Travessia Alpha-Crucis, dia 6

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*03 de Julho de 2012, terça-feira 4:30h* – Acordamos com a cachorrada latindo longe e correndo feito loucos em nossa direção. Em seguida, ouvimos passos rápidos de animal pesado cruzando o bosque logo ao nosso lado. Só vimos o vulto cruzando velozmente a meros cinco metros do acampamento. Os cães mantinham distancia segura enquanto ladravam alvoroçados. Cheguei pensar que era Samara Morgan saindo daquelas churrasqueiras de pedra que mais parecem um poço, a procura do Jurandir. Mas na verdade não havia duvidas que era um gatão dos grandes. Por quase uma hora ficou enfunado na mata, e nós atentos, escutando seu rugido.

Saquei o facão da mochila e deixei pronto pra uso. Não houve mais como dormir depois disso. Mas para nossa sorte, a aurora estava próxima. Assim que clareou, ainda tiramos alguns cochilos antes de iniciar os preparativos pra segunda fase. Despertamos de vez com o barulho do machado do Espalha-Brasa, que picava lenha nos fundos da casa, sob o sol da manhã.
Decidimos que era hora de abrir a sacola de suplementos. Nela continha além da ração fria que consumiríamos na trilha, a comida quente que não foi necessária preparar na noite anterior, devido a pizza que devoramos no recanto. Decidimos então levá-la para preparar na única noite da segunda etapa, mesmo sabendo que teríamos que carregar também gás, fogareiro, panela, e talheres.
A ração fria era composta por mix de castanhas e amendoins, chocolates, torrones, salgadinho, e isotônico em pó, e desta vez deverá resistir até o fim da travessia, aos pés do Morro do Canal. Até existia outro estoque logístico escondido perto da vila do Marumbi, mas nele só continha alimentos para cozimento, pra ser preparado na casa que emprestamos pra passar a noite.
Pra evitar sobrepeso, tivemos que nos livrar de alguns itens, que foram doados pro nosso amigo Espalha-Brasa. Entre eles, os horríveis amendoins crus do Jurandir, dos quais tratou de se livrar rapidamente, trocando pelo saboroso mix de castanhas do novo cardápio. Além dos alimentos, havia também uma PET 2 litros de Guaraná, o qual usamos pra encher nossos reservatórios. Um litro pra cada.
Finalmente no fundo do pacote, havia um traje completo, inclusive com uma bota semi-nova. O traje manjado usado na primeira etapa, além de imundo, estava praticamente destruído, e foi inteiramente pro lixo após uma última foto de recordação. Levamos horas pra reorganizar tudo dentro das mochilas que voltaram a ficar lotadas e pesadas.
Agora só faltava fazer a higiene pessoal no rio, e dizer “até breve” pro Espalha-Brasa. Durante o dedo de prosa, nos serviu uma xícara de café. Enquanto tomava, comentei sobre os gatos grandes que ele criava no quintal. Ao contar sobre o facão que deixei ao lado, ele perguntou: Pretendia fazer o que nela com o facão? Cócegas? – E gargalhou.
A conversa estava boa, mas estávamos bem atrasados. Tiramos algumas fotos, que acabou se somando a lista de presentes que prometi levar da próxima vez que passasse ali. Nela já estava um fogareiro a gás, e um bolo de fubá. Como garantia deixamos com ele algumas coisas que não íamos usar mais, afim resgatar quando voltássemos com o presentes. Entre estas coisas ficou o facão, que prometeu entregar lambendo de afiado.
Finalmente às 10:40h partimos rumo ao Morro Mãe Catira, primeira montanha desta segunda etapa. Incluímos uma marca exatamente no inicio da trilha antes de dar os primeiro passos encosta acima. Sol alto, tempo quente, músculos frios, e mochilas pesadas, contribuíram pra um ritmo inicialmente lento. Já estava banhado de suor antes mesmo de chegar ao rio. Aproveitamos a chance pra beber água e lavar o rosto.
Ao meio dia chegamos à encruzilhada Mãe Catira/Polegar. Escondemos as mochilas pra apanhar na volta, e fomos apenas com câmera e material de registro rumos as duas últimas montanhas deslocadas do trajeto. Fazia um bom tempo que não andava dali pra frente, pra ser mais exato, desde 07/07/2007 quando subimos em 7, às 7:00h pro morro do 7.
Naquela época, a trilha ainda era boa, bem diferente do chiqueiro que se tornou. Mesmo com o tempo seco há vários dias, era quase impossível não enfiar o pé na lama, o que me irritou, pois a bota era nova. Não me agradou muito a idéia de emporcalhar ela logo no inicio da travessia da Farinha Seca.
Em minutos atingimos o cume, e num tronco robusto fixamos a marcação da 19ª montanha da travessia, o Morro Mãe Catira. Em seguida despencamos no imenso vale rumo ao Morro do Sete. A encosta bloqueava a brisa, mesmo na sombra, aquilo estava um forno. Já imaginamos como seria a volta subindo aquilo. No único ponto de água, a mesma estava empoçada, mas bebemos mesmo assim. A trilha continuava um fedorento e irritante corredor de lama. Perto do topo, outras calamidades da qual essa montanha é vítima. Um verdadeiro emaranhado de trilhas secundárias, que muitas vezes se confundem com o principal. O Morro do Sete deixou de ser um destino de montanhistas, infelizmente.
Atingimos o topo às 13:10. Na caixa de cume, uma caderneta bem nojenta. Sorte que trouxemos dois cadernos novos, e um deles ficou por ali. Colamos a identificação da travessia na capa, e inauguramos a primeira página com o relato padrão. Ficamos por meia hora tomando vento na cara, e criando coragem pra partir. Iniciamos o retorno às 13:40, e de cara perdemos uns minutos pra encontrar o caminho certo. A volta foi repetição da vinda, só que subindo, porém como previsto, bem mais cansativa. Nem acreditamos quando chegamos de volta nas mochilas. Foi uma satisfação saber que agora não haveria mais montanhas desviadas da rota.
Às 14:45h começamos descer as encostas inclinadas rumo ao riacho borbulhante no fundo de vale entre Mãe Catira e Polegar.  Finalmente água abundante e de ótima qualidade para tirar os sal da cara, e renovar os ânimos. Fixamos nova marcação, e o próximo  passo era encarar a crista do Polegar sob sol implacável. Chegamos ao 21º cume da travessia, o Polegar, às 15:40h. Aplicamos o adesivo, tomamos fôlego, e contemplamos as impressionantes escarpas do Morro Sete. Sem demora partimos, pois o sol descia rápido, e a jornada deste dia ainda demoraria muito a acabar. Tínhamos ainda quatro cumes pela frente antes do merecido repouso.
O próximo da lista era o Casfrei. Mais uma longa descida até outro fundo de vale, e então subir. Essa era nossa sina sem fim. No fundo do vale deixamos nossa marca mostrando o caminho correto à esquerda das pequenas gretas. Pisamos às 16:45h no Casfrei, 22ª montanha.
Ficamos ali o tempo suficiente para marcar seu cume, e então voltamos a descer um pequeno vale. Ao chegar à sua parte mais baixa, colocamos uma das mais importantes marcações nesta etapa da Farinha Seca, pois ali a trilha se divide. A da esquerda, segue rumo ao Esporão do Vita por caminho recentemente aberto por mim e Jurandir, em 2011, e foi está que recebeu a marcação. A da direita é roubada, pois leva ao belo e sinistro cânion do rio Taquari.
Lugar de rara beleza, mas que pode te matar num piscar de olhos, se optar por enfrentá-lo subindo. Seguindo pelo esporão, chegamos aos campos às 17:25h, bem a tempo de assistir o deslumbrante sol poente. Esse evento, somado a entrada na mata logo à frente, traria escuridão em pouco tempo. Deixamos os campos do Esporão e rumamos à direita, para chegar ao rio Taquari. Neste ponto ele se apresenta mais amigável, mas mesmo estando muito perto de sua nascente, ainda havia duas cascatas a serem transpostas. Foi nessa hora que apelamos para as lanternas.
Quando o rio começa aplainar, significa que é hora de procurar uma saída à direita. Sobe-se por ela, e algum tempo depois, já sai nos campos que antecedem o cume do Tapapuí (00B). Ao chegar nestes campos, tivemos o privilégio de apreciar o nascer da lua cheia, refletindo sua luz prateada nas águas da baia de Paranaguá. Mais um belo presente dos céus. Instante depois, pontuamos a 23ª montanha, onde fixamos o adesivo de forma precária devido na vegetação rala.
Marcava 18:30h neste cume, quando aproveitei o contato visual com Curitiba para ligar e confirmar o que as estrelas e lua já nos contavam: O tempo continuaria estável. Pouco tempo parados ali, o vento e o frio trataram de nos espantar daquele campo aberto. Agora era novamente descer até chegar à nascente do rio do Meio, e então continuar descendo por ele mais trezentos metros, por rampas escorregadias, até o ponto onde o deixaríamos pela margem esquerda pra rumar pro Farinha Seca.
Foi nesta saída do rio do Meio, e às 19h que decidimos preparar o jantar. Era cedo ainda, mas não sabíamos a situação dos rios dali pra frente, e por via das dúvidas, decidimos cozinhar ali mesmo, pela primeira vez na travessia. Cardápio: risoto. Cozinheiro: eu. Em vinte minutos o prato do Jurandir estava servido. Depois preparei o meu. Aquilo era luxo demais para uma travessia daquela, num lugar daquele. Quando terminamos, perguntei pro amigo se ia outro. Resposta afirmativa. Enquanto cozinhava, ainda decidimos fazer um suco.
É muito gratificante um momento como este depois dum dia inteiro de atividade continua, mas não podíamos esquecer que ainda demoraria um bom tempo até a pernada do dia acabar. Tratamos de limpar tudo e ensacar novamente, pra enfrentar as duas montanhas que ainda nos separavam do esperado repouso. Redondos de tanto comer, pelo menos fome não seria mais problema. Logo após fixar uma nova marca na saída do rio, encaramos a subida do Farinha Seca.
A parte que antecede o primeiro platô de campo é empinada, mas justamente isso faz com que a ascensão renda bem. Então sucede uma série de pequenos sobe-desces passando por alguns falsos cumes até chegar ao ponto onde há uma saída a direita que desce rumo ao Morro dos Macacos. Largamos as mochilas ali, e seguimos apenas com material de marcação para o cume, que fica a cinco minutos deste lugar.
Às 22:10h chegamos ao cume arborizado do Farinha Seca, 24ª montanha. Em meio a um abrigo natural entre as rochas, senti uma vontade quase irresistível em pernoitar por ali mesmo, e se o companheiro tivesse dito uma única palavra em apoio a isso, era ali mesmo que passaríamos a noite. Mas não estávamos pra brincadeira, e sem perda de tempo voltamos nas mochilas e seguimos já parecendo zumbis, rumo ao objetivo final do dia.
Logo na saída do Farinha Seca, o terreno é meio perigoso, especialmente para se fazer a noite. Desce forte, e passa por algumas grandes rochas, com gretas profundas. Somente quando chega ao riacho é que as coisas melhoram. Neste havia água em abundancia, mas ainda não sentíamos sede.
A trilha segue um bom tempo pelo leito, até que toma a esquerda pela mata num terreno plano e bom de andar, e chega noutro rio com fundo de areia. Foi neste que reabastecemos as garrafas.
O que vinha a seguir era uma pequena encosta que leva a um trecho de macega, mas com visual pra oeste, e depois mergulha na mata novamente descendo pro leito seco do fundo de vale. Ali deixamos colocamos uma marca, e finalmente enfrentamos a crista final que leva ao cume. Já bem perto, o cansaço era tanto que nem tínhamos ânimo de sentir felicidade, e tudo que queríamos era chegar duma vez e se jogar no chão.
Exaustos, silenciosos, à meia noite e meia demos por encerrada as atividades com a chegada ao Morro dos Macacos. 25ª montanha da Alpha Crucis. Sem muita comemoração, simplesmente armamos o bivaque e caímos em sono profundo, sem perder mais um minuto sequer.
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Sobre o autor

Elcio Douglas Ferreira é um dos maiores personagens do montanhismo paranaense. Experiente, frequenta nossas serras há mais de 35 anos, sendo responsável pela abertura de inúmeras trilhas e travessias. Foi um mentores da Travessia Alpha Crucis, considerada como a maior e mais difícil travessia entre montanhas no Brasil, que ele fez pela primeira vez em 2012. Possui experiência em alta montanha, já tendo escalado O Illimani na Bolívia e o Aconcágua na Argentina em poucos dias num esquema non stop impressionante.

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