Ueli Steck e as escaladas solo no Himalaia

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O alpinista Ueli Steck, apelidado de “Máquina Suíça”, é um dos montanhistas mais conhecidos do circuito de alta altitude, e virou sinônimo de escaladas solo, em estilo extremamente rápido. Em outubro, ele protagonizou uma das ascensões mais incríveis da história, que foi descrita como “uma das mais audaciosas e perfeitamente executadas ascensões dos últimos tempos, solando uma nova rota na face sul do Annapurna” (Lindsay Griffin, BMC).

Mas teria esta, verdadeiramente, sido uma escalada “solo”?

Por Rodrigo Granzotto Peron

O QUE É UMA ESCALADA SOLO?

Paira muita confusão entre os alpinistas acerca do que é uma escalada solo. Há inclusive aqueles que acham que, por não participarem de nenhuma expedição comercial e não estarem acompanhados de guias, fizeram cume “solo”, ainda que no meio de uma multidão de outros escaladores de outras expedições (por exemplo, no ataque ao cume da temporada do Everest)

Assim, para responder ao questionamento, é necessário, primeiro, fazer alguns balizamentos do que se entende por escalada solo.

No Wikipedia, verbete “solo climbing”, consta: “Escalada solo ou solada é um estilo de escalada na qual o montanhista escala sozinho, sem outras pessoas para auxiliar ou dar proteção”. Idem, no site Climonk.com é dito que “escalada solo é um tipo de montanhismo em que o alpinista escala sem qualquer parceiro”.

Para Liz Hawley, especialista e historiadora das expedições ao Himalaia, escalar solo “requer que o alpinista esteja completamente sozinho na rota, sem usar cordas fixas ou se beneficiar do caminho aberto na neve por outros escaladores” (Explorersweb.com, 2008).

No site Adventurestats.com, há diversas definições sobre aventuras e montanhismo, aclarando os conceitos e normalizando as diversas atividades de aventura. Sobre o conceito de “solo”, explica-se que “o explorador deve estar sozinho e não receber assistência externa”.

O escalador Stefan Worner acrescenta: “Minha opinião é a de que uma escalada somente pode ser considerada solo se ninguém mais estiver naquela rota da montanha ao mesmo tempo e se não houver auxílio externo de nenhuma natureza, tal como cordas fixas, barracas, trilha aberta na neve etc.” (Mounteverest.net, 2005).

Com base nessas definições, alguns requisitos básicos podem ser identificados:

1 – As atividades do montanhista devem ser realmente solitárias, estando sozinho na rota escolhida (ninguém acima, ninguém ao lado, ninguém abaixo naquela rota);

2 – Nenhum outro montanhista pode partilhar com ele a rota;

3 – O solista não deve utilizar facilidades proporcionadas por terceiros. Assim, não podem ser utilizados os acampamentos fixados por outras pessoas; também ninguém pode ter aberto a rota anteriormente, criando um “corredor” na neve; ninguém pode ter levado suprimentos montanha acima e estocado-os para facilitar a escalada; ninguém deve ter fixado cordas naquela rota anteriormente etc.

4 – A escalada deve ter sido solitária em todo o trajeto (campo-base – cume – campo-base), sem interferências externas ao longo de qualquer dos momentos do percurso.

A partir disso, algumas constatações logo emergem.

Não é possível, por exemplo, a um montanhista escalar “solo” as rotas regulares das montanhas asiáticas, uma vez que elas vivem abarrotadas de alpinistas. Ademais, usualmente as cordas são fixadas por uma equipe de sherpas (há até cobrança de “pedágio” por esse serviço), e os nepaleses e guias ocidentais abrem a trilha nos ataques ao cume (as pessoas “vão a reboque” durante as temporadas de escalada normais).

Também não é possível alegar uma “escalada solo” dizendo que “eu estava por minha conta na rota, instalei meus acampamentos, levei meus equipamentos e fiz minha própria estratégia”. Se havia outros na montanha, partilhando a mesma rota, está descaracterizada a ascensão como “solo”. A descaracterização igualmente ocorre se a subida foi empreendida seguindo a trilha aberta na neve por outras pessoas ou utilizando as cordas ficadas por outras expedições.

TIPOS DE ESCALADA SOLO

Podem ser divididas em dois grandes grupos:

a) Escaladas Totalmente Solo: São as únicas registradas realmente como “solo” nos sistemas de registro de cumes. Essas escaladas são as mais importantes, difíceis e festejadas do alpinismo em alta altitude, nas quais o montanhista faz todo o percurso solitário (campo base – cume – campo base), sem ajuda ou assistência externa, sem companheiros de cordada, e sem ter sua vida facilitada pela ação de outros alpinistas ou expedições. Normalmente acontecem por rotas novas ou paredes virginais, que são as mais propícias ao grau de isolamento necessário à empreitada.

Explicando esse tipo de escalada, a alpinista Kaila Sharlene coloca em seu website: “Quando se olha no dicionário, a palavra ‘solo’ significa algo feito por uma pessoa sozinha, sem outros companheiros. E, se o alpinista escala solitário do início até o fim da rota, então essa é uma escalada solo completa”.

b) Escaladas Parcialmente Solo: Aquelas nas quais houve alguma ajuda de terceiros ou a utilização de facilidades deixadas por outros até certa quota e, a partir dali, o alpinista prosseguiu sozinho até o cume, percorrendo uma parte significativa da rota em solitário. Por exemplo, Pierre Beghin abriu uma nova rota no Makalu (8485m), em 1989, mas obteve ajuda nas partes inferiores da montanha; do mesmo modo, Iñaki Ochoa de Olza abriu uma variante de uma rota que só tinha sido utilizada uma vez, vinte e poucos anos antes, no Shishapangma, mas compartilhou a rota com outros companheiros até os 6000 metros.

AS ÚNICAS ESCALADAS TOTALMENTE SOLO EM 8000 METROS ATÉ HOJE

Pelo grau de dificuldade e comprometimento exigido, raríssimas ascensões podem ser consideradas totalmente solo na Ásia.

A maior parte dos depoimentos dos alpinistas que alegam ter escalado “solo” uma determinada montanha contém erros de interpretação, por terem atacado o cume “sozinhos” no meio de outros alpinistas de outras expedições ou por terem avançado solitários por curta distância (convenhamos que, por exemplo, se o escalador esteve sozinho por apenas 300 metros numa face de 3500 metros de desnível, não é possível dizer que esta escalada tenha sido solitária).

Assim, eis a lista das únicas escaladas completamente solo nas montanhas de 8000 metros da Ásia:

1ª) 1978 – Reinhold Messner (ITA) no Nanga Parbat (8126m)

Uma aventura extremamente ousada para a ocasião, feita pelo visionário italiano que vislumbrou um jeito novo de escalar uma montanha de 8000 metros. Messner subiu a gigantesca Face Diamir do Nanga Parbat (4200 metros de desnível), por uma rota nova, em estilo alpino, e totalmente solo (com ele, apenas dois paquistaneses para cuidar do campo-base). Foi tão desgastante a empreitada que, no retorno, Messner literalmente apagou em sua barraca, e ficou se recuperando, sem se levantar, por vinte e quatro horas ininterruptas.

2ª) 1980 – Reinhold Messner (ITA) no Everest (8848m)

Consagrado pelo êxito de dois anos antes, Reinhold arriscou repetir sua escalada solo no Everest, novamente por uma nova rota – na Face Norte –, em estilo alpino e sem oxigênio engarrafado. Conquanto essa via não seja tão difícil tecnicamente quanto a aberta no Nanga Parbat, o fato é que é muito mais perigosa (vários corregedores de avalanche e quedas de rochas) e árdua, por causa da altitude extrema e do ar rarefeito (ele culminou sem cilindros de oxigênio).

3ª) 1999 – Zsolt Eross (HUN) no Nanga Parbat (8126m)

Essa escalada não foi muito noticiada na época, mas, anos após, colhidos maiores detalhes, tornou-se um dos grandes marcos do montanhismo na Ásia. Eross abriu uma nova rota, na Face Diamir, à direita da rota aberta por Messner em 1978, e percorreu toda a via solitário e sem oxigênio suplementar, fazendo um estupendo cume. Infelizmente, perdemos recentemente o top climber húngaro, mas a sua “obra” é eterna.

4ª) 2004 – Jean-Christophe Lafaille (FRA) no Shishapangma (8027m)

O exímio alpinista francês, que faleceu alguns anos após esta escalada, quando tentava ascender solitário o Makalu no inverno, abriu uma nova linha na Face Sudoeste do Shishapangma, quase no inverno (o cume foi na metade de dezembro), em estilo alpino e sem oxigênio suplementar, uma façanha notável.

Além dessa quatro – as únicas consideradas totalmente solo -, há várias outras escaladas magistrais e impressionantes, mas que não possuem todos os requisitos exigidos (são, portanto, parcialmente solo):

1981 – Jerzy Kukuckza (POL) no Makalu (8485m)
1981 – Hironobu Kamuro (JAP) no Dhaulagiri (8167m)
1984 – Roger Marshall (CAN) no Kangchenjunga (8586m)
1988 – Fernando Garrido (ESP) no Cho Oyu (8188m)
1989 – Pierre Beghin (FRA) no Makalu (8485m)
1990 – Tomo Cesen (SLO) no Lhotse (8516m)
1993 – Krzysztof Wielicki (POL) no Shishapangma (8027m)
1994 – Carlos Carsolio (MEX) no Broad Peak (8051m)
1994 – Yasushi Yamanoi (JAP) no Cho Oyu (8188m)
2000 – Jean-Christophe Lafaille (FRA) no Manaslu (8163m)
2006 – Iñaki Ochoa de Olza (ESP) no Shishapangma (8027m)
2006 – Pavle Kozjek (SLO) no Cho Oyu (8188m)

E A ESCALADA DO ANNAPURNA POR UELI STECK?

Com ampla cobertura em toda a mídia mundial, a façanha de Ueli Steck no Annapurna – escalada de todos os 3200 metros da Face Sul em meras 28 horas, por uma nova rota, sozinho e sem oxigênio engarrafado – tem sido decantada nos quatro cantos do planeta.

Tributo à genialidade de um dos maiores alpinistas da atualidade – apelidado carinhosamente de “A Máquina Suíça” (Swiss Machine) -, Ueli bateu o recorde de velocidade de escalada do Annapurna e, de quebra, completou a rota que ele mesmo havia tentado duas vezes antes, sem sucesso.

Todavia, ao contrário do que foi noticiado, a ascensão dele não pode ser classificada como “completamente solo”, conforme com o relato por ele mesmo divulgado. Baseado nos dizeres do suíço, registrou-se no site The BMC: “Este ano, ele planejou escalar junto com o canadense Don Bowie. Ambos aclimataram na face e estocaram equipamentos (cordas, barraca, fogão, comida etc.) por volta dos 6100 metros, mas, lá chegando no dia do ataque ao cume, Bowie sentiu-se inquieto em prosseguir sem cordas parede acima e decidiu não continuar”.

Nos dizeres do próprio Ueli, em seu blog pessoal, “Don Bowie, meu parceiro, decidiu na altura do Bergchrund (greta na base da face) não entrar na parede. Ele alegou que escalar sem cordas era tecnicamente muito complicado e decidiu retornar. Desse ponto (6100 metros) eu escalei sozinho”. Após, ele adicionou: “Nas semanas que antecederam o ataque ao cume, durante o processo de aclimatação, nós fomos estocando, por volta dos 6100 metros, equipamentos. Lá colocamos cordas, uma barraca, fogão e algumas coisas para comer. Antes de me largar na face, eu empacotei a barraca e o fogão na mochila. As cordas deixei lá, pois eu já tinha outras de 6mm comigo”.

O campo-base do Annapurna (Face Sul) fica a 4300 metros. Ueli obteve ajuda e compartilhou a rota com Don Bowie até os 6100 metros. Logo, teve certo nível de auxílio externo e divisão de tarefas por 1800 metros.

Portanto, é um feito monumental, estupendo, inegável isso, mas no tocante ao grau de auxílio externo obtido, caracteriza-se como uma “escalada parcialmente solo” apenas.

Texto: Rodrigo Granzotto Peron
Data de conclusão do artigo: 7-11-2013
 

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Sobre o autor

Texto publicado pela própria redação do Portal.

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