Tirando uma selfie de costas para o penhasco

4

O mundo dá voltas, como diz o ditado, e na volta do ano de 2020 o ritmo da vida das pessoas tem sido ditado pela pandemia do coronavírus. Um vírus que tem por característica gerar uma forte inflamação nas vias aéreas de suas vítimas, levando uma significativa parcela à morte. Mas, que também tem gerado grande impacto nas nações. Em especial, tem exposto graves feridas sociais. No Brasil, a população mais pobre se viu entre a cruz e a espada em decorrência da queda do emprego e da economia. Nunca antes na história desse país… se viu um vírus empurrar tanta gente para a linha da fome por não ter um tostão guardado. Afinal, o Brasil é o segundo país com a pior distribuição de renda no mundo!

No caso dos parques estaduais da Serra do Mar no Paraná o efeito foi outro. Após permanecerem fechados por uns meses para evitar aglomeração de pessoas, foram reabertos no final de agosto e em pouco tempo a onda de visitantes se transformou num caos. Isso porque o órgão gestor das Unidades de Conservação (UCs) estaduais não tinha capacidade de geri-las. E mais uma vez, o coronavírus mostrou precisamente onde a ferida estava aberta.

Parque Estadual das Lauráceas

O que se viu e noticiou no início de setembro foi parques lotados, com fila nas trilhas, aglomeração, gente carregando grelha e carvão pra churrasco, narguilé, fogueira, acampamento em local inadequado, caixa de som tocando música em volume alto, abandono de lixo, etc. Uma verdadeira baderna nas montanhas mais populares. Diante dessas cenas de anarquia e do iminente risco de incêndio nas montanhas, no final do feriado de 7 de setembro, as prefeituras e o Batalhão da Polícia Ambiental (Força Verde) resolveram tomar conta da situação e executar uma operação emergencial nos Parques Estaduais do Pico Marumbi, Pico do Paraná e Serra da Baitaca. Tal ação buscava apoiar o Instituto Água e Terra (IAT), antigo IAP, no controle dos visitantes. Fato é que esse tipo de baderna já acontecia muito antes da pandemia. O coronavírus apenas expôs de forma mais contundente o problema.

Para minha surpresa, mesmo com o flagrante da necessidade de outras instituições públicas virem ao socorro do IAT, não se viu entre os montanhistas organizados qualquer menção a necessidade de corrigir a incapacidade do IAT em gerir suas UCs. Pelo contrário, o presidente da Federação Paranaense de Montanhismo em entrevista à rádio CBN Curitiba se bastou a culpar os visitantes menos experientes ou educados. Como se fosse possível colocar juízo na cabeça de quem não faz nenhuma questão disso. A questão da ingerência dos parques não foi comentada, demonstrando que é um assunto sem apelo na FEPAM.

Sendo bastante simplista, qualquer parque, trilha ou montanha tem uma capacidade limitada de receber pessoas, sem que a natureza seja gravemente danificada, nem que a qualidade da visitação seja comprometida. Ele mesmo lembrou que a montanha é um lugar onde as pessoas buscam ouvir o canto dos pássaros e com música alta isso fica impossível. Vale lembrar, para quem ainda não sabe, que cabe ao gestor do parque definir e controlar o número máximo de visitantes. Acontece que o IAT não tinha capacidade para fazer isso nem antes, nem depois da pandemia.

Por coincidência, no mesmo dia os veículos de jornalismo também divulgavam a notícia de que o IAT foi intimado pelo Ministério Público a responder uma denúncia de que o Parque Estadual das Lauráceas estava sendo invadido, com abertura de estradas, roubo de palmito e desmatamento para abertura de pasto. E quem eu vi na televisão atestando a gravidade da denúncia? O meu colega e ex-gerente do parque, Michel. Eis, que aqui eu chamo a atenção para os colegas montanhistas que ainda não tiveram a coragem para olhar o mundo além das sombras na parede da caverna.

Isso está acontecendo no P.E. das Lauráceas porque após o fim do governo Beto Richa/Cida Borghetti, o então gerente Michel, funcionário comissionado, foi dispensado e não foi colocado outro no lugar. Ah, mas se você perguntar pro IAT eles vão dizer que o gerente é o Adroaldo. Mas, esse funcionário em fim de carreira também gerencia o Parque Estadual do Monge, na Lapa. Uma consequência esperada para um IAP que em sua história nunca fez um concurso público. Seus funcionários, ou estão em fim de carreira, ou estão aposentados, ou mortos! Nunca houve reposição.

Agora, se o leitor estiver com um pouco de dúvida se isso dá certo, gerenciar dois parques “complicados” ao mesmo tempo, então que pegue o carro e dirija do centro da Lapa até o lado mais isolado do Vale do Ribeira, na distante Adrianópolis. Ah, e não se esqueça que lá o parque tem mais de 32.000 hectares! Pelo menos os grileiros já sabem que não funciona.

Eu tive o privilégio de acompanhar o trabalho do Michel durante os quatro anos em que fiz minha pesquisa de doutorado. Hoje, posso dizer sem sombra de dúvida, que ele foi o melhor gerente de parque em todo o Estado. Antes dele, o parque contava apenas com uma sede sem energia elétrica num lugar desolado, e apenas um funcionário. Como ele mesmo dizia, era um lugar hostil. Mas com sua dedicação, buscou parcerias e conseguiu construir muita coisa. Melhorou a estrada de acesso onde só chegava 4 X 4, puxou energia elétrica, reformou a sede, construiu uma garagem, adquiriu três quadriciclos, instalou um container de alojamento para pesquisadores, construiu um camping, reabriu a estrada interna de 10 Km que tinha sido engolida pela floresta, reabriu trilhas e criou novas (eu ajudei um pouco), realizou operações de fiscalização, formou uma equipe boa com funcionários cedidos pelas prefeituras, apoiou a minha pesquisa científica e de outros, realizou um ótimo levantamento de fauna, conseguiu parceiros para implantar um projeto de reintrodução de fauna, construiu um alojamento avançado para isso, ajustou o planejamento para combate a incêndio…enfim, não lembro de tudo. E o que fez o governo atual quando recebeu um parque funcionando em plena capacidade? Pôs tudo a perder.

Porém, isso não é obra do acaso, tampouco uma simples diferença entre este governo e o anterior. Pois, todos eles, desde o governo Jaime Lerner, têm copiado a mesma política, que dita o sucateamento do IAP, agora IAT. Afinal, parece que o IAP já estava tão pequeno e frágil que foi mais prático juntá-lo a outras autarquias, dando uma nova cara para que as pessoas pensem que de agora em diante vai ser diferente. Mas, então, veio o vírus com sua péssima mania de expor as feridas, e nós vimos claramente os mesmos problemas de sempre!

Eu chamo a atenção para o fato do Michel, ex-funcionário do IAP, conhecedor de como as coisas funcionam, estar apoiando uma denúncia via Ministério Público. Quantas vezes meus colegas do CPM e da FEPAM me ouviram falar essa ladainha: “‒ Tem que denunciar o IAP por abandono de UC, se não nada vai mudar”. Isso porque a Lei do SNUC (9985/2000) determina claramente que os parques devem cumprir os objetivos: preservação de ecossistemas naturais de grande relevância ecológica e beleza cênica, possibilitando a realização de pesquisas científicas e o desenvolvimento de atividades de educação e interpretação ambiental, de recreação em contato com a natureza e de turismo ecológico. Então, não é opção, é obrigação cumprir esses objetivos que são detalhados nos planos de manejo de cada UC segundo as suas peculiaridades. Mas, genericamente, se percebe que eles não estão sendo atendidos na Baitaca, no Ibitiraquire, nem no Marumbi. E o Michel, percebendo que todas as suas conquistas podem ir pelo ralo, resolveu apoiar o caminho que tem melhor chance de gerar uma reposta positiva. Ao contrário dos montanhistas, que sempre esperam que com uma conversa amigável o Estado vai abrir o caixa e atender as suas demandas.

Mas, alguém poderia me dizer que o IAT está lá presente, pois tem uma pessoa no trailer improvisado contando quantas pessoas entram no parque. Estão controlando a visitação. Ao que eu responderia, proporcionalmente, estão gerindo 1% e abandonando 99%. Afinal, na comparação, quem geriu um parque quase a 100% foi o Michel enquanto esteve à frente do P.E das Lauráceas. Aliás, aqui está um ponto crucial para quem ainda está olhando as sombras na parede da caverna. Eu pergunto: Como dentro de um mesmo órgão alguns parques funcionam conforme preconiza a lei e outros estão praticamente abandonados? Não dá pra dizer que o IAT não tem um exemplo de como fazer o certo. E pra quem ainda não entendeu a relação das porcentagens, eu criei um estória alegórica para ajudar a entender.

Imagine um hospital público que tem apenas uma enfermeira atendendo. Então chega uma pessoa com dor de cabeça e a enfermeira dá uma aspirina. Depois chega uma pessoa com fratura exposta na perna e a enfermeira medica com uma aspirina, pois isso é tudo o que ela tem. Depois chega um homem com princípio de infarto, e a enfermeira mais uma vez trata com aspirina. Então chega uma pessoa com câncer diagnosticado e a enfermeira, mais uma vez, aplica aspirina. Em algum momento uma pessoa revoltada vai denunciar o governo por abandono dos pacientes. Ao que o governo justifica dizendo que não abandonou ninguém, pois todos foram atendidos e medicados. Contudo, é óbvio que nesse caso o governo não cumpriu a sua obrigação.

Pois é exatamente nesse estado lamentável que se encontram os parques do Marumbi, Pico Paraná e Serra da Baitaca. Um abandono consciente e planejado, afinal, a política de restrição de gastos nas Unidades de Conservação tem sido executada fielmente através dos governos Requião, Beto Richa e, agora, Ratinho Junior. Afinal, se só o paciente reclamar, ele pode ser ignorado. Os governos serão bem-sucedidos em não gastar dinheiro nos parques enquanto o Ministério Público não entrar na jogada.

Recentemente, ouvi dois gestores de parques em Minas Gerais e Rio de Janeiro dizerem como eles imaginam ser a situação no Paraná em relação às UCs. Tanto no Parque Estadual do Ibitipoca, como no Parque Estadual dos Três Picos (parte alta), ouvi eles exclamarem: ‒ Ah, lá no Paraná vocês estão melhores. Ao que eu dizia: ‒ Você que pensa. Quantos funcionários trabalham aqui? E eles responderam: ‒ Em torno de 20 a 25.

Vale lembrar que esses dois parques de montanha têm excelente infraestrutura e imagino, pela quantidade de funcionários, que colocam em prática 100% do que é previsto nos seus planos de manejo, gerando uma qualidade de visitação muito boa. Caro leitor, se atente que estamos falando do Rio de Janeiro, um Estado que tem sua capital afundada em uma guerra civil há décadas e hospitais que lembram muito a estória alegórica acima! Mesmo assim, são Estados que estão andando para frente.

Portanto, retomo o argumento principal desse texto, que é a ignorância crônica dos meus colegas montanhistas a respeito do abandono de nossos parques. Ignorância, não no sentido ofensivo, mas sim no sentido real da palavra. Ignorar os fatos, ignorar as leis, ignorar deveres e direitos, ignorar o conhecimento em última análise. Os exemplos do que dá certo e o que dá errado estão por aí, basta vê-los com mais atenção. Parques que funcionam, comparados com parques que não funcionam entre Estados diferentes e suas políticas, ou mesmo dentro do próprio órgão ambiental do Paraná. Me impressiona as pessoas verem as suas montanhas serem destruídas e não se darem ao trabalho de tentar entender o problema mais a fundo. Isso é, pra mim, idolatrar a ignorância. Afinal eu não sou a pedra da montanha, eu sou um ser pensante.

Enquanto os montanhistas organizados continuarem apoiando as ações emergenciais nos parques, o IAT saberá que eles não representam obstáculo nenhum, e assim a política do abandono continuará sendo empurrada com a barriga governo após governo, independente do partido político. Então, que a FEPAM tome cuidado ao tirar uma selfie ao lado do IAT, pois o penhasco da montanha está um passo para trás. Se vier a cair, não adianta tentar entender porque não lutou pelos parques e aceitou calado o status quo.

Compartilhar

Sobre o autor

Marcelo Brotto é montanhista, ex presidente do Clube Paranaense de Montanhismo e engenheiro Florestal formado pela UFPR.

4 Comentários

  1. Excelente conteúdo.
    Como sempre o amigo descreve em uma leitura clara e direta para que qualquer ser vivente entenda e saiba porque as nossas UCs no Paraná estão sendo “esquecidas” de lado em total abandono.
    Parabéns😎

  2. É preciso união, por parte de todos aqueles ,que possuem inteligência, e admiram a natureza que Deus criou , união para criarem ONGS, Associações, que lutem para se criarem, preservarem nossas UC, já pensou quantas cidades tem nosso PR ,teríamos mais de 400 Associações, gerindo no mínimo uma UC em cada cidade paranaense , cabe mais esforço ou vontade de trabalho prático das ONGS fortes e que existem , para se criarem novas em cada cidade do PR. O governo não irá fazer nada , pois o seu propósito é apenas subjulgar o povo, o problema está em aceitar o cabresto sem questionar.

  3. Getúlio Vogetta em

    Quer dizer que a panacéia é denunciar o Estado para o próprio Estado, personificado no MP? Posso dizer, por experiências em outras áreas (tidas como mais importantes do que o meio ambiente) que não funciona, então porque funcionaria na questão dos parques? Respeito sua pessoa e sua opinião Brotto, mas não me parece o melhor caminho seja esse.

    • Oi Getúlio, só agora vi sua opinião. Eu também respeito a sua opinião, mas o fato é que o método que os montanhistas estão utilizando a mais de vinte anos, que é a conversa amigável com o órgão ambiental, não tem resultado em benefício nenhum. Ou seja, esse método está provado que não funciona. Então devemos sugerir um outro método para convencer (ou na minha opinião, obrigar) o Estado a cumprir a lei. Lembro que quando a antena do Caratuva tombou e funcionários arregaçaram a trilha pra arrumar o negócio, o IAP foi denunciado e em dois dias já estavam lá consertando a cagada. Pra mim isso é uma prova de que o método funciona. Mas, é lógico que eu estou aberto a outras sugestões para fazer o Estado tirar os parques do papel. Eu, respeitosamente, gostaria de ouvir de pessoas centradas como você alguma ideia de como vamos resolver o problema.
      Um grande abraço!

Deixe seu comentário