Travessia Kairós #4

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Estávamos em uma viagem em bicicleta e por isso dávamos margem às aberturas e oportunidades que nos surgiam: o sentimento de liberdade, que tínhamos durante a pedalada, era o que procurávamos ao poder escolher a situação e o meio que nos faria seguir.

Estruturas em abandono, postos de combustível fechados, placas antigas sujas e enferrujadas, o silêncio das ruas durante o dia, letreiros caídos, revestimentos de fachadas altas que agora desmoronavam revelando as fragilidades nas demais camadas construtivas. A linha do trem, explicou Nicolás, proprietário do pequeno mercado onde fazíamos nosso desayuno, deixou de ser a via principal de deslocamento quando foi construída a rodovia, afastando-se o acesso a esses vilarejos e à outras pequenas cidades por onde havíamos passado. Lugares que não mais interessavam. As rotas comerciais mudaram. Os tempos eram outros. Toda uma estrutura que nos parecia, em outro momento, de pulsão urbana era fadada, agora, ao esquecimento por parte dos atravesadores de la autopista.

(…)

Eram 17:45h quando as buzinas de minha bicicleta anunciaram nossos primeiros mil quilômetros. Brinde simbólico em goles contidos. Faltavam ainda vinte e cinco quilômetros para reencontrarmos o asfalto e mais quinze ao balneário, portanto que economizássemos nossos líquidos. Mas os quatro números falavam mais alto, revelavam todos nossos esforços. Saudávamos os novos dígitos, zerados. Traziam novos ares, rejuvenesciam nossas intenções. Antes das 18h, tivemos mais um furo de pneu, coisa pouca perto do extenso caminho que trilhávamos há três semanas, acúmulo impregnado de experiência. Caio providenciou o conserto de seu veículo rapidamente. Os números eram agora estatisticamente degustados no decurso daquelas retas, como linhas em gráficos ascendentes. Quando fizéssemos a curva, mudando nossas direções, o gráfico orientaria novas tramas que não deixaríamos declinar.

As infinitas variáveis que definiam nossos esforços foi surpreendida pelo despertar da lua cheia, ainda com os últimos raios do sol se derramando no horizonte. Tal espetáculo era mais do que suficiente para garantir o êxito dessa matemática oscilante de nossos esforços.

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Foi na terceira garrafa que o argentino Rodrigo comentou que estava de caminhonete. Vinha de Mar Del Plata em direção ao Sul. Esperei o momento certo para, cruzando os olhos com Caio, questioná-lo sobre o espaço que teria nessa caminhonete. Quando voltamos, entramos na garagem do hostel de Bahia Blanca para analisar se caberíamos junto com as bicicletas e as bagagens e, evidentemente, com nossos corpos, mesmo que magros, cogitando um trecho de carona. Sim, seria possível, fazendo um revezamento conseguiríamos seguir adiante, sacudindo com o restante das malas já depositadas no bagageiro. Caberíamos, porém, apenas um de cada vez sentado lá na frente e o outro deveria se acomodar como pudesse atrás, visto que se tratava de uma pequena, modesta e entulhada Fiat Fiorino.

Eramos agora os próprios atravesadores de la autopista e com o passar do tempo, acomodei-me como pude no bagageiro traseiro da caminhonete, fechado em um cubículo sem ventilação, rente à porta, onde as duas bicicletas puderam ser colocadas por cima das caixas e sacolas e os alforjes que se espalham em um amontoado onde me incluo. Por vezes, movimento o conjunto para alcançar o pacote de biscoitos que ficou no bolso do outro lado, por debaixo da roda e acima do saco de dormir. Lá na frente, os dois assumem a função de comadres que não se viam há tempos e ouço apenas resquícios da conversa que me soa ininteligível. Os carros se aproximam e ultrapassam e consigo enxergar seus ocupantes nitidamente pelo vidro, mas eles veem apenas mais um dos seus.

Com um travesseiro e uma coberta, foi preparada uma espécie de cama para o imigrante clandestino que viaja no sentido contrário ao da lógica, com as pernas dobradas de modo que é possível fazer um movimento que as jogue para cima e você se sente numa sauna especializada em tratamento de varizes. O suor escorre, é necessário ficar seminu e seria uma surpresa grande para o encarregado desavisado que resolvesse abrir a porta em uma fiscalização surpresa.

Quando chegamos à fronteira de saída da província de Buenos Aires para entrar na região de La Pampa, o burburinho na cabine de comando de nosso veículo diminuiu e tornou-se intrigante. O motor diminuiu seus giros e paramos aguardando a movimentação dos fiscais. Os veículos aproximavam-se já em fila, muito próximos a mim. Um a um, os carros eram vistoriados por aquele encarregado que haveria de ter uma boa surpresa quando chegasse à Fiorino branca. Caio me orientou a ficar atento. Não tardou para que nosso motorista dissesse pra sair, abre la puerta y camina, como se fosse a coisa mais fácil do mundo. Tive que retirar a camiseta presa à vidraça e desenrolar as partes de meu corpo articuladas ainda em posição de sauna. O policial aproximou-se de nosso carro e meus companheiros praticamente me expulsaram: abri a porta, com toda a discrição que se é possível para um fora-da-lei visto por todos menos pelo fiscal, e caminhei pelo lado do veículo, como se andasse desde muito cedo por aquela autopista. Camina Camina, falei comigo mesmo. Como era bom respirar ar puro! O encarregado abrira a porta traseira e se deparava com uma cama formada por travesseiros e sacos de biscoito. Contando com a parceria de que os veículos seguintes não nos denunciassem, a coisa se passaria como normal: qual argentino não destina um momento de sua viagem para o descanso que se segue ao almoço? Atravessei a divisa das províncias a pé. Os dois já me esperavam estacionados do outro lado. Continuei o disfarce, passando como se não os conhecesse, caminhei até uma árvore e urinei cantarolando. Como se me oferecessem carona, entrei no veículo e aceleramos rapidamente à estrada.

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Ouvi de meus amigos que USHUAIA passou indicada em uma placa. Dois mil quilômetros nos separavam desse destino cuja indicação se mostrou ao inverso para mim: olhei emocionado para sua estrutura, não vi e não voltaria a ver a indicação austral do fim do mundo e que ficava pra trás, junto de Buenos Aires e mesmo do Brasil.

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Não poderíamos deixar de brindar ao êxito de nossa carona e lamentar nossa despedida. Foram cerca de quatrocentos e cinquenta quilômetros. Nossos detratores dirão que estamos blefando, que as bicicletas foram abandonadas. Bebemos o chope de Las Grutas, oficialmente região patagônica, e caminhamos sobre as pedras mescladas à areia, reveladas durante o dia pelas águas da maré baixa. Muitos turistas faziam o mesmo e apenas repetíamos o rito. Estávamos em uma viagem em bicicleta e por isso dávamos margem às aberturas e oportunidades que nos surgiam: o sentimento de liberdade, que tínhamos durante a pedalada, era o que procurávamos ao poder escolher a situação e o meio que nos faria seguir. À noite, o oceano subia até atingir as falésias, em um movimento de idas-e-vindas que se alternavam harmonicamente, possibilitando paisagens distintas ao longo da semana e dos meses: nessa formação rochosa ficavam as grutas, e no alto a cidade, por onde havíamos chegado e descansaríamos nos próximos dias.

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Aguardávamos o Trem Patagônico que partia de Viedma uma vez por semana e passaria por San Antonio Oeste, vizinha ao balneário onde estávamos, atravessando toda a Argentina, cruzando horizontalmente sua árida meseta central. Teríamos seis dias para nos acostumarmos ao parar. Descansaríamos e passearíamos pelas ruas desertas da já baixa temporada, mesmo que ensolarada. Fizemos nossas primeiras parrillas, visitamos museus, lavamos as roupas imundas, bebemos o vinho barato da Argentina, e mergulhamos em nosso último tramo de Oceano Atlântico.

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Na estação, dentro do saguão e por detrás, perto do trilho, ali estavam os estrangeiros e os moradores, e fumavam os fumantes, encolhiam-se os cachorros, brincavam as crianças, chegava o trem. Era a parte da frente, luz que piscava em sinal de alerta, fez-se um clima de expectativa e de véspera. Tardaria um tempo ainda. Sentamos no chão e preparamos um mate. Tínhamos água caliente, pois que já pertencíamos de antemão aos hábitos das montanhas.

Entrávamos nos dígitos das vinte e duas horas e os ponteiros da estação começavam a abrir o formato de V, ou seja, que a noite se instalara, que o trem já estava completo com seus outros vagões, e os passageiros eram então iluminados em seu interior e permitiam, assim, a entrada dos novos viajantes.

COCHE Nº 302

Nº DE ASIENTO/COMODIDAD 35

Poltronas azuis, a cor do oceano. Igualmente azuis, as paredes eram mais claras: o celeste das montanhas andinas. Que bela poesia nessa sensível transição geográfica. Janelas e detalhes de um amarelo já antigo, indicando a idade avançada do vagão. Eram onze e meia da noite quando soou uma espécie de apito grave, um solavanco foi dado e o TREN PATAGÓNICO partiu em direção à San Carlos de Bariloche.

 

LUÃ OLSEN

TREVELIN – Argentina

27.03.18

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Sobre o autor

Luã Olsen é arquiteto e urbanista. Utiliza suas aventuras para experimentos literários, quando refaz a viagem para si e para o outro. Autor de TU, YO Y LA LUNA (2014), relato de sua viagem de bicicleta de Florianópolis a Buenos Aires, e INTERIORES (2017), sobre sua primeira cicloviagem, por Santa Catarina, cinco anos antes. Em 2018 realizou a TRAVESSIA KAIRÓS, pedalando através da Patagônia argentina e chilena, escrevendo suas impressões para o site da Alta Montanha.

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