Travessia Kairós #8

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Saí para minha própria experiência iniciativa antecipando as horas e consegui pães e frutas na escura avenida principal, o que me deixou entusiasmado e cada vez mais interessado por esse lugar.

:: Travessia Kairós #7

Amanhecia e pela janela da cozinha vi que havia um colorido pendurado no portão: Cafeciño, dejamos una bolsa colgada en la entrada para que usted lleve un recuerdo nuestro recebi no celular, e havia ali alguns mimos e bandeirolas argentinas para colocar na bicicleta. Também pães e queijos. Sorri, ainda que preocupado em ter mesmo que sair.

Foi como um pássaro que me ocorreu que o acolhimento que vivenciara nesses últimos dias em Trevelin ia junto comigo em direção à fronteira com o Chile, como um voo incerto pra longe do abrigo, seria parâmetro, motivo de comparação, passou e se manteve firme em minha pessoa por um longo tempo que ainda estaria por vir, e junto comigo cantavam todas as aves, pontos que voam tão alto, e iam na frente, davam rasantes e passam agora por cima, bem baixo, indo e voltando, de onde pousaremos nos dias que vem e que seguem.

Ao chegar à Trevelin contornei sua praça central duas vezes antes de tomar o rumo dos bombeiros. E quando ao quartel cheguei, no passo-a-passo das hierarquias, uma sequência de questões foi levantada e não pude ser aceito, pois que o último viajante andara cometendo furtos, levando também a confiança do comandante.

Agora o peregrino fazia seu sexto círculo aleatório e sem motivos para o observador distante. Era um ritual que dava tempo às reflexões, ajustes dos pensamentos. Foi uma sensação estranha quando vi uma figura que me pareceu conhecida na esquina que saía radialmente do centro da circunferência. Dale, lá está: reconheço e caminha em minha direção: – Lua! Que bom ver esse sorriso tão aberto, esforçando um português tranquilizador. Em nenhum momento cheguei a uma cidade e encontrei um conhecido dessa forma, que estranha sensação. Estavam com seu furgão branco de cicatrizes e portas sempre abertas encostado em uma daquelas oito ruas que escapavam da praça. Eram os dois viajantes argentinos que encontrara no Parque Nacional Los Alerces e iam assim sem muitos planos há bons meses. Já haviam passado pelo Brasil. E lá estava o grandalhão Esteban, como está, Lua? Estou bem, meu amigo, podes te quedar aqui com a gente, hay espacio, Lua.

 E assim ficou combinado, dormiria essa noite na Altachata, como chamavam aquele desorganizado companheiro sobre rodas, tangenciando de leve os pés do cineasta e a 90° do periodista. Para a janta, me avisaram que iam repetir o que fizeram ontem e pediriam comida nos restaurantes, lá pelas onze horas. Que se compreenda, comida havia, mas não entendiam o desperdício provocado pelos comerciantes e, claro, gostei da ideia, falei que faria isso. Saí para minha própria experiência iniciativa antecipando as horas e consegui pães e frutas na escura avenida principal, o que me deixou entusiasmado e cada vez mais interessado por esse lugar.

Carregando pães de bordas quebradas e frutas maduras demais, queria muito contar as novidade à meus amigos, levaria a comida a compartilhar com eles. Quando fiz o retorno, ainda com a bicicleta carregada, vestindo o grande casaco para o frio intenso que se fazia e que minha família me confiara em Bariloche, pois que os termômetros baixaram drasticamente nas últimas horas, duas senhoras buzinaram, chamando-me de um carro e me perguntaram se eu já sabia onde passaria a noite. Disse que não, não sei e, conforme suas indicações, acompanhei as duas, seguindo seu carro.

Por ruas transversais à principal, adentramos em outras periféricas e a estrada tornou-se de chão batido e curvilínea. Desceram do carro e foram direto ao portão, abrindo espaço para um jardim e lá no alto repousava uma construção que não se deixava ver na escuridão.

Certifiquei-me que as senhoras estavam mesmo sozinhas. Caminhamos a passos rápidos, encontraram um interruptor, abriram a porta e ali estávamos. E então, estão alugando a casa, perguntei. No, no, por favor, podes te quedar acá, mira, hay espacio, finalmente falaram, e uma das senhoras passou a procurar os outros interruptores que trouxeram luz ao ambiente e, vejam só, uma grande cabana das montanhas se revelou em um interior muito bem projetado e acolhedor, disso não tive dúvidas.

Certo, bueno, gracias por eso, disse, hoje encontrei uns conhecidos, uma longa história, contornei a situação de modo a não entregar de fato quem eu era, o que fazia, onde ficaria, explicando que um viajante tem suas ressalvas e deve honrar o combinado: voltaria no dia seguinte, aclimatado por ares já menos nebulosos e então as chamaria, já que moravam na residência da frente, ao outro lado do portão. E mais uma vez agradeci.

(…)

Assim que despertei do amontoado que nos ambientava, arrastei a porta sentindo o frio galês na calçada de seus colonizadores, sabia que os dois dormiriam até o meio-dia, coloquei a bicicleta pra fora com a ajuda de Esteban, lavei o rosto na torneira que saía das tubulações armazenadas acima do furgão, falei nos vemos pois que ainda nos encontraríamos, rememorei o trajeto e bati na porta de minhas futuras vizinhas. Pediram que me organizasse, descansasse e que fosse almoçar com elas, preparavam um assado no jardim. A cabana seria realmente minha por uns dias. Uma delas era Amelia e buscou lenha e fez fogo na lareira. Elena, a outra senhora, preparou um café e eu disse mas que ótimo, que sorte a minha, um cafezinho quente nessa linda manhã.

Cafeciño foi como as irmãs Amelia e Elena passaram a me chamar desde então.

(…)

Dormi no sofá, protegido pelo fogo da lareira, centralizando meus domínios entre a sala, a cozinha e o banheiro. Outros cantos da cabana eram incógnitas, espaços vazios de um lugar recém desocupado pelo inquilino anterior. Aqui de dentro via-se o gramado que também despertava, aproximava-se mais um dia bonito e ao fim da manhã sairia por esse dia útil na cidade de Trevelin, mergulharia em seu cotidiano apontando meu endereço bem localizado, perto da avenida central.

Arrastei-me em direção a cozinha, onde o teto baixava sua altura e onde descansava Gjert. A janela ocupava toda a extensão por cima da bancada de madeira da pia e passei um café agora olhando para as árvores, os pássaros que já faziam reviravoltas. Pensei que poderia também ser útil e limparia aquele grande gramado, varreria seu capim cortado há tempos, e também as folhas secas que aos poucos se desprendiam do outono e caíam no inverno.

Como é possível que um ambiente interfira tanto em nossas sentimentos. As paredes eram troncos de madeira circulares e abrindo a porta fiz com que um vento frio soprasse minha face, tomei um gole para aquecer retornando ao bosque interno do abrigo e me encolhi entre as almofadas, buscando os livros, deixando estar essa manhã.

Preparei o almoço em minha cozinha e comi sentado em uma grande pedra lá fora, olhando o gramado que se perdia no horizonte de meu quintal. O frio da manhã se dispersara e era intervalo agradável antes da noite novamente gelada. Coloquei a bermuda e ocupei toda a tarde escovando as folhas que se soltavam de início relutantes mas que se entregavam todas em saltos, e com arrastos metálicos da vassoura fui fazendo com que se acumulassem em muitos montes, revelando meu esforço e todas as horas passaram e varri e limpei, acariciei cada canto do jardim; de todos os montes, fiz montanha final, ali estava a labuta de agradecimento. Entrei em casa, da cozinha enchi a caneca e tomei o café a vida boa que era ali fiquei olhando.

E como um jardineiro tão fiel, ao fim do dia, levei flores às minhas anfitriãs.

(…)

Andava cerca de quatro quadras arborizadas em estrada de chão batido e que continham, entre suas folhas, pequenos galpões de oficinas mecânicas a cujos proprietários eu erguia a mão cumprimentando cordialmente. Depois, casas muradas com cercas de madeiras tão simplesmente organizadas que fazia bem pro espírito e ia assim romântico no meio da rua até a farmácia da esquina, no cruzamento, quando se fazia mescla interessante de fórmulas. A avenida principal, en doble via em cada um de seus sentidos e separadas por um canteiro central, rumava por mais cinco ou seis blocos de serviços e se eu continuasse assim até o final me depararia com a encantadora praça, gramados que abrigavam jovens enamorados em dias de frio e sol, famílias que confraternizavam e liam e jogavam e sorriam, ruptura agora tão delicada na trama ortogonal do desenho urbano: lá de onde meus amigos já tinham saído, tomado seu rumo, e entendi que era sempre necessário seguir.

(…)

Como se costurassem, fazem linhas que entrelaçam o caminho, bailam com o vento. Desloco-me como um pássaro, às vezes olho pra cima e lá estão, vejo minhas companheiras, mas direciono a vista pra baixo, protejo os olhos, estimulo as pernas, forço o peito, confiante é o vento que me atinge e são pedras tão soltas que fazem um caminho de duras penas.

Atravesso o descampado que me contorna o movimento e se preenche em cores da terra, fragmentos dos quais farei colheita e levarei junto de minha memória, buscando guardar a lembrança aqui dentro, de onde ninguém me tira. É ao longe que vejo o ninho, se amontoa pra lá das montanhas, estimula a vontade de seguir e é lá que pousarei, como pássaro, de jardim em jardim, breve estada nos bosques aos quais encontro.

LUàOLSEN

SANTIAGO – Chile

30.05.18

 

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Sobre o autor

Luã Olsen é arquiteto e urbanista. Utiliza suas aventuras para experimentos literários, quando refaz a viagem para si e para o outro. Autor de TU, YO Y LA LUNA (2014), relato de sua viagem de bicicleta de Florianópolis a Buenos Aires, e INTERIORES (2017), sobre sua primeira cicloviagem, por Santa Catarina, cinco anos antes. Em 2018 realizou a TRAVESSIA KAIRÓS, pedalando através da Patagônia argentina e chilena, escrevendo suas impressões para o site da Alta Montanha.

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