Um Conto de Fadas

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Viajar para regiões distantes, em especial em outros países, é como encontrar novas feições da realidade. Mas visitar o Butão me pareceu sair da realidade comum e transitar numa nova, que quem sabe nem real seja.

A principal razão não é a geografia, mas a cultura. O Butão é adepto da vertente mágica do Budismo, que alia os ensinamentos de Buda com a crença em fatos maravilhosos.

Você sabe que o Budismo é mais uma prática ou uma filosofia do que uma religião, ao buscar vencer o desejo e o sofrimento através de uma vida de disciplina, renúncia e virtude. Afirma que sucessivas reencarnações, ao fim de um longo processo, irão levar seus discípulos à plenitude da libertação, vencendo o que chama de inconstância deste mundo de aparências.

Mapa do Butão, um pequeno país montanhoso, com 250 km E-W e 150 km N-S. O nome do país significa País do Dragão, que é o seu símbolo.

A matriz cultural do Butão é o Tibete, de onde veio no século VII o Guru Rimpoche – reverenciado como o Segundo Buda, foi quem introduziu a religião no país. Ele meditou num impressionante penhasco, ao qual chegou nas costas de sua companheira, que para lá voou sob a forma de um tigre. (Os gurus butaneses me parecem um tanto mulherengos.) Nesta escarpa existe hoje o Mosteiro de Taktsang ou Ninho do Tigre. Voltarei a falar dele.

Os ensinamentos de Rimpoche foram por ele escondidos, o que gerou desde então uma atividade milenar por parte dos chamados descobridores de tesouros. Imagine que esta prática, embora modificada, continua até o presente – ou seja, os butaneses ainda tentam encontrar essas relíquias em lagos, florestas e montanhas. Na realidade, muitos dos governantes do Butão chegaram a seus cargos porque foram considerados reencarnações físicas ou mentais dos gurus do passado.

O animal nacional do Butão é o takin, uma misteriosa mistura de bovino (ou antílope) e cabra (ou ovelha). Ele foi criado de repente pelo Guru Drukpa Kuenley, apelidado de Divino Louco – era um homem bonito e devasso que teve várias peripécias na vida. Um mosteiro repleto de figuras de pênis celebra suas façanhas.

Muitos templos no país ficam perto de pontes metálicas que vencem seus inúmeros rios. Pois meia centena delas foram criadas num só dia por Drupthob Chagzampa, o Mestre Construtor de Pontes.

Bandeira do Butão.

Só mais um exemplo. Talvez o mais belo vale do país seja o de Phobjikha, uma bacia de origem glaciar no centro das Montanhas Negras. No inverno os grous de pescoço preto voam das altitudes do Tibete para se abrigarem neste vale. Os camponeses dizem que, ao chegar e ao partir meio ano depois, estas aves sobrevoam por duas vezes o local sagrado do mosteiro local, sempre no mesmo sentido. Eles sabem que os grous seguem esse comportamento por serem pássaros celestiais – não é opinião, é certeza.

Por que estou relatando estas histórias bizarras? Para explicar que são tranquilamente aceitas como fatos verdadeiros no Butão. Os butaneses realmente acreditam que seus gurus passaram por manifestações múltiplas de si mesmos, acontecidas ao mesmo tempo e em lugares diversos.

As histórias mágicas de suas vidas lhes servem de inspiração – pois seus feitos espetaculares permitem superar as diferenças entre nome e forma, espaço e tempo e mesmo vida e morte. Os butaneses parecem conviver com uma surpreendente realidade interior. Dizem que só a mente é real, não os objetos do mundo.

Imagem dos animais budistas.

Desculpe esta introdução tão longa, mas só comecei a funcionar no Butão depois de tentar incorporar o que chamo de sua realidade mágica. Por isto, o país é comumente visto como um conto de fadas, um reino místico isolado da influência do mundo moderno. Mas isto é uma verdade provavelmente incompleta.

O Butão era um país dividido em pequenos feudos violentos, até que foi unificado por um príncipe vindo no século XVII do Tibete. Foi ele quem introduziu a peculiar arquitetura dos dzongs, grandes construções muradas que funcionavam ao mesmo tempo como fortalezas e como mosteiros. Situados normalmente nos altos, dominam com imponência e beleza a paisagem do país. E permitiram que ele nunca fosse invadido por nenhuma outra nação, fossem o Tibete, a Inglaterra ou a Índia.

A Fortaleza ou Dzong de Punakha fica na confluência de dois rios, num vale cercado por montanhas. É a meu ver a mais bela construção do país.

Os dzongs depois construídos permaneceram idênticos pelos seis séculos seguintes, num exemplo único de preservação da cultura. Hoje continuam com uma função dupla, abrigando monges e administradores.

De forma impressionante, os dois mil templos do Butão estão sendo metodicamente restaurados, com suas fachadas muradas, suas madeiras complicadas e suas pinturas vistosas. É incrível saber que um país tão pobre e de população tão pequena (apenas 800 mil) investe tanto em preservar sua história.

O Butão voltou a ser unificado no começo do século XX, quando os governadores que tinham revertido ao feudalismo escolheram o fundador da Dinastia Wangchuck como seu primeiro monarca. O país foi sendo modernizado por seus sucessores. Hoje ele é uma monarquia constitucional e o Rei Jigme Wangchuck (o quinto da série) é adorado pelo povo. We belong to him, me disseram com sinceridade.

O Rei do Butão Jigme Wangchuk, nas vésperas de seu casamento com Jetsun Pema – o mais belo casal real. As vestes masculinas são chamadas de gho e as femininas, de kira.

Cerca de 2/3 da natureza do Butão é representada por florestas nativas – e sua conservação é prevista na Constituição. Apesar de possuir poucos vales agricultáveis devido ao seu relevo abrupto, grande parte da população é de camponeses, muitos deles analfabetos e matriarcais. Seu isolamento os tornou conservadores e independentes. E participantes de muitas cerimônias e festivais que afirmam a riqueza de sua cultura.

A escravatura foi abolida no país nos anos de 1950. As duas décadas seguintes presenciaram a primeira rodovia asfaltada, o advento do rádio, a estreia de uma moeda nacional e o ingresso dos primeiros turistas. Até a língua do Butão foi criada recentemente, para unificar um país semifeudal. Só no fim do século XX apareceram a televisão e a internet. Até recentemente, o Butão era um dos países mais fechados e menos visitados do mundo. E dos mais pobres e atrasados.

Foi nesta época que o pai do atual Rei (que abdicou em seu favor) percebeu que teria de proteger seu país das ameaças culturais e ambientais do progresso. Criou o conceito de Felicidade Nacional Bruta (por oposição ao usual Produto Nacional Bruto) para medir a sua economia. É baseada nos quatro pilares de desenvolvimento social, preservação da cultura, conservação do meio ambiente e boa governança. Este conceito esplêndido é aplicado e avaliado no país inteiro – e aparentemente abraçado por sua população.

Thimphu, a capital do Butão, com o Pico Jomolhari ao fundo. Hoje no Butão as montanhas não podem ser escaladas.

No Butão não parecem existir nem ricos nem pobres. Há muitos cães vadios, aliás todos gordos, lerdos e peludos, e nenhum mendigo ou bêbado. Não vi nem porcos nem frangos, pois quase toda a carne provém da vizinha Índia – nenhum animal pode ser abatido no país. E árvores só podem ser cortadas seletivamente.

O povo usa vestimentas de tecidos ricamente decorados e mora em casas sempre em estilo tradicional, inclusive no campo. A saúde e a educação são basicamente gratuitas. Não é permitido se prostituir, fumar ou se drogar. No passado, a maior parte das guerras envolveram o Tibete, uma nação então agressiva que ambicionava se expandir para o sul. Hoje não há mais violência.

A economia do Butão apresenta enormes e insustentáveis déficits. Sua renda per capita é algo como 1/3 da nossa. O país não tem relações com a China (que invadiu e tomou o Tibete em apenas três dias na década de 1950) e é dependente da Índia, sendo às vezes visto como um Estado vassalo. Entrementes, o Butão tem passado por uma explosão populacional e um extraordinário surto de desenvolvimento. Muito provavelmente, sua população jovem aspira se ocidentalizar.

Até quando a felicidade e a espiritualidade do Butão medieval poderão resistir ao assédio do progresso capitalista?

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Sobre o autor

Nasci no Rio, vivo em São Paulo, mas meu lugar é em Minas. Fui casado algumas vezes e quase nunca fiquei solteiro. Meus três filhos vieram do primeiro casamento. Estudei engenharia e depois administração, e percebi que nenhuma delas seria o meu destino. Mas esta segunda carreira trouxe boa recompensa, então não a abandonei. Até que um dia, resultado do acaso e da curiosidade, encontrei na natureza a minha vocação. E, nela, de início principalmente as montanhas. Hoje, elas são acompanhadas por um grande interesse pelos ambientes naturais. Então, acho que me transformei naquela figura antiga e genérica do naturalista.

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