Tentativas frustradas no Cotopaxi

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Partir do Brasil rumo ao Equador significava realizar o sonho de escalar o Cotopaxi, vulcão de cerca de 5.900 metros tido como um dos mais belos do mundo juntamente do Parinacota, além de também ser perfeitamente cônico. No segundo dia em Quito parti pra lá com muitos sonhos…

Quando voltei do Rucu Pichincha estava um bocado cansado…Tirei o resto do dia 2 pra descanso e alimentação, além de organizar as mochilas e equipamentos dentro do armário no albergue. Dei umas caminhadas pela cidade pra mapear comida e internet, e na volta tirei o resto do dia pra dormir e colocar o sono em dia pra me acertar com o fuso horário. No dia seguinte acordei com o pensamento de que estava perdendo tempo, que precisava me adiantar com a programação, ainda pensava que iria encontrar com o Pedro então teria que escalar o Cotopaxi rápido, pois teoricamente, teria só mais cinco dias em Quito!


Escrevi pro Boris, amigo do summitpost e guia mais conhecido do Equador fora do país. Ele me disse que não poderíamos nos encontrar, pois estaria guiando no Cotopaxi um americano. Então pensei, por que não partir logo pro Cotopaxi e encontrar o Boris na montanha logo?


Depois do café já tarde, meti a cara nas ruas em busca de transporte. Passei por algumas agências e acabei parando em uma na própria rua em que estava, onde conheci o dono e sua assistente. Queria ir logo então isso significaria pagar por transporte privado só pra mim. Depois de escutar um valor inicial de 150 dólares consegui reduzir isso pra 80 e dez fotos pra agência como cortesia. Bem, nada mal…Acordei tudo, paguei e voltei pro albergue pra preparar as mochilas.


A intenção era acampar e não usar o refúgio então até a barraca levei. Como sempre, duas mochilas. Voltei pra agência e entrei no carro com o dono da agência, Ed, e seguimos pra estrada. Muito gente boa e comunicativo ele, seguimos conversando todo o trajeto quase ininterruptamente. Quando chegamos na altura de Machachi, ainda na panamericana, ele disse que pararia pra tomarmos um café da manhã por conta dele, pra me dar forças. Hehehehe…Resumindo, o cara gastou uns 12 dólares me pagando um baita “brunch” com um hamburguer animal, batatas fritas, suco natural e até sobremesa…Disse que queria me ver forte e pronto pra boas fotos ahahahah. O nome do lugar era “La Vaca”. Fácil de encontrar, na estrada é possível ver o local que era usado para ordenhar vacas, uma antiga fazenda de produção de leite que virou restaurante, então pintaram toda a frente como uma vaca malhada. Local careiro mas de atendimento e comida ótimos!


Era quase meio dia então seguimos pro parque. Como o carro dele não era um 4×4, na entrada do parque ele me deixou e me deu 25 dólares pra eu pagar o transporte em um 4×4 até lá em cima, já me apresentando um motorista que por sinal também era gente boníssima. Lá fui eu…


Conversa vai e conversa vem, nada de ver o vulcão. Tempo fechado, chuva na beira da estrada a 3.000 metros. Isso significava neve acima. Ah já estava lá, não custava tentar…Toca pra frente!


Depois de uns 45 minutos chegamos ao estacionamento pra turismo e escalada do vulcão, a 4.540 metros de altitude. Saí do carro sob nevasca. Me preparei sob nevasca e comecei a subir sem ver o refúgio sob nevasca, me orientando por GPS. Tinha peso então fui lentamente e sem pressa, já que não gastei tempo pra me aclimatar o oxigênio me faltava muito. Ah tô cagando, pra cima Parofes!


Levei uma hora e quinze minutos até colocando a língua pra fora feito cachorro sarnento esfomeado. Cheguei lá dentro e a primeira pessoa que vi foi o Boris. Abraço caloroso de amigos, de cara disse a ele que iria pesquisar o terreno lá fora pra acampar e fazer boas fotos, ele me disse que não era muito bom praquele dia mas mesmo assim fui averiguar. Ele tinha razão, o espaço bom pra camping tinha uma neve molhada meio ensopada, típica de derretimento diurno, e a neve era muito, muito fofa. Fazer acampamento ali não seria muito bom…Pesquisei outras opções mas nada feito, teria que dormir no refúgio mesmo e pagar o preço salgado de 22.40 dólares pela noite.


Larguei as tralhas no locker dentro do dormitório, vesti o anoraque e saí pra ficar um pouco na nevasca avaliando minhas opções (esperar o tempo melhorar ou desistir), pois a coisa estava feia. Nevava sem parar me disseram já fazia umas 8 horas, e nos dias anteriores nevou religiosamente todo dia por horas a fio. Nada, nada bom. Muito risco de avalanche. Ah mermão, estava lá, decidi esperar pra ver no que dava. Voltei pra dentro, cozinhei meu almoço levado do Brasil, comi e fiquei sentado no refeitório esperando esperançosamente por uma melhora que nunca veio.



Avaliando as condições do tempo antes de ir dormir, 16:00h


Não pude conversar muito com o Boris pois ele precisava dar atenção ao seu cliente Brad, um norte-americano de fala arrastada e meio sei lá, dove suave. Mas gente boa e educado, por outro lado, a personificação de toda inexperiência em montanha em pessoa, e isso significaria trabalho extra pro coitado do Boris que já guia há 14 anos e está a ponto de mudar a vida cansado de tantas escaladas repetitivas e de arriscar a vida.


Mais tarde fiz minha janta e fui dormir lá pelas 18:00h. Acordei meia noite já de mochila pronta e ouvindo muito barulho de outras pessoas que também tentariam o cume naquela madrugada. Boris conseguiu descolar um café pra mim, comi modestamente e me preparei, fui lá pra fora sozinho e algumas lanternas lutavam em meio à nevasca pra serem vistas entre-parceiros. Olhei pra trás, Boris e seu cliente já saíam, voltei meu olhar adiante e comecei a ascensão.


A passos bem lentos fui ganhando altitude sem poder ver muito, seguindo os passos dos grupos anteriores na neve fresca, que continuava caindo sem parar. Olhei pro meu relógio pendurado na mochila e a temperatura era de 6°C. Porra! Muito quente! Me preocupei com o risco de avalanche mais ainda. Mesmo assim, continuei e fui tateando os arredores de vez em quando com o piolet pra ver como estava a situação.


Boris e Brad vinham logo atrás, mas depois de meia hora os perdi de vista ganhando mais altitude sozinho. Logo passei pelo começo do glaciar à direita e continuei seguindo os passos na neve até que começaram a desaparecer com mais neve que caia sobre eles. Uma breve abertura na nevasca com um fraco sopro do vento me permitiu ver a entrada do glaciar, não via ninguém à minha frente, quem passou, passou. Brad e Boris vinham só uns 50 ou 60 metros atrás de mim. Tateei a neve e ela descia com facilidade, e meu pé afundava até metade da canela. Chequei a temperatura, 5°C, continuava muito quente. A nevasca seguia impiedosa e muito forte, visibilidade de 5 metros. Resolvi voltar, estava perigoso demais prosseguir.


Muito risco de avalanche. Não vale a pena me arriscar por pura pressa em alta montanha e as condições só me faziam pensar em uma coisa: avalanche, avalanche, avalanche…Comecei a voltar na linha dos 5.240 metros, bem próximo a só alguns metros da entrada do glaciar, onde dezenas de gretas me esperavam cobertas de neve fresca. Depois de dez passos escutei o Boris gritando “Paulo, vamos voltar, o Brad tá muito cansado e tá perigoso demais, acho que vai ter avalanche hoje aqui!”.


Respondi que pensava o mesmo e que já estava descendo. Já estávamos derrotados a 20% da escalada. Em uma rápida olhada pra trás notei mais gente descendo, um grupo guiado de cinco pessoas. Seria o começo de um retorno em massa pelas condições adversas. Aproveitamos a péssima situação pra fazer fotos da merda e um vídeo. Note na foto a quantidade de neve caindo. A este ponto, já nevava há vinte e duas horas sem parar. Chegando no refúgio tivemos que sacudir as roupas e equipamentos pra limpar a neve acumulada, e o calor continuava dentro e fora do refúgio que, pela altitude elevada (4.859 metros) deveria fazer pelo menos entre 0°C e 2°C naquela noite, mas fazia mais calor que isso.


Video do retorno


Dentro do refúgio nos lamentamos é claro, mas ainda rimos com o vídeo e com as fotos. Grupos e mais grupos voltavam a cada cinco minutos. Voltei pro meu saco de dormir e apaguei. Acordei cerca de 7 da manhã já com a luz do dia entrando na janela ao lado de meu beliche. Olhei pro resto das camas, todas ocupadas, pensei “nossa, todo mundo desistiu, então devo ter tomado a decisão certa”. Olhei pela janela e vi uma raposa andina passeando perto do despejo de resto de comida dos andinistas!


Saí imediatamente, não nevava mais, porém o tempo continuava terrível e não via nada da montanha cem metros verticais acima. Consegui fazer um baita ensaio fotográfico da raposa que mais parecia um lobo de tão grande. Nada tímida, cheguei a só três ou quatro metros dela e a observei se alimentando, até que ela pegou a trilha dos montanhistas e desapareceu naquele universo branco.


Voltei ao refúgio maravilhado com minhas fotos, arrumei minhas coisas pensando “ah enfim não foi tão ruim vir aqui, pelo menos fotografei uma raposa andina!”. Depois voltei pro lado de fora, um vento abriu um pouco a visão da montanha e pude ver uma dupla descendo já na linha de neve, cerca de 300 metros acima. Fiquei lá fora esperando pra saber das novidades e, como esperava, não boas. Era a única dupla que seguiu tentando, um guia e uma mulher cliente se não me engano eslovaca. Desistiram a 5.700 metros por causa das péssimas condições de neve. Estava confirmado, nenhum cume naquele dia.


Reencontrei Boris e perguntei se rolava uma carona até Quito. Rolou, consegui voltar pra lá a custo zero na carona com ele e seu cliente. Na descida, notei a diferença: A estrada de caminho em terra vulcânica estava sob a neve, o estacionamento também. A linha de neve no Equador que geralmente é a 4.900 – 5.000 metros baixou pra 4.300 metros, tendo neve abaixo do estacionamento 200 metros verticais! Nossa, como nevou…Tive pelo menos a chance de ver montanhas dentro do parque que estavam de um jeito diferente, bastante nevadas.


Frase que escutei do Boris ao ver o Sincholagua (4.880 m) e o Rumiñahui (4.720 m) nevadas: “Paulo, tenho 36 anos, sou guia há 14 e nunca vi essas montanhas nevadas assim!”. E começou a tirar fotos.


Voltamos pra Quito, cheguei no meu albergue já aborrecido pelo insucesso. Esta seria minha segunda vez desistindo de uma montanha por más condições climáticas, e não seria a última.


A SEGUNDA TENTATIVA


Alguns dias se passaram, fui ao Guagua Pichincha e fiz cume (relato depois), tentei o Illiniza Norte sem sucesso também por mau tempo (relato depois), até que no dia 8 me dei conta de que estava perdendo tempo me lamentando. Olhei a previsão de tempo no mountain weather forecast, não acreditava em meus olhos! Uma janela perfeita de dois dias limpos sem nevasca ou vento no Cotopaxi e melhor, com previsão de frio próximo de –10°C! Busca de transporte de novo…


OBS: Dois ou três dias depois da tentativa frustrada número um, o Boris me disse por e-mail que naquele mesmo dia, por volta das dez ou onze da manhã, uma avalanche desceu perigosamente próxima à rota normal do Cotopaxi. EU SABIA QUE ISSO IRIA ACONTECER!


Dessa vez fui parar na agência Gulliver, quem pesquisa aprende. Lá, por apenas 20 dólares o transporte me deixa diretamente no estacionamento do Cotopaxi. Ê laiá viu…Poderia ter economizado uma grana na primeira tentativa…É errando que se aprende. Paguei e partiria cedinho dia 9 pra montanha, antes das sete.


Simbora, e cadê o bom tempo? Nada. Mas pelo menos não nevava. Estava nublado, ainda não via a montanha mas pelo menos não ficaria molhado. Foi bom ir com a agência porque por mais que eu estivesse pagando só pelo transporte, acabei desfrutando de quase tudo, inclusive uma visita ao museu do parque! Enfim, cheguei por lá umas onze e pouco da manhã. E o tempo? Um frio da porra já no estacionamento, tipo uns cinco negativos, com vento forte de uns quarenta por hora. Ah, começou a nevar!


Parecia mentira, tudo de novo…Ah cacete, já desanimei mas segui para o alto e avante como um fantasma solitário na nevasca. Cheguei ao refúgio em um pouco menos de uma hora, já mais rápido. E o tempo seguia ruim, nevando e ventando e muito frio.


Passei o resto da tarde falando oi pra alguns guias que me reconheceram, e meio solitário desanimado pelo mau tempo de novo, decidi dormir no refúgio de novo. Reencontrei um casal de espanhóis que estavam em um grupo guiado no Illiniza Norte durante minha tentativa, passei o resto da tarde com eles e seu guia e até descolei uma janta de graça! Fui dormir sem muitas esperanças deixando tudo pronto pra minha segunda tentativa.


A hora chegou, acordei e fui pra fora checar o tempo, quase congelei o rabo só pra sair do saco. Dentro do refúgio fazia –7°C, do lado de fora –9°C, isso a 4.859 metros! Nevava forte e ventava ainda, e não era vento fraco, de 40/h mais ou menos, e por causa da baixa temperatura a neve caía congelada já e cortava o rosto conforme batia, doía. No chão fora do refúgio uma fina camada de verglass se formara nas rochas do chão, obrigando a sair dali já de crampoons. Que maravilha, minha segunda tentativa seria marcada pela derrota ainda no refúgio, COM PREVISÃO DE TEMPO BOA CHECADA NO DIA ANTERIOR. Os espanhóis e seu guia decidiram nem sair assim como eu, mas quase todos os outros decidiram sair mesmo sendo avisados por seus guias dos riscos e do forte frio que encontrariam acima.



Péssimo tempo. ÚNICO registro da segunda tentativa, não tirei 1 foto sequer


Tomei café da manhã também de graça só batendo papo com meus novos amigos de montanha e seu guia, especulamos por quase uma hora até que decidi voltar a dormir. Me enterrei no saco tremendo de frio já era quase uma da manhã. Pouco depois, quase duas da manhã, os primeiros desistentes começaram a chegar. Faziam tanto barulho e xingavam tanto que saí do calor do saco e fui ver a situação. Estavam semicongelados. Na linha do glaciar estava –15°C e a nevasca com vento continuava, a sensação devia ser em torno dos –25°C, e a neve congelada batia nos equipamentos e roupas e grudava no ato, alguns tinham uma camada impressionante de três ou quatro centímetros de GELO formado nas mochilas, piolets e bastões, pintados de branco como alpinistas albinos. Minha vontade era de dizer “eu te disse, eu te disse” lembrando do velho desenho animado.


Nos minutos que se seguiram, todos os outros grupos retornaram nas mesmas condições, semicongelados e com seus guias rindo da situação. Óbvio, avisaram ao povo das condições, e não que houvesse necessidade de aviso, bastava olhar pra fora! Mas na grande maioria, os clientes eram norte-americanos e franceses, e eu já escalei perto desses caras pra todo lado que fui. Sempre usam guias e nunca escutam os conselhos, os norte-americanos são os piores, completamente cegos pelo cume, não importa mais nada.


Fazer o que…A montanha disse não pela segunda vez e isso acabou comigo. Já tinha a notícia do Pedro que por causa do passaporte vencido que ficou em casa ele não poderia mais me encontrar e por isso não faríamos as montanhas planejadas juntos, estes dois fatores foram baldes de água fria no psicológico, que foi pro saco. Desci até o estacionamento acompanhado do casal de espanhóis em lua de mel e seu guia, sob nevasca e frio pra variar, e ganhei uma carona até a entrada do parque na panamericana. Lá peguei um ônibus 2 minutos depois que por 1.50 dólar me deixou em Quito.


O que mais posso dizer? Voltei pra Quito gripado, aborrecido e desanimado.


Parofes

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Sobre o autor

Parofes, Paulo Roberto Felipe Schmidt (In Memorian) era nascido no Rio, mas morava em São Paulo desde 2007, Historiador por formação. Praticava montanhismo há 8 anos e sua predileção é por montanhas nacionais e montanhas de altitude pouco visitadas, remotas e de difícil acesso. A maior experiência é em montanhas de 5000 metros a 6000 metros nos andes atacameños, norte do Chile, cuja ascensão é realizada por trekking de altitude. Dentre as conquistas pessoais se destaca a primeira escalada brasileira ao vulcão Aucanquilcha de 6.176 metros e a primeira escalada brasileira em solitário do vulcão ativo San Pedro de 6.145 metros, próximo a vila de Ollague. Também se destaca a escalada do vulcão Licancabur de 5.920 metros e vulcão Sairecabur de 6000 metros. Parofes nos deixou no dia 10 de maio de 2014.

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