Transcordilheira 2014

0

A cordilheira dos Andes é o maior “emaranhado” de montanhas existente no planeta. São quase 8 mil quilômetros de extensão, cortando toda a América do Sul em sua face ocidental.

Com a altitude elevada, o clima é frio e o ar rarefeito, a vida é escassa. O ambiente é inóspito.

A fauna, a flora e o homem da região andina sobrevivem por meios próprios. Ver animais pastando naquela região nos dá o significado da força própria que a vida –  naquela região do planeta – alimenta.

Aonde qualquer animal morreria, eles sobrevivem. Lhamas, Alpacas, Vicunhas, Viscatchas e condores são os mais significativos.

O voo soberano do imponente Condor é um espetáculo raro da natureza. Com sua enorme envergadura, a suavidade seu voo é um desfile nos céus.

As curiosas Lhamas, sempre dando o “boa vindas” de forma sorridente. A agilidade das Viscatchias, espiando e fugindo, de tão rápidas é difícil aparecerem  nas fotos.

E o homem. Com uma alimentação adaptada ao ambiente, para lhe dar forças, energia e saúde para sobreviver em um ambiente onde poucos são fortes o suficiente para passar a vida.
Aventurar-se nos Andes é uma questão de escolha e de paixão. Há quem vá uma vez e nunca mais volte. Mas aqueles que se envolveram pelo desafio, paisagem e cultura dificilmente deixarão de dedicar dias de sua vida para conviver com a riqueza que o mundo andino oferece.

Uma lenda inca traduz bem esse conceito. Segundo ela, Pachamama – a deusa da Terra é uma velha que caminha pelos andes e todo estrangeiro que a encontra jamais deixará de voltar para lá.

Em contraponto com a riqueza de cultura, de paisagens paradisíacas e desafios até assustadores, temos uma população extremamente simples e carente de recursos.

Em muitos povoados nem mesmo a língua espanhola é conhecida. O único meio de transporte existente são as mulas e o meio de sobrevivência é essencialmente uma agricultura de subsistência bastante precária.

Alguns nichos de riqueza são encontrados. Povoados habitados por mineradores. Possuem veículos 4×4, moram em casas de alvenaria, bastante simples, mas para os padrões da região, uma vida mais rica.

Os 4×4 mais modernos têm uns 15 anos de uso, foram comprados já usados, em grandes centros, e as casas de alvenaria – em geral – são sobrados com piso de terra ou um contra-piso rústico e sem nenhum acabamento nas paredes.

Para quem conhece mais de perto, a cordilheira é segmentada e cada parte recebe uma denominação e tem suas especificidades.

Na Bolívia, nos arredores do lago Titikaka, ao sul da Cordilheira Apolobamba, até as proximidades de La Paz estende-se a Cordilheira Real.

Muito frequentada por escaladores, seus maciços mais famosos são: Illhampú, Illimani,  complexo Condoriri, e a badaladíssima Huayna Potosi. Mas a Cordilheira Real é muito mais do que isoladamente esses belos nevados. Montanhas menos conhecidas, mas tão belas quanto às famosas complementam a paisagem ao longo de sua extensão. Inúmeras lagoas, intermináveis canyons e muitos pequenos povoados com habitantes que sobrevivem às precárias condições nas proximidades dos rios.

Para ter acesso a tudo isso é preciso em primeiro lugar absorver o estado de espírito da Terra, adaptar-se à cultura e aceitar alguns sacrifícios físicos e riscos.
Em minha quarta expedição ao mundo andino, por diversos motivos, decidi trocar o desafio de ataque ao cume de um seis mil por um treck mais longo, que exige um certo preparo físico e mental.

Decidi então a atravessar a Cordilheira Real desde a pequena Sorata, aos pés do imponente Ilhampú, até as imediações de La Paz.

Sorata é um pequeno povoado –  turístico para os bolivianos – com clima quente, pois está a cerca de 2.600m de altitude e aos pés de belas montanhas como Illampú e Ancohuma.
Por volta das duas da tarde de um sábado, em plena Copa do Mundo, durante o jogo do Brasil e Chile saímos da cidade com o objetivo de subir pouco mais de mil metros de altitude.

Fomos eu, Efraim que é um grande conhecedor da região e o muleiro Joaquim com duas mulas.

A expectativa era fazer a travessia em 12 dias. Por isso a necessidade de duas mulas. Precisávamos carregar suprimentos para todo o percurso, não há como repor ao longo do caminho.

Um dia relativamente pesado, morro acima para vencer a altitude esperada e o tempo estava encoberto por nuvens. Era impossível avistar o Illampú por causa da neblina. Passamos por alguns povoados e no meio do caminho pegamos um pouco de chuva e terminamos o dia, completamente encharcados, pois como a altitude ainda era baixa, a precipitação é água e não neve.

O segundo dia também foi intenso e chegamos a próximo de cinco mil metros onde  atravessamos o paso Illampú e depois descemos fortemente até cerca de 3.800m.
Nesse dia tive um pequeno incidente em uma rocha próximo ao ponto de acampamento com algumas lesões. Nada grave, mas me deixou alerta para o que viria pela frente nos próximos dias.

No terceiro dia, subimos até pouco mais de 4.400m e descemos a 3.500m, o ponto mais baixo da travessia onde passamos por um povoado bastante inóspito. Cocooyo. Ao aproximarmos da civilização um toque de alerta foi acionado e quando cruzamos os homens estavam reunidos na parte alta do povoado.

Em diversos pontos haviam placas com dizeres mais ou menos assim: “Alto estrangeiros! – aqui se paga piso e paisagem”.

A travessia segue dia após dia com o sobe e desce característico. Um Canyon acaba e dá início a outro e assim segue. E vamos subindo e descendo para atingir nosso objetivo.
Em um momento dessa aventura fiquei pensando “quantos Canyons já explorei?” Pergunta sem resposta.

No quarto dia, mais problemas de hospitalidade, dessa vez um pouco mais forte. Em Chajolpaya.

Primeiro uma família incitou um cão a nos atacar. E em seguida um senhor de nome Paschoal que preparou  uma área próxima de sua casa para acampamento, mas como passamos bastante cedo não era atrativo montar acampamento, naquele ponto. Nosso objetivo era chegar a um ponto mais adiante. Mesmo assim insistiu em tentar receber algum dinheiro, afirmando que ele garantia a “segurança” naquelas terras.

Na manhã seguinte, enquanto desmontávamos acampamento esse mesmo senhor chegou até nós e ficou de conversa com o Joaquim –o muleiro.

Percebi Joaquim, muito nervoso nesse dia. A noite no jantar estava muito pensativo.

Na outra manhã conversei com ele e fiquei sabendo que na conversa entre ele e o Paschoal, este disse que um muleiro não havia dado dinheiro a ele e na volta desapareceu, que o  mataram para pegar seu dinheiro.

Ainda estávamos na face leste da cordilheira, habitada por Yungas. Ao sétimo dia deveríamos atravessar para a face oeste, no altiplano, aonde sabíamos que teríamos uma recepção melhor nos povoados. No altiplano, nessa região da cordilheira, é  habitada por Aymarás, um povo extremamente simpático e hospitaleiro.

Na passagem para o altiplano teríamos a troca dos muleiros. Joaquim volta para sua morada e outro muleiro, com experiência no altiplano nos acompanha até o fim da jornada.
Joaquim ficou bastante preocupado todos os dias seguintes que nos acompanhou.

Durante três dias fomos seguidos por nuvens que tornaram os dias mais frescos. Mas em uma madrugada ventou muito forte, e o céu ficou completamente limpo.
Aqui, serpentear é para os fracos, na transcordilheira é morro acima e no quinto dia atingimos o primeiro cinco mil metros de altitude da travessia – trata-se do paso Negruni e no dia seguinte mais um cinco mil foi atingido.

Mas nesse dia compensamos o que avançamos nos dias anteriores e a uma da tarde estávamos no ponto de acampamento, aonde teríamos a troca das mulas. Por esse motivo era impossível avançar para um acampamento mais adiante, desencontraríamos do próximo muleiro.

Montamos acampamento e dispensamos Joaquim.. Aproveitamos para descansar e Joaquim partiu mais cedo de volta para seu lar, na esperança de desmoronar qualquer tentativa de ataque em sua volta pois ele estava meio dia adiantado.

Com o novo muleiro foi possível avançar a travessia e cortar dois dias da previsão inicial e nos reprogramamos para chegar em Tuni no decimo dia da travessia.
 
Após a travessia para o altiplano o estresse da inospitalidade passou. Porém os perigos são outros. Em alguns pontos é preciso muito cuidado pois o terreno é muito mais arriscado.

O clima também é um pouco mais frio. Mas para isso estávamos preparados.

O nono dia foi um dos mais intensos. Foram dois cinco mil que avançamos, sendo o segundo um pouco mais cansativo mas a visão é compensadora.

Descemos esquiando nas morainas e tive um pequeno problema no joelho direito que me deixou com dores.

Chegamos ao lado da lagoa Uri Kkota onde montamos acampamento para a última noite da travessia. Pela primeira vez tivemos contato com outros aventureiros, pois aqui estávamos há um dia do Condoriri que é bastante frequentado.

Há um pequeno abrigo no local, montamos barracas entre o abrigo e o lago. Ao fundo do lago, a vista é do Pico Áustria e Cabeça do Condor. Visão espetacular.

Acordamos cedo para a subida ao Áustria e em seguida atravessar o Condoriri e descer até Tuni no mesmo dia. Normalmente leva-se dois dias para esse trajeto.

Após o café, saímos do acampamento. O muleiro Rogelio ficou para desmontar nossas barracas mais tarde, após o gelo ter sido eliminado pelos primeiros traços do sol.

Saímos pelo lado esquerdo da lagoa. Logo que iniciamos pelo caminho mais abaixo, percebemos que não havia passagem, pois o nível de água da lagoa estava alto.Tivemos que voltar um pouco para pegar uma via mais acima.

A lagoa tem quase 2km de extensão, e a caminhada é para cima, mas num nível bastante tranquilo de subida, porém quanto mais ao fundo da lagoa, vai ficando perigoso, a passagem pelas morainas é estreita e escorregadia,  e um pequeno escorregão pode resultar em acidente feio.

Para atravessar – ao fundo – do lado esquerdo para o direito da lagoa é mais perigoso ainda. E para piorar, estava com óculos de sol normal e o sol batendo na Cabeça do Condor, bem à nossa frente, iluminava mais que diamante, cegando a visão.

Feita a travessia para o lado direito, inicia uma pequena escalada em rocha de nível tranquilo, mas bastante exposto e sem equipamentos.  Não pode errar. Tem altura suficiente para  um acidente fatal.

Após essa etapa, é caminhada, mas o nível de subida complica cada vez mais.

Em pouco tempo observei uma passagem que parecia ser o cume. Mas à medida que avançava, pela altitude do GPS, percebi que seria mais acima.

Nesse ponto é controlar respiração, e exercício de controle de ansiedade, pois os segundos são pesados, cada passo exige um esforço grande, na altitude, já na casa dos 5 mil.
Observei um novo ponto que novamente julguei ser o cume. Pois havia alguma marcação em metal e um totem.

Ao me aproximar verifiquei que era uma homenagem a um montanhista alemão que faleceu naquele local. O cume estava – nesse momento – poucos metros à frente.
Ao chegar ao cume – como em qualquer montanha, a emoção sempre nos surpreende. Um montanhista jamais deixará de ter essa emoção.

Afinal naquela montanha é a primeira experiência. Mesmo que já tenha atingido outras maiores e mais difíceis. Perder essa emoção seria perder a essência de ser montanhista.
O visual é um show a parte. Lago Titikaka, Vulcão Sajama, Cidade de El Alto (La Paz), e todo o complexo Condoriri.

Mais um 5 mil para o currículo, mas com um sabor especial, de ser o desfecho de encerramento da transcordilheira.

Foram cinco passagens acima dos  5 mil de altitude, sendo duas no dia anterior. Minutos após iniciamos a descida por outra via, com destino ao Condoriri. A via do condoriri é somente caminhada e logo chegamos ao acampamento. Passamos por ele e seguimos em direção a Tuni. Dalí para frente a trilha fica muito sem graça. Passamos pela rinconada, ultimo ponto aonde chega um veículo, mais próximo do Condoriri.

Vale a pena combinar o resgate alí, pois o caminho é em boa parte pela carreteira, e sem atrativos visuais. Chegamos em Tuni  por volta de 14:00hs, onde há uma grande  barragem e a uma visão diferenciada do Huayna Potosi – a única vantagem dessa pernada de 8Km, desde o acampamento Condoriri até o povoado.

A travessia completa da Cordilheira Real é muito pouco realizada. O caminho é longo e são muitos dias. A dificuldade de logística, e até mesmo a hostilidade pelo caminho está eliminando essa travessia que poderia ser muito mais utilizada.

A Convivência com a cultura Aymará, me proporcionou um pouco de aprendizado na língua deles.  Tive a oportunidade de ver pela primeira vez o acasalamento das lhamas e o contato com a Terra, as rochas, o frio, as montanhas que nos inspiram. Tudo isso lá, onde o céu é mais azul.
 

Compartilhar

Deixe seu comentário