Travessia do Parque Nacional da Serra do Gandarela

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Se as águas de março fecharam o verão de 2025, o mês de abril ainda tinha suas tempestades a ofertar. Com a data planejada se aproximando, voltei aos aplicativos de modelagem computacional do tempo, tentando extrair deles a confiabilidade possível, frente aos muitos obstáculos que a meteorologia para uma área erma, em um país em desenvolvimento e no hemisfério sul precisa superar. A previsão das vésperas indicava a probabilidade de considerável precipitação na tarde do sábado, com pancadas de até 6.3 mm/3h pelo ECMWF. O INCON apontava 2.7 e o GFS27, muitíssimo pouca, na ordem de 0.7 mm/3h. Decidi me preparar para o cenário mais delicado, acrescendo aos equipamentos uma capa de chuva descartável. Também dediquei algumas horas para avaliar os trajetos pretendidos, focando na segurança frente a uma realidade mais chuvosa que a projetada. Repassei o mapeamento, assegurando que poderia, ao longo de todo o trajeto, contornar os cursos d’água necessários, me servindo da crista da Serra e das estradas vicinais que ainda cortam aquela imensidão.

 

Na quinta, subi pra SP, para avançar no arranjo dos materiais para uma trilha em projeto e aproveitar a manhãzinha de sexta para ir com meu pai e meu sobrinho prestigiar a partida dos destemidos montanhistas da Grande Expedição pela Mantiqueira, que percorrerão cerca de 950 km ligando o Horto Florestal/Parque Estadual da Cantareira ao Parque Estadual de Ibitipoca ou até Itumirim, à depender do ramal escolhido, em previstos 70 dias de caminhadas, pousos, acampamentos e descobertas. O planejador-mestre dessa empreitada, Luiz Aragão, detalhou cada etapa no limite do possível. Restou ir à campo, palmilhar os muitos quilômetros, vivenciar as dificuldades e encontrar soluções funcionais para concatenar os múltiplos interesses envolvidos. É o que estão fazendo enquanto teço essas linhas. Novamente, faço meu preito de admiração e sucesso aos valentes. Começaram em 4: de Taubaté, Luiz Aragão, de Pouso Alegre, Rannier Barata e, de Porto Alegre a dupla de amigos Dorval Miele e Glauco Alves que veio do Sul “apenas” para essa empreitada.

Foram poucos que enfrentaram o fino chuvisco matinal da sexta em SP para congratular e desejar uma boa pernada ao quarteto: Eu, meu pai e meu sobrinho, a esposa do Rannier e, aqui de SP, o Milton Dines. Em uma indubitável mostra dos novos tempos, mais de mil pessoas, literalmente, acompanham os passos da expedição pelas redes sociais. Nao é exagero registrar que vivemos tempos de gênese das Trilhas de Longo Curso aqui no Brasil.

Eu e o Douglas, ao iniciarmos a arrumação das tralhas, descobrimos que os potes, guardados na garagem dos meus pais estavam sujos. Antes de mais nada, era necessário limpá-los, numa operação demorada e exasperante. Sobrou menos tempo do que previmos, de forma que ainda precisaremos retomar a tarefa. De qualquer modo, um passo à frente é sempre alentador. Às 19 horas partimos para o Tatuapé para encontrar a trupe dos Arcanjos que organizaram, planejaram e viabilizaram a travessia que relatarei aqui.

Partimos em 19 na van, parando em Atibaia para pegar a Raquel e no autoposto Fernandão para esticar as pernas e completar a trupe com a Dri, montanhista e artista plástica. Você que me lê, certamente já viu algum trabalho dela em bandanas e logos de grupos excursionistas. São trabalhos muito legais se ajudar, ela assina como “drilifyart”. A viagem transcorreu sem intercorrências, com quase todos dormindo algumas horas sob o volante cuidadoso do Éber. Com o dia nascido, às 8h fizemos a última parada da viagem de ida, para café, banheiro e derradeiros arranjos nas cargueiras. Havíamos passado pouco antes por trechos de asfalto molhado e o tempo ainda parecia incerto. Como a claridade aumentava, e como já havia colocado as lentes de contato (sou muito míope), tratei, de brincadeira e por superstição, de vestir os óculos de sol… escutei muito, quando criança: “Yo no creio em las brujas, pero que las hay, las hay”.

Retornamos à van e seguimos os últimos quilômetros até o ponto de inicio da nossa pernada. Às 8h30, com as cargueiras nas costas, passamos a depender apenas de nossas forças e competências para alcançar a van de resgate, no horario previsto das 11h de domingo. Sendo o Arcanjos um grupo que foca em viabilizar travessias e trilhas para montanhistas autônomos, o trajeto que cada dupla, trio, quarteto etc seguiria era totalmente livre e de responsabilidade de cada participante. As primeiras propostas cobriam 30,44 km de serras e cachoeiras. Os atrativos que cada um encontrava nos estudos prévios foram compartilhados no grupo da viagem, e novas propostas, mais ou menos ousadas, foram planejadas.

Por mais que a Paleotoca descoberta me encantasse pelo aspecto cultural e excepcionalidade, a distância tornava o acesso impraticável. Encontrei informações sobre ruínas, que remontariam a época do ciclo do ouro, paredes em cantaria, pontes antigas. Alinhavei um novo roteiro passando por esses pontos, agora com 44 km a serem divididos entre os dois dias. Tive o cuidado de revisar a parte da segurança, definindo que, à depender do tempo, não cruzaria o Ribeirão da Prata, divisor entre o trajeto original e o “novo” trajeto.

Já ao sair da padaria, o tempo firmara e o sol brilhava forte entre as dispersas nuvens. A previsão atualizada, enquanto esperávamos os quitutes saltarem da cozinha, era de tempo ensolarado, com baixíssima possibilidade de chuva. Em parte, a previsão me tranquilizava, mas não muito. Minha experiência com aquela intensidade de sol, fosse em SP ou no litoral era de tempestades intensas serem comuns à tarde. Iniciamos a caminhada, numa estradinha vicinal com suave inclinação e depois de uma centena de metros notei que esquecera os bastões na van. Disse para a Amanda e o Douglas que prosseguissem, enquanto retornava até o carro para pegar minhas pernas auxiliares. Apertei o passo para alcançá-los e logo trilhávamos em trio, sem apertar muito o passo. Numa bifurcação à direita, deixamos a crista por algum tempo e seguimos por uma cota mais baixa, acompanhando um antigo aqueduto que alterna trechos escavados no solo ao lado esquerdo da trilha, com trechos de ferro fundido e outros ainda em cantaria, aqui e ali, reparados com argamassa. Por mais que eu curtisse o caminhar em nível ao lado do aqueduto, não estava no meu track e o mapa impresso, em A5, exigia braços mais longos que os meus, de forma que para não nos aperrearmos em andar no rastro dos outros, decidimos tocar pra cima e retomar o planejado.

Às 9h40, de volta ao caminho previsto, continuamos a subir gradualmente, castigados pelo sol e procurando poupar a água de que dispúnhamos, pois passávamos por nascentes intermitentes, que apesar da chuva da véspera apresentavam-se úmidas, mas sem água. Nosso trajeto logo nos levou ao primeiro ponto de água planejado onde preparamos suco e nos hidratamos. A partir desse momento, passei a manter meu inventário no máximo possível, de 1.5 litro. Às 11h30 encontramos, na Janela do Céu, cachoeira formada pelas águas do Ribeirão dos Cabaços, os demais colegas do grupo, que haviam continuado ao longo do aqueduto, optando por trocar as impressionantes vistas dos vales a partir da crista, pelas também espetaculares quedas d’água dos vales.

Às 13h20 deixamos a trilha principal e tomamos a vereda em direção à cachoeira 27 Voltas, no ataque mais extenso da travessia. Desci brincando que o nome decorria do numero de curvas da trilha e contava meio que aleatório as curvas, tentando distrair da longa descida. O grosso do grupo, tentado pela promessa de quitutes no Amaro, optou por abortar o ataque a essa cachoeira, outros esconderam as cargueiras e tocaram trilha abaixo: Douglas, Dri, Leticia, Mutuca, Kristal. Tanto eu quanto a Amanda, descemos com as cargueiras, aproveitando para treinar um pouco mais. Encontramos o Felipe Lacerda, guia da XPLORA retornando e ele informou que o Douglas estava à frente. Mesmo apertando o passo, só o encontraríamos já quase na base da cachoeira tendo cruzado o Ribeirão Cambimba, cujas águas formam a bela queda.

Aproveitamos para nos refrescarmos, apreciarmos o poço para nos refrescar e petiscar um lanche. A Leticia me pediu esparadrapo, pois a trilha anterior na o permitira que usasse a bota que melhor lhe veste, causando uma pequena bolha no calcanhar. Iniciando o retorno, percebemos que a estrutura que parecia remanescente de uma ponte metálica é na verdade o que restou de um trecho da adutora, que trabalhou no passado trazendo água de alguma captação antiga em nível mais elevado. Cruzamos o Cambimba e seguimos subindo, distraídos com contar causos e curvas. Como o Douglas havia deixado sua cargueira no começo da descida, procuramos estressar o que ele lembrava. Conseguimos extrair que havia um cupinzeiro à beira da trilha e à esquerda, descendo. Que era trecho com vegetação de campo, que andara cerca de 15 a no máximo 30 metros perpendicular a trilha e que deixara um ramo marcando o ponto na trilha. Com essas informações, conforme nos aproximávamos da trilha principal, fomos conferindo e procurando evidências. Sem maiores dificuldades recuperamos a cargueira dele e tocamos à direita, agora para o Bar do Amaro ou sítio Aranzé.

Havia a promessa de coca zero gelada, infelizmente frustrada. Mesmo assim, apreciamos uns bons momentos sentados, com mesa. Encontramos o Cláudio Sobrinho (31 999469803), guia da MATO OU MORRO que organizara um trekking pela serra com acampamento de pernoite ali no sítio. Escutando nossa conversa sobre os arredores, alguém nos trouxe um mapa rodoviário das redondezas e limites de municípios. Ante o interesse que demonstraram, deixamos um mapa dos que portávamos para compor a decoração do receptivo rancho. Aproveitamos a oportunidade para dar conta de uma porção de mandioca frita e outra de moela ao molho. No caso deste último acepipe, tive que fazer as honras em solitário, pois nem a Amanda nem o Douglas se dispuseram a ajudar. Deu trabalho, mas dei conta da maior parte da porção. Para acompanhar, uma jarra de limonada suíça, na falta da coca cola. Nos sugeriram um atalho e, sabedores das terras em que estávamos, educadamente declinamos. Já trilhei muitos quilômetros adicionais escutando esses conselhos de “atalhos”… como bem aprendemos com a história da Chapeuzinho Vermelho ou do Pinocchio, melhor fazermos ao nos atermos a retidão do caminho consolidado… pelo menos, como regra.

Nesse momento, os mineiros trucaram nois: o atalho nos levaria através de muitas das ruínas de construções antigas, várias delas sequer catalogadas ainda. Não refugamos ao envide e tratamos de cacifar a coisa, cientes de que poderia se mostrar uma grande roubada. Na vida, como nos jogos, por vezes o apostar é necessário. Com a internet do Amaro, baixamos o tracklog para essa ligação, verificamos no mapa as alternativas para eventuais cruzos de rio, constando que em ambos os caminhos, fosse no original mapeado ou no atalho em análise, não haveria nenhum rio antes do próprio ponto de acampamento pretendido, no Poço do Tonhão. Decidimos abraçar a mudança e, às 16h30 retomamos a caminhada, cruzando as tais ruínas, composta de grandes muros de cantaria, com construções elevadas do solo, talvez remanescentes de antigos suportes de vigamentos e pisos de madeira. Atravessada a parte de mata que abriga esses segredos do olhar de quem percorre as estradas ao redor, alcançamos uma vereda que contornava o morro pelo norte, dando acesso às Cachoeiras dos Dreads e dos Perdidos, que optamos por não atacar.

Às 18h40, tendo percorrido 28 km em 10 horas de caminhada, alcançamos o ponto combinado de acampamento. Na descida para o Poço do Tonhão, ao entrarmos na primeira mata, optamos por colocar as lanternas de cabeça, minimizando o risco de torções por não ver bem onde colocar os pés. Fizemos a descida final avaliando as opções para caso a área de acampamento fosse pequena, concluindo que nossas barracas (Amanda e Douglas estavam com barracas Vik da Naturehike e eu com uma Plex Solo da Zpacks) poderiam ser montadas na própria trilha. Encontramos o Danilo e o Gerson acampados à esquerda na trilha e, a partir desse ponto fomos escolhendo áreas viáveis para as barracas. O acampamento principal fora montado na prainha de areia do próprio poço. Ainda que não houvesse previsão de chuva, não nos pareceu prudente estender nossos telhados ali, de forma que voltamos uma dezena de metros t r i l h a acima e, à direita encontramos uma área plana e desimpedida de vegetação que, após retirarmos alguns galhos secos e cipós permitiu montarmos bem as barracas. O desnível em relação a prainha do acampamento principal, mesmo que menor que 3 metros, já trazia condição de segurança bem mais sólida. Enquanto a Amanda banhava, armei a barraca para o pernoite. Optamos por montar apenas as barracas Vik, de forma a ocupar o mínimo do espaço. Para o jantar, dispúnhamos de purê de batatas sabor legumes, enriquecido com legumes desidratados, os lanches da Amanda, suco, doces. Colocamos os eletrônicos para recarregar e tratamos de dormir, com a alvorada combinada para 6h e partida às 7h.

Um casal de doguinhos, um de pelo negro, quase idêntico ao da Amanda e uma caramelo disputaram porções dos jantares do grupo e, a partir do que petiscaram do nosso espartano jantar, devem ter comido muito bem. Precisariam muito desses nutrientes para os labores maquinados, como o pessoal da praia nos contaria no domingo.

Dia 2

Em trilha é muito raro eu dormir até mais tarde. Para ser mais preciso, é raro eu esperar o sol nascer para levantar. Dessa vez não foi diferente e sai para esticar as pernas, aguar as plantas e esperar o dia nascer, tentando não acordar os outros. O termômetro do relógio do Douglas marcara 17°C, como mínima, às 4h50. Descobri que minha lanterna principal estava descarregada, me levando a concluir que três lanternas, sendo notívago, não é exagero.

Conforme clareava as pessoas aos poucos colocavam os pés pra fora das barracas, preparando o desjejum e começando a desmanchar o acampamento. O horário de partida previsto, 8h, tinha consigo o desafio de percorrermos os quilômetros restantes, desconhecidos quanto às dificuldades de progressão dentro do tempo previsto e chegarmos às 11h no ponto de resgate. O grosso do grupo informou que voltaria pelo caminho inicial e como eu fazia questão de passar na tal “Ponte Velha” convenci o Douglas e a Amanda a partirmos um pouco antes, às 7h40.

Cruzamos o Ribeirão da Prata, por uma passagem à esquerda do Poço do Tonhão, uns 30 metros à jusante. Do outro lado do cruzo, seguimos ganhando altitude de forma suave, buscando a bifurcação para direita que seria nosso caminho. Para a esquerda, ficariam as cachoeiras Goianazes e Maquiné. Havíamos decidido abortar o ataque às duas privilegiando atender o horário de chegada no ponto de resgate. Alcançamos o ponto da bifurcação pelo track de referência e o rastro à direita era bastante tênue, não coerente com o esperado a partir do estudo prévio, então segui em frente, ansioso por confirmar, no físico o que havia visto nas imagens de satélite e nos mapas. Conforme nos afastávamos do ponto “previsto”, a dúvida tratava de minar minhas certezas… 30 metros, 50… 70… 100 metros e nada… 120 metros… 150… 170 metros… 180… o “erro” do track não fazia sentido… eu já despachara o Douglas para verificar se não havíamos perdido nenhum rastro na direção pretendida há um bom tempo e não houvera nenhuma sinalização nesse sentido… 190 metros … então noto uma área aberta alguns metros a frente, aperto o passo até lá e o cruzo, batido, se apresenta. Agora enquanto a Amanda avaliava se o rastro prometia, retornei até o Douglas, alcançando-o abaixo do ponto marcado pelo track. Observamos com atenção o tenue rastro e concluímos que não faria sentido não testarmos a vereda encontrada à frente que parecia seguir na direção que precisávamos. Novamente reunidos em trio, passamos a avançar pelo rastro desimpedido e, em pouco tempo tivemos certeza de estarmos na trilha correta e apertamos o passo, aproveitando que a trilha se mostrava bastante favorável, com baixo aclive, desimpedida de vegetação e de pedras que demandassem maiores cuidados no caminhar. Às 8h20, entrando numa pequena florestinha, encontramos uma grota, onde uma ponte feita com troncos encaixados permitia a passagem da água por sob as toras, de forma análoga a um arco romano. Prosseguimos, discutindo se fazia ou não sentido aquela ser a tal da “ponte velha”, quando pouco depois, às 8h38 nos a alcançamos. Nas cabeças da ponte, o trabalho em cantaria resiste ao quase um século (a inscrição ao lado data a construção, ou reforma, como de 1936).

A cerca de 4 metros de profundidade, as águas do Ribeirão da Prata corriam plácidas, pois nesse trecho o leito ainda não apresenta grande declividade. Mesmo assim, a altura da ponte não deixava de sinalizar o quão majestoso se mostra esse riacho, após ser nutrido pelas tempestades. O tabuleiro da ponte foi refeito com vigas de 15 x 7 cm e, entre elas, madeiras de qualidade inferior cobriam os vãos. Atravessei com cuidado, procurando pisar nas vigas e o mais perto das longarinas que minha coragem permitia. Havíamos sido alcançados pelo grupo capitaneado pela tríade Ariane, Kristal e Leticia.

Passada a Ponte Velha, retomamos a subida de até o acesso das cachoeiras Da Pedra e Do Café que, bem marcado, descia na d i r e ç ã o do vale, bifurcando-se uma centena de metros a frente. Ali, nossa subida se apruma um pouco mais, relembrando a cada um seu real condicionamento. Não são muitos os metros verticais que precisam ser vencidos, 208 m em 2,2 km, aliviando bastante os escorços nas pernas, mesmo assim não se pode negar que os pulmões trabalhem mais.

Alcançado o espigão que divide as bacias do Ribeirão da Prata das águas do Ribeirão Mingú, começamos a perder altitude, de forma muito suave, em direção ao vale. Ainda na região da crista, a Casa de Pedra, parcialmente em ruínas, apresenta paredes de pedra (cantaria?) e adobe, com espessura de 80 cm, janelas de perfil trapezoidal, indicação clássica de sua função defensiva. A disponibilidade d ‘ água p a r a consumo, humano e animal, em função da proximidade de nascentes do Mingú, certamente pesou na localização do prédio. Podendo instalar a casa em qualquer lugar nos arredores, optou-se por faze-lo ali. Construção de caráter duradouro, certamente ponderou se com atenção os atributos antes de definir o onde. O como, as centenárias paredes registram. O porquê certamente ainda será objeto de estudos acadêmicos, com suas teses e métodos. Oxalá permaneça preservada para as próximas gerações, como testemunho da epopeia do brasileiro comum na escrita da nossa história.

Nosso track de referência apontava uma descida a sudeste, porém não havíamos percebido rastro batido nessa direção. Verificamos se o trajeto passava por dentro da casa, mas o arvoredo que cerca e protege “os fundos” do imóvel não apresentava nenhuma marca nesse sentido. Retomamos a estradinha comigo buscando a passagem pelo Noroeste enquanto o Douglas verificava se não havíamos perdido uma bifurcação menos batida. Pouco depois, comigo tendo avançado 140 metros, já “na borda” da estradinha buscada, o Douglas sinalizou que havia encontrado um rastro. Retornei sobre os meus passos e passamos a descer pelo campo, tentando encontrar o “trilho” que as passagens anteriores certamente haviam deixado. Marcas esparsas foram sendo encontradas enquanto descíamos, atentos a rastros e a buracos escondidos pelo capim.

Nesse meio tempo, parte do nosso pequeno bando, sob a batuta da dupla “AA”- Amanda e Ariane buscara em paralelo um acesso dentro da casa que nos tivesse passado despercebido. Não encontrando nada diferente, nos seguiam a média distância. Esse trecho, apesar de curto, nos tomava precioso tempo pelos cuidados que tomávamos antes de firmar o passo. Vencidos cerca de 200 m pelo campo, notamos o rastro limpo de uma estradinha que surgia da direção em que eu havia ido verificar e abandonara, na iminência de alcançar.

Agora, com o rastro claro, tínhamos certeza de que a passagem pela cerrada borda do arvoredo estaria logo à frente e, novamente, apertamos o passo, sabendo que cumprir ou não o horário de chegada proposto seria por poucos minutos. A estimativa a partir do GPS era de que alcançássemos o ponto de resgate com cerca de 10 minutos de folga. Minha estimativa pessoal era de até 20 minutos de atraso. Ainda restavam 5,3 km de terreno desconhecido até o ponto de encontro. Mesmo sem subidas, um trecho de estrada com pedras soltas seria o bastante para prejudicar seriamente nosso avanço. Já sabíamos que havia outros trekkers no nosso encalço, mas quão próximos não era possível avaliar. Mesmo no espigão, ao olhar para a direção que havíamos trilhado, não conseguíamos divisar nenhum outro grupo. De qualquer modo, como trilhamos sempre e primeiro, para dentro de nós, daríamos o suor e o sangue necessário para, com segurança, alcançar o que nos havíamos proposto.

A trilha nesse trecho corre por sob as copas da mata ciliar do Ribeirão Mingú, com um ou outro trecho curto de campo, até alcançar o acesso para a Cachoeira do Rodrigo, quando passa a bordejar a mata antes de se lançar, definitivamente, por campos resultantes do intenso desmatamento que ocorreu ao longo dos séculos de ocupação humana até cruzar, por uma ponte recém “recuperada”, onde pequenos toras do que parece pinus, cada qual com cerca de 10 cm de diâmetro se apoia em vigas centenárias e apenas o trabalho nas fundações em cantaria das cabeças permite resistir ao passar dos anos. É patente, nesse ponto, o esforço em equilibrar o histórico com o funcional, trabalho árduo e que o Parque Nacional da Serra do Gandarela, na figura do seu atual gestor, André Andrade tem conseguido entregar.

Com o cumprir do prazo à mão, nosso pequeno bando se dividiu pela última vez nessa pernada: Amanda, Ariane, Raquel, Kristal optaram por fazer uma rápida parada para se refrescarem nas águas da Cachoeira do Mingú antes de concluírem a travessia. Eu e o Douglas, apertamos o passo nas ultimas centenas de metros até o ponto de encontro, apreciando o êxtase de dobrar, ainda mais uma vez, nossas alquebradas costas sob as cargueiras e palmilhar, livremente por uma imensidão desconhecida para nós.

Chegamos ao ponto de resgate às 10h52, encontrando o Rodrigo Gouveia “Mutuca” por lá que nos informou que o Daniel Vaz e a Katy também já haviam chegado. Minutos depois, às 10h54 nosso transporte para o retorno chegou e sugerimos que avançasse algumas centenas de metros, aproveitando que a estrada estava em ótimas condições. Avisamos ao Daniel que passaríamos ali para pegá-los e tocamos os últimos 800 metros dessa travessia, agora em sentido contrário. O pessoal chegou aos poucos, com o último chegando no “ponto de resgate avançado” apenas às 12h07.

Retornamos a SP procurando recuperar o atraso do início do retorno fazendo apenas duas paradas: uma para almoço no Tropeirão do Jucão e outra para lanche e banheiro, já no Fernandão, onde deixamos a Dri. Já nas vizinhanças da grande SP, deixamos a Raquel em Atibaia e finalmente, chegamos no Tatuapé às 22h05. Dali, peguei uma carona com o Douglas e, por pouco perdi o penúltimo ônibus para Santos, que partiu 22h55. Cheguei no Jabaquara às 23h12 e aguardei o último ônibus, que partiu 23h45. Pouco após a 1h30 de segunda-feira já estava em casa.

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1 comentário

  1. Alberto Ortenblad em

    Rogério, parabéns a você e seu grupo pela cuidadosa travessia. Mas, com tantos detalhes da sua abundante prosa, senti falta de indicações mais precisas (onde começaram e terminaram?) e de descrições da natureza atravessada. Talvez um mapa também ajudasse a avaliar o trajeto. Abraços, Alberto Ortenblad.

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