paraná, travessia até hoje não repetida e que tem menos de 20% de suas extensão com trilhas e o resto picada fechada, pois com seu curriculum e sua conhecida força, seria um parceiro ideal para carregar comigo o peso das barracas e equipamentos de camping do grupo. Ou seja, pra gente fazer o “trabalho de sherpa” da travessia.
 O grupo, por sua vez, Só fui conhecer mesmo pela manhã, bem cedo, já saindo para a trilha. Como a Serra Fina tem uma dificuldade com locais para pegar água, nossa função sherpa teria um aditivo de dificuldade a mais que seria coletar e carregar o precioso liquido para ser usado durante as refeições nos acampamentos, que também estaríamos montando.
 Ao chegar na Toca do Lobo, e eu Jura saímos na frente, andando o mais rápido possível. Sabíamos que haviam mais de 100 pessoas em nossa frente e que seria difícil poder acampar no alto do Capim Amarelo. Então precisaríamos achar um bom lugar para o grupo e garantir água.
 
Crista na Serra Fina e Vista do Vale do Paraíba desde o Quartizito
Em pouco tempo de caminhada, cheguei num local que é chamado de “Quartizito”, fácil entender porquê. Lá há uma bica d’água. Como fazia tempo que eu não andava por ali, perguntei a Bruno pelo rádio e obtive a confirmação que era a última água. Carreguei uns 7 lts nas costas e continuei subindo e ultrapassando quem pudesse que estivesse à frente.
 A subida do Capim Amarelo é bastante cansativa, com trechos de corda, muita piramba e lama, mas num ritmo constante, mesmo com 35kg nas costas, fui ganhando altura e dando graças a deus aos exercícios de agachamento na academia. No entanto foi chegar ao chegar ao cume e perceber que era impossível ficar ali. Mesmo sendo cedo, menos de 1 da tarde, o local já estava tomada por barracas e não havia um lugar para montar acampamento. Decidimos então descer e ir ao próximo local de acampamento: Maracanã.
 Mesmo descendo o Capim Amarelo, não é fácil, ainda mais com tanto peso. Mesmo assim chegamos no Maracanã e nos deparamos com a mesma situação. Cheio de gente. Por sorte lá é um local amplo e consegui achar um bom local para montar nossas barracas e ainda ter tempo para descansar, à espera do resto do grupo. Foi um dia puxado, pois com todo aquele peso subir e descer montanha foi bastante desgastante.
 O pessoal chegou algumas horas depois e mesmo depois deles ainda passou muito gente por nós buscando onde passar a noite. A maioria muito cansada.

Acampamento no Maracanã, Serra Fina.

 Passamos uma noite fria, mas muito bonita, com muitas estrelas no céu e a lua iluminando a Pedra da Mina, que é a montanha mais alta da Mantiqueira. Infelizmente nem todos do nosso grupo estava bem e um de nossos integrantes acabou desistindo pela manhã e voltando com o guia Vinicius Maltauro, que também estava ali e gentilmente nos ajudou.
 Tomamos um café rápido e novamente eu e o Jurandir começamos a andar na frente. Desta vez sem o peso da água, conseguimos andar bem rápido e em cerca de 3 horas e meia já estávamos no cume da Pedra da Mina, que novamente estava lotada! Impressionante, os grupos acordam de madrugada, andam pouquíssimo e passam o dia inteiro sem fazer nada nos acampamentos. Não entendo porquê?

Jogando as cinzas do Parofes na Pedra da Mina

Vista para o vale do Ruah

Jurandir na Pedra da Mina

Na Pedra da Mina

 Rapidamente começamos a descer a montanha e em pouco tempo alcançamos o primeiro local para acampar no vale do Ruah, novamente cheio de gente. No entanto continuamos pelo vale e em pouco tempo alcançamos uma clareira muito boa onde couberam todas as barracas com conforto. Foi um dia fácil! Nosso grupo só nos alcançou no final da tarde, quando começamos a fazer nossa comida numa noite novamente muito agradável de muita conversa e distração, com o Bruno fazendo muita piada e animando a galera.
 Pela manhã, bem antes do sol nascer, fomos acordados por um grande grupo passando por nós. O guia, ao avistar as barracas ainda fez piada da gente por estarmos dormindo, como se estivéssemos dando bobeira. Achei meio non sense o comentário dele. Foi uma madrugada fria que molhou de sereno toda a vegetação. Este grupo madrugueiro deve ter passado maus momentos ao enxugar toda aquele umidade com a roupa e depois ainda pegar o vento e frio ao subir o Cupim de Boi.
 Levantamos no nosso tempo e tomamos café sem pressa, para logo começar em marcha. Como era o planejamento, eu o Jurandir saímos na frente para ganhar tempo, mas logo encontramos um pessoal de Itajubá muito gente boa que nos deu dicas de água e nos informou que ali era o último ponto para o resto do dia. Tivemos então que carregar a mochila com o precioso liquido, coisa que foi repetida por todos.
 Com isso, novamente ficamos muito pesados e acabou que não nos distanciamos muito do grupo. Infelizmente aquele dia permaneceu fechado e frio, não deu para ver muito das montanhas rochosos que ficam perto do Cupim de Boi e nem mesmo a vista do Pico dos Três Estados, que tem este nome pois é a divisa entre Minas, São Paulo e Rio de Janeiro.
 Foi aliás na subida deste ultimo pico que eu o Jurandir arrancamos na frente e fomos montar acampamento na base do pico Alto dos Ivos, no meio de uma matinha de bambus muito convidativa, protegido do vento e com chão plano livre das touceiras do Capim Elefante.
 Novamente tivemos uma noite muito agradável, com comida deliciosa e até vinho! Todos nossos acampamentos acabaram sendo bem melhores que os locais habituais onde as pessoas ficam.

Amanhecer no Altos dos Ivos

Amanhecer no Altos dos Ivos

Na manhã seguinte, acordamos de madrugada, como estratégia para chegar cedo em Passa Quatro e assim não ter problemas com o transito de São Paulo. Acabou que pegamos o nascer do sol do cume do Alto dos Ivos, num espetáculo inigualável com o mesmo aparecendo ao fundo das Agulhas Negras. Foi para fechar com chave de ouro a viagem.

 Por que Sherpas na Serra Fina? Bom, acabou que meu trabalho na travessia foi mais carregar equipamentos e preparar os acampamentos do que acompanhar a turma, missão que foi deixada para o Maximo, Bruno e a Maria. Foi um trabalho bem legal, que fiz com muito prazer junto com um dos caras mais fortes que eu conheço, o Jurandir, um parceiro de longa data de montanha que é um dos montanhistas mais experientes do Brasil.
 Sua presença foi fundamental para que eu pudesse aqui, no final deste relato, jogar uma pá de cal no mito de que a Serra Fina é a travessia mais difícil do país. Com apenas 36 km e trilhas abertas e bem sinalizadas, pudemos realizar esta pernada sobrando, mesmo estando carregados com cerca de 35 kg quase todos os dias.
 Mas claro, mesmo não sendo a travessia mais difícil do país, é uma travessia exigente que não recomendo para iniciantes. No entanto vale muito a pena penar nestes sobes e desces, pois é um lugar incrível independente da dificuldade.
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Sobre o autor

Pedro Hauck natural de Itatiba-SP, desde 2007 vive em Curitiba-PR onde se tornou um ilustre conhecido. É formado em Geografia pela Unesp Rio Claro, possui mestrado em Geografia Física pela UFPR. Atualmente é sócio da Loja AltaMontanha, uma das mais conhecidas lojas especializadas em montanhismo no Brasil. É sócio da Soul Outdoor, agência especializada em ascensão em montanhas, trekking e cursos na área de montanhismo. Ele também é guia de montanha profissional e instrutor de escalada pela AGUIPERJ, única associação de guias de escalada profissional do Brasil. Ao longo de mais de 25 anos dedicados ao montanhismo, já escalou mais 140 montanhas com mais de 4 mil metros, destas, mais da metade com 6 mil metros e um 8 mil do Himalaia. Siga ele no Instagram @pehauck

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