Travessia da Farinha Seca Real

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Durante 2011 todo, foram várias investidas por três frentes de trabalho distintas (Graciosa/Rio do Meio/Usina do Marumbi), onde eu e mais meia dúzia de amigos construímos o caminho para a travessia da Farinha Seca. Tratava-se do elo central da travessia Alpha Crucis, e o último que faltava para ligar três serras numa única jornada, a qual foi realizada por mim e Jurandir Constantino no inverno de 2012.

Entretanto o que poucos sabem, é que finalizar a Farinha Seca via Morro do Balança, para então descer até Usina do Marumbi (UHM), abrevia em 1/3 a travessia completa. Pelo certo, depois do Balança o trajeto deveria continuar rumo aos Campos Ciprianos, descer um imenso vale até cruzar o recém-nascido rio Nhundiaquara na sua parte alta, e subir tudo novamente para atingir o maciço dos picos Coroados e Isolado. Por fim, baixar destes até a Represa Véu de noiva, onde a travessia estaria verdadeiramente finalizada.

Este trecho faltante entre Balança e Véu de noiva, mede 5.5Km. Ou seja, se antes a travessia tinha extensão de 11.5Km e 10 cumes, nesta versão completa seriam 17Km e pelo menos 13 cumes. O novo traçado também eliminaria um grande problema da rota atual: cruzar o irritadíssimo rio Ipiranga cheio em dias chuvosos. Trata-se de um fator condicionante e de alto risco, que causa grande apreensão em montanhistas surpreendidos por tempestades no meio da jornada. Isto limitava a travessia a condições climáticas específicas. Diante destes argumentos, e visando ousados projetos futuros, decidimos iniciar a construção do novo trecho.

A época escolhida foi o inverno de 2017. Entramos sempre por Borda do campo, via Itupava, e seguindo até a Represa Véu de noiva. Lá, a moleza acabava. Foram duas investidas, mas como já há relatos destas, passo diretamente para a terceira, a qual acabou se tornando, de forma totalmente despretensiosa e por força do acaso, na realização da própria travessia. O feriado de 7 de setembro se aproximava, e com ótima previsão de tempo. Assim, com vários dias de antecedência já convoquei a galera para a nova encrenca.

Israel Silva, esperto, já foi avisando que levaria esposa e filha ao Pico Paraná. Porém outras vítimas morderam a isca, e desta vez até uma bela moça, convidada de Jurandir Constantino. O time ficou então composto por este, Jéssica Pereira, Raffael Galápagos, e eu.

07 de Setembro de 2017 – Quinta-feira

Combinamos o encontro de todos, fora o Jurandir, no terminal do Guadalupe às 6hrs do dia 07/09/17, de onde tomaríamos o latão rumo a Quatro Barras. Eu e Raffael chegamos juntos, e Jéssica pouco depois. Descobrimos que há pouco havia saído o que ia via BR116, e que, por ser feriado, outro demoraria. Embarcamos no busão via Graciosa que logo apareceu, mesmo cientes da viagem mais demorada. Papo vai papo vem, chegamos ao terminal de Quatro Barras, onde descobrimos que o próximo ônibus para Borda do campo, demoraria 40 minutos. Eis que a Jéssica teve a brilhante ideia de tentar Uber. E não é que havia um por ali. Por R$7,00 cada, estávamos no início de Itupava por volta de 8hrs.

Cadastro preenchido, iniciamos a aventura. Teríamos mais de 3 horas para chegar na Estação Véu de noiva e encontrar Jurandir que viria de Porto de Cima, na outra extremidade do Itupava. A hora marcada para o encontro era 11:30. Pelo caminho, fomos conhecendo melhor Jéssica. A companhia feminina é sempre bem vinda e agradável, sem contar que ela anda bem pra caramba. Ao fazer um elogio, ou dizer algo que lhe agradava, lançava um sorriso juntamente com o bordão: “Olha só que sucesso!”.

Tudo ia muito bem até seguirmos via trilhos após a Casa do Ipiranga. Imediatamente ela perguntou se cruzaríamos pontes. Só uma, respondi. A garota queria dar meia volta, e voltar para casa. Afirmou que não atravessaria pontes de jeito nenhum. Acontece que há pouco tempo, juntamente com Jurandir, haviam vivido uma experiência traumática, ali mesmo naqueles trilhos, onde por muito pouco não houve um acidente fatal ao serem surpreendidos pela litorina no meio de uma ponte. Tiveram que se jogar do lado e ficar precariamente pendurados, de cara com a morte. Conseguimos convencer ela a prosseguir, sob a promessa que daríamos um jeito ao chegar na dita ponte. Porém, a partir deste ponto, Jéssica ficou nitidamente angustiada. Pelo caminho, fomos oferecendo alternativas. A mais promissora era que cada um de nós ficássemos em um lado da ponte, na curva que antecedia, monitorando se vinha o trem, enquanto ela atravessava. Ela até concordou, mas ao chegar na ponte, não teve jeito. Travou total!

Trilhos antes da estação Véu de Noiva

Ficamos meio sem saber o que fazer diante do impasse. Eis então que ela resolve descer pelo lado, e cruzar pela correnteza do rio Ipiranga. Aquilo nos pareceu muito mais arriscado e complicado, e nos fez entender até onde pode chegar um trauma. Lá foi ela, e nós ficamos só observando. Em pouco tempo desceu até o leito, e como o rio estava baixo devido à seca, atravessou sem grandes dificuldades. Subiu o barranco do outro lado, e finalmente estava superado o obstáculo. Menos de quinze minutos depois, chegamos a bela represa Véu de noiva, com suas águas cristalinas emolduras pela mata atlântica, contrastando com o céu azul e sol radiante. Realmente um dia perfeito!

Ruínas da estação Véu de Noiva.

Minutos à frente e chegamos nas ruínas da estação com mesmo nome, e ponto de encontro com Jurandir. Eram 11hrs10min, e estávamos ligeiramente adiantados. Tivemos tempo de tomar um folego e fazer um lanche, até que ele chegasse. Não demorou muito e logo avistamos a figura vindo decidido pelos trilhos. Comemoramos, pois há sempre aquele receio que não apareça. Calorosas saudações ao grande amigo, e finalmente o time estava completo. Nada mais, além de um registro fotográfico, impedia que a grande aventura finalmente se iniciasse.

Barragem Véu da Noiva.

Exatamente meio dia farejamos o rasto de três meses atrás, tendo como meta, consolidá-lo. Está parte iria dar trabalho. Porém entre o cume do Coroados e o fundo do vale, como já tínhamos feito um bom trabalho, certamente seria suave. Do fundo do vale até o Balança estava a provavelmente a pior parte, pois além de ser terreno desconhecido, seria predominância de subida. O plano era só chegar ao cume do Balança no dia seguinte, onde pernoitaríamos para finalizar a aventura no dia seguinte, descendo pela trilha clássica até a Usina do Marumbi (UHM), e de lá para Porto de cima, a tempo de pegar o único ônibus vindo de Morretes que sobe pela estrada da Graciosa, às 16:15.

Ali no início não estava fácil seguir o rasto. Quando eu e Raffael passamos a primeira vez, por ser área de bosque boa de andar, e por não saber se daria passagem na muralha com mais de dois quilômetros de extensão que bloqueia o caminho, optamos por não abrir. Fizemos apenas algumas marcas discretas e bem espaçadas. Tanto que na volta daquela primeira investida, nem encontramos o mesmo caminho. E desta vez também não. Mas nem quisemos perder tempo procurando marcas quase invisíveis. Seguimos em curva de nível, subindo levemente no sentido nordeste, e construindo novo caminho. Avançávamos satisfatoriamente ao embalo de boas piadas, e ótimas histórias. Numa regra de cavalheirismo às avessas, Jéssica vinha no fim da fila encarregada de colocar de tempos em tempos fitas azul-metálicas com 30cm de comprimento, que trouxe de casa previamente cortadas. Já os marmanjos, revezavam diretamente no front, com a quiçaça.

Aos pouco a inclinação foi aumentando, e o mato ficando pior. Eu e Raffael começamos sentir saudades do traçado original. Mas já era tarde demais para desperdiçar tempo e energia tentando encontra-lo, pois teríamos que descer muito sentido sudeste para isso. Somente muito para frente e após cruzar o último de três córregos, distantes em média 300m um do outro, conseguimos interceptar a picada original. É justamente neste ponto que há uma mudança de rumo, de sudeste para noroeste. Começamos subir forte até chegar ao ponto denominado “Escadaria”. Recebeu esse nome porque é um leito seco, e realmente forma uma escadaria por onde é fácil escalar, e finalmente chegar numa senda. Pegando a esquerda e subindo por ela mais 50m, chegamos ao cume do Coroados. Hora de comemorar o primeiro sucesso da aventura, especialmente para Jéssica e Jurandir, a primeira vez neste cume.

Acabamos levando mais de seis horas para abrir este trecho, e já passava das 18hrs. Um nevoeiro denso tapava tudo, deixando uma atmosfera ainda mais sombria com a chegada da noite. Decidimos que era hora de procurar um local pouco mais protegido e plano para montar o bivaque. Pouco adiante do cume, achei o local. Porém teria que dar uma roçada bacana para que coubesse nós quatro. Iniciamos o serviço que em vinte minutos estava concluído, e cada um pode montar seu mocó precário. Ainda sobrou tempo para ajudar a Jéssica, e encorajá-la para seu primeiro bivaque.

Tudo arrumado para dormir, e já no breu da noite, ainda precisava verificar uma coisa: na primeira vez que estivemos ali, o bivaque foi uns cem metros adiante, num lugar que batizamos de Metano. Na ocasião também chegamos quase noite. Na mesma urgência de encontrar rápido um lugar, acabamos nem abrindo a trilha no padrão ideal. Não estava afim de dormir com a dúvida se acharíamos o rasto facilmente na manhã seguinte. Como era cedo ainda para deitar, decidi ir lá sozinho verificar. Peguei facão, lanterna de cabeça, e fui. Com muita atenção, farejei e melhorei o rasto, abrindo até chegar ao Metano. Dali em diante, estava ciente das condições da trilha, e então retornei tranquilo ao acampamento. Comilança, papo-furado, e risadaria foram longe. E antes de apagar de vez, ainda tive que aturar as gozações pertinentes a meu isolante térmico fodido de loja de sapataria, e a manta de oncinha comprada nas lojas Havan.

08 de Setembro de 2017 – Sexta-feira

Houve garoa durante a noite, e minha manta umedeceu, mas não o suficiente para que passasse frio. A selva brilhava de molhada quando amanheceu, e o nevoeiro ainda dominava. Jéssica já assumia a tempos a culpa pelo mau tempo. Dizia que era pé frio, e que atraia chuva para suas trips. Jurandir ao invés de amenizar, debochava, colocando lenha, as vezes gasolina. Acontece que eu havia analisado bem a previsão, e me arriscava em dizer que nossa boa sorte superaria seu pé frio, e o sol apareceria. Às 7:35, após devorar umas porcarias e desmontar acampamento, partimos rumo ao fundo do vale. Mas nem tudo foi levado. Jéssica se afastou um pouco do local do acampamento para se trocar, e pendurou num galho uma gargantilha com uma ônix. Acabou esquecendo. Lembrou só quando já estávamos muito longe. Até hoje aguarda resgate.

Seguimos motivados rumo norte, e em pouco tempo chegamos na passagem entre rochas, que constitui um dos mais belos lugares que passa nossa trilha. Eu estava na dianteira, e com o radar ligado afim de resgatar o facão que acabei esquecendo no dia da abertura, quando na volta parei para descansar e esperar o Raffael. Ao chegar no lugar, lá estava o metal, exatamente onde havia deixado três meses atrás. Em seguida os demais encostaram, e mostrei o achado. Jurandir de imediato se apossou do mesmo, pois nem havia trazido o seu na promessa de que este estaria lá esperando por ele. Até o fundo do vale as ferramentas teriam vida fácil, pois o ótimo serviço feito na abertura, agora mostrava seu valor. Exatamente às 8:50h, nivelamos com as pedras cobertas por musgos pré-históricos e águas calmas do alto Nhundiaquara, a apenas algumas centenas de metros abaixo da sua nascente. Ali fizemos uma pausa para lavar o rosto, acordar de verdade, e para mais uma boquinha. Enquanto isso, já fui procurando uma boa saída para continuação da trilha. A partir deste ponto, a moleza acabaria.

Orquídea Sophronitis.

A parte boa, era que ali estavam três cabras calejados com esse tipo de “diversão”. Às 9:10 avançamos sobre o desconhecido, encosta acima. Assumi a dianteira do serviço nesta primeira etapa. Jurandir vinha retocando logo atrás, Raffael dando a acabamento final, e por fim Jéssica marcando. Cada um assumia a vanguarda por aproximadamente vinte minutos, até passar a vez para o próximo, e seguir para o fim da fila cuidar do acabamento. Somente Jéssica, por opção própria, ficava sempre por última na fila, dando apoio moral e marcando a mesma. Desta forma, e sempre procurando as melhores passagens entre as rochas e a vegetação, fomos avançando de forma bastante satisfatória. Era época de florada da Sophronitis coccínea, bela orquídea endêmica da nossa serra. Além da beleza dos cachos vermelhos pendurados nas arvores, vinha a descontração. Jéssica gosta de conversar com plantas, pedras, montanhas. Tratava essas flores como se fossem bebês. Isto por si só já era muito divertido. Entretanto ficava mais ainda quando Jurandir argumentava, debochadamente, que plantas e pedras não possuem intelecto para compreender humanos. Jéssica, nitidamente irritada, rebatia. Então um debate fútil, inútil, e acalorado se desenrolava, para delírio total da plateia. Foi neste embalo que exatamente 12:15 atingimos o topo da crista. Também foi nesta hora que Jurandir, no seu turno, comunicou quem vinha atrás que havia interceptado uma trilha. Opa, opa! Como assim? Pois não é que era uma trilha mesmo, e das boas. Aberta nos mesmos padrões de qualidade nossos. Simplesmente estava ali, cruzando em nossa frente.

Vínhamos pela encosta, no sentido sul/norte. E milagre seguia pela aresta, sentido sudoeste/nordeste, justamente o sentido que pretendíamos seguir quando atingíssemos ela, rumo ao Balança. Ficamos realmente surpresos. Isso era incrível. Se mantivesse o rumo nordeste, seria excelente para nós. Nos pouparia muito tempo e energia. Provavelmente uma dezena de horas até o Balança. Mas a pergunta era: Quem teria feito esta trilha no meio do nada? Seriam os Elfos? Ficamos realmente intrigados com está trilha “élfica”. A interrogação sobre a autoria, instigava nossas mentes desnutridas. Não sabíamos de onde vinha, nem para onde ia, mas por dedução lógica e conveniência, optamos por seguir à direita, subindo, e azimutando o Balança.

Duzentos metros a frente chegamos num pequeno cume. Raffael não perdeu tempo e batizou de Galápagos, mesmo sob protestos da Jéssica, que há tempos vinha falando em batizar uma montanha de “Carajas”(?). Nesta hora o tempo começou abrir, e pudemos ver algumas montanhas em volta, por entre nuvens ralas que cruzavam de todos os lados. Daí pudemos ver mais abaixo, uns trezentos metros, campos. Seriam os Ciprianos? De acordo com o traçado que desenhei para o GPS, sim. A trilha seguia para lá.

Num pinus raquítico e solitário havia uma pequena fita amarrada na copa. O mistério só aumentava. O tempo abriu de vez e descortinou tudo, inclusive o Marumbi. Jéssica iniciou novo diálogo amoroso, desta vez com a montanha. Novamente virou alvo das gozações do Jurandir. e a nova treta estava armada. Mais à frente mergulhamos numa matinha de campo-montana, onde corria água fresca e cristalina. Com uma trilha tão boa a frente, nos demos ao luxo de fazer nova pausa para beliscar algo e beber suco. Confabulávamos sobre os mistérios do universo, e sobre quem seriam os malucos que abriram a trilha Élfica.

Nos campos.

Continuando a jornada, farejamos o rasto sobre os Campos Ciprianos. Campo é sempre problemático, pois não há o que abrir. O máximo que se pode fazer, é pisar bem o chão para marcar o caminho. Mas quando adentramos de volta na mata, lá estava a trilha, nítida. Já passava das 14hrs quando chegamos num local de acampamento. O chão estava forrado com folhas de guaricana, e havia um cepo de árvore que não foi cortada, mas sim cerrada. Jurandir dispara: “Isso parece coisa do Simepar!” E não é que o lazarento estava certo! Mais tarde, através de uma curtida de foto no Facebook, descobri um dos autores da trilha Élfica: Josafat. Este relatou que estava com Suzuki, Emerson [Simepar], Alex, Diego, e Mauricio. Construíram a trilha a partir do primeiro desvio ferroviário após a Casa do Ipiranga, sentido litoral. Os principais objetivos eram Morro Isolado, e Salto Rui Barbosa. Por sinal, este último estava a menos de trezentos metros abaixo do ponto que interceptamos a trilha. Se nós, ao invés de entrar a direita rumo ao Balança, descêssemos a esquerda, em menos de dez minutos estaríamos no salto.

Todos agradecemos a estes montanhistas, desbravadores como nós, o bônus inusitado desta bela e inesperada trilha. Pouco adiante do acampamento, o declive suave da trilha, acentuou-se, e ouvíamos o ruído de águas nervosas descambando na grota rumo ao litoral. Um lugar extraviado no meio da serra do mar, incrível, e de aspecto pré-histórico. Chamamos inicialmente de rio perdido. Mas então ficamos sabendo pelos autores do caminho, que tais águas haviam sido batizadas de Rio Imortal. O ponto de cruzamento acontece algumas dezenas de metros antes de uma queda incalculável, que é o próprio degrau da serra. O desfecho dramático da longa precipitação da cota de 920m onde estávamos, inevitavelmente seria no rio Nhundiaquara, na cota 300. A continuação da trilha era diretamente na margem oposta, por uma encosta íngreme composta por rochas e raízes. Isto garantiu ótimo rendimento e velocidade de ascensão.

Em pouco tempo, o terreno foi aplainando-se sentido leste. Ainda cruzamos um último e pequeno córrego. Este, de águas bem calmas. Não eram 15hrs quando o encontro entre trilha nova, e a que abrimos em 2011, compartilharam a mesma tela do GPS. A euforia foi total! Só quem realmente abre trilhas na serra, pode ter uma mínima noção do tempo, energia, suor, e sangue, que poupamos ao encontrar este caminho mágico. Chegando muito perto do encontro, notamos que a saída era propositalmente muito discreta e protegida. Nós, totalmente alinhados filosófica e éticamente com os autores, assim a mantivemos.

Impressionados com o rendimento da caminhada, decidimos que nem seria mais interessante pernoitar no Balança, para retornar via Usina no dia seguinte. Vislumbramos naquele momento uma nova e atraente perspectiva, inédita para todos ali: realizar a travessia da Farinha Seca Real. Ninguém estava disposto a desperdiçar está oportunidade única, e motivos não faltavam. O tempo estava perfeito. Tratava-se de uma travessia realizada apenas um ou duas vezes. Nunca havia envolvido tantos os cumes. O tempo de travessia seria recorde. O traçado era inédito e minuciosamente elaborado. Além do mais, iríamos realizar o percurso em sentido inverso a todas as travessia relatadas a partir de 2011, que se iniciaram na Graciosa, e foram concluídas na Usina do Marumbi.

Para Jéssica, além de tudo isso, ainda havia o fato de ser a primeira mulher a realizar Véu de noiva/Graciosa. Diante de tudo isso a decisão foi unânime: iríamos fazer. Recalculando a rota, a meta agora seria dormir no Mojuel, para finalizar na Graciosa no dia seguinte. Mas antes de seguir na travessia, tínhamos que bater o ponto Balança. Escondemos as mochilas e seguimos determinados para o topo, pisando nele às 15:15h.

No mirante, Jéssica ficou realmente deslumbrada com o visual. Aproveitei para derrubar o mito: “Não falei que a Farinha Seca se abriria para nós? Teu pé pode ser frio, mas nossa previsão meteorológica é quente!”. Passamos uns vinte minutos no mirante antes de retornar nas mochilas. Agora, a moleza acabaria de vez. Teríamos um longo trecho de subida predominante até chegar ao Mojuel, certamente a noite. Seguimos num bom ritmo de caminhada, impressionados com o visual, e com as ótimas condições da trilha. Obviamente o caminho inaugurado em 2011, prosperou. Apenas no Jurapê Açu houve uma pequena confusão, pois a trilha deu uma volta de aproximadamente trezentos metros, nos devolvendo no mesmo lugar.

Vista do Marumbi

O visual!

Então fizemos um reconhecimento, e solucionamos a questão rapidamente. Não houve mais nenhum ponto de dúvida depois deste. Na metade da crista do Mojuel o sol se pôs. Está crista medonha é interminável até mesmo descendo, quem dirá subindo. Por muitas acreditamos estar chegando. Mas quem chegou mesmo, foi a noite. A certeza de que realmente estávamos perto, só veio quando abandonamos a crista e quebramos para a esquerda. Deste ponto, são só mais uns quinze minutos até o topo. Na passagem pelo mirante sul, estávamos combalidos demais para comemorar o fim da subida. Tudo que queríamos era chegar ao cume que estava cem metros adiante, e armar o bivaque. Mas então uma surpresa: Já haviam três malucos acampados lá! Simplesmente não acreditei. Se era improvável que alguém mais estivesse fazendo a travessia, mais ainda seria que todos escolhessem a mesma montanha para passar a noite. Mais do que uma surpresa, foi grande frustração, pois a gente contava 100% com a clareira do cume para bivacar.

Fui lá conversar com eles. Como de costume passei vergonha, pois ao contrario deles, não os reconheci. Se chamavam Renato, Rubens, e Latanael. Contaram que vinham da Graciosa, e conversamos por cerca de meia hora sobre diversas aventuras pela serra, até pedir licença para procurar um local alternativo para preparar o berço. Estava tudo muito seco, então escolhi a própria calha da trilha para esticar isolante térmico e saco de dormir. Ficou extremamente confortável. Quanto aos demais ficaram concentrados uns cinquenta metros à frente, bem ao lado do mirante sul. A comunicação era meio aos berros, pois além da distância, ventava moderadamente. Mas quem berrou mesmo foi a Jéssica, quando a lua cheia nasceu na baia de Paranaguá. Achei que ia surtar, tamanha foi a euforia. Após este evento, as prosas foram cessando, até que todos mergulharam em sono profundo. Algumas vezes ainda acordei durante a noite, sedento, e com a luz da lua transpassando a copa das arvores, e atingindo em cheio a minha cara.

09 de Setembro de 2017 – Sábado

Já estava alerta no início da alvorada às 5:30. Perto das seis, deixei o leito para assistir o sol nascente no mirante sul. Com as baterias no máximo, os seres já estavam tagarelantes. O espaço limitado do mirante, bem à beira do abismo, foi disputado a tapa. Porém todos puderam apreciar. Chegou a hora de desmontar tudo, guardar as tralhas, se mandar dali. Saímos pontualmente na hora combinada, 7hrs. Entramos no último dia de travessia, para uma longa e desgastante jornada.

Havia muito chão pela frente até chegar na Graciosa, e a maior parte, subidas fortes. Numa última e rápida parada no mirante norte do Mojuel, pudemos contemplar a visão norte/oeste, bem como um resumo do que iríamos enfrentar. Jéssica mira uma montanha a noroeste, e pergunta o nome. Quando digo que não sei, e ela pergunta se pode batizar de “Carajas”.

Respondo que sim, caso ela chegue lá, batize, e ninguém conteste com provas a conquista. Então Jurandir, rápido no gatilho, saca e atira: “Porque batizar uma montanha daqui com esse nome? Carajás é tribo indígena, lá da Amazônia… Nada a ver esse nome!” Daí vinha uma longa contestação de Jéssica, ácida e apimentada, tornando a coisa hilariante. Pareciam o Tom e Jerry da vida real.

Jurandir, eu e Jéssica.

Todos descansados e se divertindo, levamos uma hora do Mojuel ao Morro dos Macacos, chegando no mesmo às 8:00h. O nascente próxima ao cume estava completamente seca. Isso frustrou nossa esperança de hidratação. A sede, que já castigava desde a madrugada quando secamos toda a água trazida do Balança, continuou parceira. Ficamos quase meia hora curtindo a vida (e a sede), nos campos do morro dos Macacos. A água fresca e corrente que estaria meia hora adiante, nos motivou a continuar. No córrego de areias douradas pudemos finalmente se esbaldar, lavar a cara, e os rins. Dali em diante, sabíamos que não teríamos problemas com água tão cedo.

Do fundo do vale, foi uma longa subida até a montanha que leva o nome da travessia. Pisamos no cume do Farinha Seca 10hrs da manhã. Fizemos nova pausa, porém curta, pois o sol já torrava. Saímos rápido dali com a meta de chegar logo ao encantador rio do Meio, onde a caminhada se tornaria prazerosa e refrescante. Atingimos sua nascente 11:30, onde renovamos os ânimos para enfrentar a subida do Tapapuí, no qual chegamos ao meio dia.

Nesta montanha a travessia já ganha ares de finalização, pois os últimos cumes já estão ao alcance dos olhos. Descemos rapidamente até a nascente do rio Taquari, e depois de andar um trecho pelo leito e descer duas pequenas cascatas, saímos pela tangente direita rumo ao Esporão do Vita, que atingimos às 13:00hrs. Ao cruzar seus campos, íamos liberando um agradável aroma mentolado. Tinha conhecimento da planta com pequenas folhas rústicas, e flor roxa, que liberava o aroma, porém não sabia seu nome. Mostrei aos amigos. Raffael levou consigo um galho para tentar descobrir mais sobre a ilustre perfumada. Foi fácil, era conhecida de sua mãe. Finalmente ficamos sabendo que se tratava do Gervão Roxo. O arbusto além de aromático, é medicinal, e seu chá combate males do sistema digestivo.

Do fundo do vale subimos um pouco e chegamos ao Casfrei. Deste descemos mais um pequeno vale para iniciar a subida medonha e sem fim do Polegar. Nesta hora o cansaço já abatia a todos. Custou chegar nas grandes rochas, onde sempre sopra uma brisa refrescante por entre seus labirintos. Pausa mais do que obrigatória. Continuando na subida empinada, finalmente às 14:50 alcançamos o cume, o qual é marcado por um abismo com o Morro do Sete do outro lado.

Outra pausa obrigatória, e hora de matar o pouco que sobrou da ração. Na descida escaldante dos campos do Polegar, constatamos que era impossível finalizar na Graciosa a tempo de pegar o único busão que sobe por ela, às 17hrs. Até porque teria que haver lugar para quatro xexelentos, e provavelmente o motorista não permitiria que estes molestassem com seus odores horríveis, os demais passageiros. Por outro lado, ninguém estava afim de concluir essa grande travessia, e não ser premiado pelo menos com o conforto do lar. Sendo assim, e aproveitando o contato visual com Curitiba, era hora de passar a mão no celular e agilizar um resgate. Novamente a primeira vítima que me veio à mente, foi meu irmão. Porém antes perguntei aos demais se estavam dispostos a gratifica-lo em R$100,00 pelo serviço (R$25,00 de cada). Todos aceitaram prontamente e então liguei para ele.

Vi a coisa se complicar quando a porcaria da operadora Oi não completava a chamada, mesmo tendo sinal cheio. Sorte que do Raffael funcionou. Mais sorte ainda meu irmão estar na cidade, e disponível. Combinamos que nos esperaria no alto da serra às 19hrs, exatamente onde encontra do Alemão encontra com a Graciosa. Como eram apenas 15:30hrs ainda, teríamos tempo de sobra para cumprir o combinado. Saber que o resgate estava garantido, elevou a moral do grupo para enfrentar a última e impiedosa subida do Morro Mãe Catira. Aplainamos por volta das 16:30. Ainda bem adiantados, fizemos uma última pausa para Jéssica poder saldar cada montanha do Ibitiraquire visível ao longe.Com cara de apaixonada, olhou para o Ciririca toda sorridente e disse: “Oi Ciriiii….”. Gozações do Jurandir a parte, a menina mandou muito bem na travessia. Andou pra caramba, não reclamou hora alguma, demonstrou parceria forte. E ainda, depois de tudo que passou, teve a coragem de dizer que no dia seguinte iria ao Tucum. Ficamos todos perplexos com a declaração. Sorte nossa que só estava delirando e nem foi, pois ali nenhum dos três marmanjos estava afim nem de ouvir falar em montanhas pelos próximos dias.

Fim de travessia

A descida final foi num só tiro, alucinante. A ideia era chegar lá embaixo a tempo de banho de rio, refrescante e necessário. Levamos cerca de uma hora para descer, encerrando assim com absoluto sucesso às 18hrs do dia 09/09/2017, a travessia da FARINHA SECA REAL (FSR). Sem demora, fui procurar um lugar para contaminar o rio com meu banho. Raffael também. Jurandir ficou fazendo companhia para Jéssica, que disse não curtir banhos de rio. Depois de renovado e com roupas limpas, voltamos até a porteira da fazenda, que estava deserta. Então Jurandir partiu para seu banho, já quase noite. Pedi a Jéssica e Raffael que seguissem pelos oitocentos metros da estrada de chão até o ponto de encontro, enquanto esperaria pelo Jurandir. Estava quase indo atrás do maluco, quando finalmente apareceu aquele vulto vindo pela escuridão da estrada. Chegando na Graciosa, tudo que víamos era um facho de luz dos faróis rasgando o típico e denso nevoeiro. Satisfação em rever meu irmão, e poder entrar no conforto de um carro depois de uma aventura como esta.

Finalmente estávamos a caminho das coisas boas do lar, dando fim aos últimos amendoins que sobraram da trip. Passamos por Santa Cândida e largamos a Jéssica em casa. Jurandir ficou na rodoviária, de onde pegaria o próximo ônibus pra Paranaguá. Finalmente chegou a minha vez, e meu irmão ainda levou Raffael em casa, 2km para frente. E assim, se finalizou a grande aventura. Como diria Jéssica: “Olha só que sucesso!”

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Sobre o autor

Elcio Douglas Ferreira é um dos maiores personagens do montanhismo paranaense. Experiente, frequenta nossas serras há mais de 35 anos, sendo responsável pela abertura de inúmeras trilhas e travessias. Foi um mentores da Travessia Alpha Crucis, considerada como a maior e mais difícil travessia entre montanhas no Brasil, que ele fez pela primeira vez em 2012. Possui experiência em alta montanha, já tendo escalado O Illimani na Bolívia e o Aconcágua na Argentina em poucos dias num esquema non stop impressionante.

5 Comentários

  1. Ótimo relato, e vindo do Élcio, sempre uma aventura das boas, digna dos melhores livros de história.
    Bons ventos e longa vida aos montanhistas de criatividade e calibre, como esse time do relato, para essas empreitadas fantásticas.

    • Elcio Ferreira - Colaborador em

      É uma honra receber este comentário elogioso de um grande montanhista como você. Obrigado amigo, e saiba que o reconhecimento é recíproco 😉

  2. Parabéns pelo relato Élcio… Quero um dia fazer a real com vocês se possível. Obs. Eu sou o Rubens, que ocupava o cume do Mojuel nesta aventura…

  3. Pingback: Travessia Alpha Crucis - Trilhas & Viagens

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