Um mês de escalada técnica na cordilheira Branca – Parte I

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Pela primeira vez não sei muito bem por onde começar este relato. Muita coisa que aconteceu e pra contar. Então vou rebobinar ao começo de 2013, quando estava no Equador, e o Nacho ficou me buzinando que ao invés de ir pra Bolívia, eu deveria conhecer a Cordilheira Branca no Peru, e experimentar algumas escaladas técnicas nas melhores montanhas dos Andes, segundo ele. Buzinou tanto que acabou me convencendo. Conversando com ele por e-mail acabei fechando em 4 montanhas, gradualmente subindo o nível técnico, tudo dentro do que ele achava que eu tinha capacidade de fazer.

Consegui convencer a chefia a me liberar 2 semanas antes do que poderia tirar férias, e mais ainda a me liberarem por 1 mês. Comprei a passagem e deixei pra ver detalhes mais pra frente. Sem pós graduação pra me preocupar, comecei a retomar os treinos já em março, correndo de 5 a 7km duas vezes por semana. Estava escalando em rocha praticamente em todos os finais de semana, e treinando mais duas vezes por semana na 90 graus (ginásio de escalada). Esse pré-treino aeróbico durou até mais ou menos o meio de abril, quando coincidiu de acabar meu plano na 90, e de faltarem 4 meses pra minha viagem. Daí em diante larguei a 90, comecei a correr diariamente, e fui subindo a quilometragem: ao final de junho já estava correndo entre 50-60 km por semana, além do treino em elíptico e dos exercícios de resistência muscular pras paredes de gelo que demandariam panturrilhas e coxas de aço. Nesse tempo também fechei praticamente todos os detalhes da viagem, e fiquei livre pra me concentrar em treino. Consegui comprar os equipamentos que faltavam e fiquei de olho nos condições climáticas da temporada, que, desde o começo estavam ruins (mas até aí tudo bem, pior que o Equador não poderia ficar).
 
Nos meses que precederam a viagem eu estava completamente focada em ter um bom desempenho físico pra potencializar minhas chances de cume, sabendo que a época que eu ia não era a melhor e com certeza enfrentaria clima ruim e teria grandes chances de não culminar algumas montanhas. Para isso, mantive o itinerário flexível, com muitos planos B: o original incluía Yanapaccha, Chopicalqui, Alpamayo e Artesonraju, vários dias de contingência e mais uns dias no final, ainda sem definição.
 
Óbvio que logo antes da viagem muita coisa deu errado – meu pai teve com um câncer repentino e foi operado, e tive que sair do apartamento onde. Nisso, os treinos desandaram em julho e agosto, e por tudo que tive que correr atrás, acabei treinando uma média de 2 vezes por semana, além de estar exausta. Minha resistência caiu horrores e passei algumas semanas doente com sintomas de tudo que é possível e imaginável.
 
Mas no final das contas quase tudo se resolveu, e no dia 17 de agosto embarquei pra Lima, para o que seria um mês épico de verdadeira escalada em alta montanha, e definitivamente um divisor de águas na minha experiência, senão carreira, como montanhista.
 
PRIMEIROS DIAS EM HUARAZ
 
Minha aclimatação foi bem simples, já que eu sabia que ia passar alguns dias a mais que o normal na Yanapaccha. Nos primeiros dois dias não fiz muita coisa, perambulei por Huaraz e comprei algumas coisas pra primeira saída, tudo muito tranquilo, já que tinha saído de 800m pra 3100m. Aproveitei pra almoçar e jantar em vários locais conhecidos dos gringos, e dar uma olhada nas lojas pra ver se tinha algum equipamento interessante que valesse a pena levar pro Brasil. No terceiro dia me juntei a um grupo de gringos e fomos fazer a trilha até a Laguna Churup, um ponto bastante famoso de aclimatação. Fazemos uma trilha de umas 2 horas até uns 4500m. Ficamos lá bodeando e depois descemos pra chegar em Huaraz no começo da tarde. Logo depois encontrei com o Beto pra discutirmos alguns detalhes da saída no dia seguinte. Daí foi arrumar mochila e dormir cedo pra finalmente, depois de mais de 6 meses, voltar às montanhas.
 
YANAPACCHA, 5460m
Via Direta, AD, 200m 70-80°
 
A Yanapaccha é uma das vizinhas desconhecidas do Pisco, mais baixa porém mais difícil, e costuma ser a primeira opção de quem está aclimatando para outras montanhas técnicas. Ela oferece altura razoável e uma parede bem interessante como aquecimento para projetos mais difíceis, além de uma boa geleira para revisão de procedimentos e treinamentos específicos. De Huaraz vamos até o vale de Llanganuco, onde também estão o Huascarán Norte e Sul, os Huandoys, o Pisco e Chopicalqui. A entrada no vale é deslumbrante, e Llanganuco é considerado o mais bonito dos vales da Cordilheira Branca. O vale, assim como outros, é uma falha gigantesca no meio da rocha, portanto suas paredes são rochas altíssimas e íngremes, sobre as quais estão todos os nevados, e no meio correm as águas azuis e turquesas das geleiras, às vezes formando lagunas, e proporcionando uma visão inesquecível logo de cara. 
 
Decidimos ficar mais que os 3 dias padrão, assim eu poderia fazer uma revisão de conceitos e aprender algumas coisas novas, principalmente de escalada em gelo, e de como lidar com as diversas situações que podem acontecer numa cordada de 2 pessoas. O tempo não estava lá muito amigável nesse período, sempre com muitas nuvens.
 
Mas nada que pudesse atrapalhar nossa tentativa de cume, e no dia 25 de agosto levantamos às 3h30 e saímos às 4h pra atacar o cume. Um grupo de 1 guia e 2 clientes da Mountain Madness já tinha saído às 3 e serviu de referência pra nossa localização. Liderei a cordada por toda a geleira até chegarmos a uma parte mais íngreme, onde preferi que o Beto assumisse. Daí subimos até a primeira rimaia, de onde começamos 4 enfiadas até o cume. Foi nesse ponto que encontramos o grupo da MM, que já na segunda enfiada ficou pra trás. Desajeitada que sou e aos poucos me reacostumando à neve depois de 6 meses, tive um momento engraçadíssimo, que foi que justo na segunda enfiada, que tinha a parte mais íngreme e de gelo, a 80°, e o pior lugar onde isso poderia acontecer: minha bota começou a sair do meu pé! Vai entender que merda aconteceu, mas minha polaina abriu e quando vejo meu calcanhar estava saindo pra fora da bota interna. Tentei gritar pro Beto segurar bem a corda, mas ele não entendeu nada, então coloquei peso, segurei as luvas externas na boca e numa das cenas mais ridículas senão hilárias onde já me meti, tive que re-amarrar a bota inteira, no meio da parede.
 
O tempo estava bem fechado no cume, mas em alguns poucos momentos pudemos admirar o Chacraraju logo à frente, e vez ou outra víamos o topo do Huascarán e do Pisco entre as nuvens. Esperamos uns 20 minutos até o outro grupo chegar pra podermos unir as cordas e fazer rapéis mais longos, e depois de 4 rapéis, chegamos à uma parte não tão íngreme da geleira, desescalamos mais um pouco e seguimos de volta ao acampamento. O Beto já estava meio doente fazia alguns dias, e ao invés de descermos pra Huaraz no dia seguinte, resolvemos descansar 1 horinha e descer no mesmo dia. Ele com uns 30kg e eu com uns 22kg, descemos em 1h30 até a beira da estrada onde passamos algumas horas debaixo de granizo e neve, esperando nosso carro aparecer. Cansada porém não exausta, eu só pensava em poder atacar a gastronomia peruana, já que passaríamos uns 3 dias em Huaraz pra acompanhar o Inka Fest.
 
Nesse tempo já conversando com outros grupos e tendo informações prévias, ficamos sabendo que o Chopicalqui estava com muita neve e os grupos estavam voltando sem cume. O Beto sugeriu que trocássemos pelo Tocllaraju, também de mais de 6000m, mas com 2 enfiadas técnicas no final, pois seria mais interessante pra mim como objetivo. Sugestão aceita, ficaríamos alguns dias em Huaraz e partiríamos pro Toclla pra subir e descer em 4 dias.
 
A SÍNDROME DE HUARÁZ
 
Quando estive no Peru em 2005, tive um sem número de crises de piriri, pois estava viajando num esquema super barato, comendo na rua e em mercados populares. Até aí tudo bem, pois não estava escalando, mas definitivamente, era um dos meus maiores medos no Peru, por isso levei dinheiro a mais desta vez pra comer só em "restaurantes de gringos" e evitar que acontecesse isso. Mas quem me conhece sabe que não só eu adoro comer, como como pra caramba, e não resisti ao convite do Beto pra comer ceviche num lugar meio suspeito logo quando descemos da Yanapaccha. Estava delicioso, mas no mesmo dia já comecei a sentir desconforto. Nos próximos dias iríamos acompanhar o Inka Fest, um dos festivais de filme de montanha mais importantes da América Latina (senão o mais, e esse ano a convidada principal era a Silvia Vidal – minha ídala – que ia falar sobre uma via aberta no Huascarán). Consegui ir na abertura, e no dia seguinte ia escalar com uma galera local, incluindo um tal que é o melhor escalador de esportiva do Peru e manda nono grau descalço (!!!), mas com a barriga piorando, acabei desistindo. E no dia seguinte, veio a febre, a suadeira e as coisas líquidas, e só deu tempo de comprar antibiótico e voltar pra cama. De noite, me sentindo fraquíssima, pedi socorro ao Beto que mobilizou uma amiga e a irmã pra cuidarem de mim pois ia fazer uma palestra no festival. Isso significou que não só eu perderia a palestra do Beto, um jantar com a Silvia Vidal, a escalada em rocha, mas também que teríamos que adiar nossa ida ao Toclla em 1 dia, e ainda assim arriscar ir comigo sob antibióticos e ainda meio zureta. Eu mal conseguia ficar de pé fora da cama, mas teimosia é teimosia, apesar dos dias extras que eu tinha no itinerário. Depois de começar a tomar o remédio, acordei melhor e já conseguia até piscar os olhos! Nesse dia me entupi de arroz e frango pra ver se conseguia recuperar a energia pros próximos dias.
 
TOCLLARAJU, 6032m
Aresta Noroeste, D
 
O Toclla fica no fundo do vale de Ishinca, de onde também se pode escalar, entre outros, o Ishinca, Urus, Ranrapalca e Palcaraju. É uma montanha considerada intermediária, com duas rotas técnicas: a mais "fácil" pela aresta noroeste (D), e uma rota direta pela sua parede oeste-sudoeste (D+). Depois de mais ou menos 2 horas desde Huaraz, começamos a aproximação ao refúgio, uma caminhada de 13 km por uma trilha bem marcada com ganho de altitude pequeno e suave, que acompanha o rio de degelo das montanhas no fundo do vale. Pelo fato de eu ainda não estar recuperada 100%, o Beto achou melhor termos um burro pra carregar as mochilas mais pesadas, e ficarmos no refúgio pelo melhor conforto. Mesmo assim, me arrastei nesse primeiro dia, mesmo a trilha sendo fácil e eu estando só com uma mochila pequena. Não imaginava existir a possibilidade de carregar todo o equipamento até o campo alto no dia seguinte, então apenas coloquei como objetivo chegar no refúgio.
 
Cheguei exausta, almocei e dormi durante a tarde, e de noite fiquei papeando com o Beto e um outro pessoalzinho. Às 8 da noite eu já subi pra cama pois o dia seguinte seria de sofrimento. O refúgio fica a 4300m e iríamos subir pra 5100m com todo o acampamento nas costas. A subida começa suave, mas depois o caminho é quase todo bem íngreme e vamos fazendo zigue-zague pela encosta pra depois atravessar uma moraina chatíssima até chegar à area de acampamento. Tudo isso com a mochila bem pesada e botona plástica. Taquei Sublime e Guns'n'Roses no celular, e debaixo de sol forte fui subindo e experimentando a sensação de ser um burro de carga, mas pelo menos estava mais forte que no dia anterior. Na moraina já tinha neve fresca, o que não era um bom sinal. Foi só chegar que em menos de 30 minutos estávamos com comida pronta e devorando o almoço.
 
Do acampamento temos uma boa visão da rota, e passamos um tempo estudando e falando um pouco sobre histórias da montanha que mais matou na temporada 2013. Logo à nossa direita, uma cruz improvisada lembrava o esquiador esloveno que morreu descendo a Direta, e no refúgio uma plaquinha improvisada tinha a descrição das roupas de um dos argentinos que morreu tentando a mesma via, e cujo corpo ainda não tinha sido encontrado. Depois observamos o Palcaraju, onde na temporada anterior morreram 2 americanos na outra face. Ouvi detalhes de todos os acidentes e discutimos erros e acertos, num momento típico onde realmente percebemos a seriedade dos objetivos e das montanhas que estamos prestes a escalar. Assistimos à algumas avalanches na geleira do fundo do vale. Logo depois fui descansar e o Beto foi bem cavalheiro e passou mais ou menos uma hora na geleira já abrindo a trilha. Infelizmente não voltou com notícias boas, pois havia muita neve. Fomos dormir e aí começamos a escutar avalanches não só no fundo do vale, mas também na geleira logo atrás de nós, ou seja, bem por onde teríamos de passar.
 
Acordamos e rapidinho nos equipamos com tudo, pois a geleira estava a literalmente, 20 metros de nós. O Toclla, assim como várias outras montanhas do mundo, tem uma graduação que lentamente começa a subir. É claro que as condições e rotas das montanhas mudam de ano a ano, mas no geral, e no caso da Cordilheira Branca, com a diminuição das geleiras, as rotas tem ficado mais difíceis, e neste ano, o Toclla que costuma ser AD, estava graduado em D, por causa da pirâmide do cume. De novo começamos comigo liderando a cordada. Entramos fazendo um longo switchback com neve tipo açúcar no meio da panturrilha, até ganharmos uma longa parte plana onde a neve chegou no joelho. Em condições boas imagino que essa parte seja fácil, mas mesmo já com a trilha aberta até certo ponto, ficar subindo a perna alto mesmo numa inclinação baixa como essa é bem cansativo, além do que, descobri bem aí que minhas botas apesar de serem quentes, esfriam muito rapidamente quando se tem que enterrar o pé na neve. Finalmente chegamos à parte onde iríamos ganhar a crista, onde vimos aqueles blocos de avalanche recente. Nesse ponto o ideal seria cruzar correndo, mas como correr por ali com neve fofa até o joelho? Mesmo correndo, arriscaríamos o residual da avalanche cair bem na nossa cabeça. E pra voltar, com o tempo quente como estava, seria ainda mais arriscado. Minha tolerância pra risco ainda é baixa, e lembrando nossas observações durante a tarde, não precisamos trocar mais que 5 palavras pra saber que seria melhor descer. Estávamos a 5350m.
 
Nem fiquei muito triste, afinal, montanhas não se mexem e vindo na parte certa da temporada e com tempo é plenamente possível fazer a montanha sem passar por esses riscos desnecessários. Na Cordilheira Branca esse é o tipo de condição que gera acidentes, e nenhum dos dois queria ficar enterrado ali por burrice e virar mais um número na estatística de acidentes da temporada. Meu pé já começava a doer por conta do frio e senti alívio de concordarmos em descer. Acredito que em termos de neve ruim, o Toclla estava com as piores condições que eu já presenciei. Voltamos pro acampamento e dormimos até cedo. Desmontamos tudo e descemos em poucas horas de volta ao refúgio, onde encontramos um amigo do Beto, o Monstro, um guia local que faz muitas ascenções técnicas em solitário, e ficamos tomando litros de chá, ouvindo das escaladas, discutindo condições das próximas montanhas e falando besteira até altas horas. Além dele e seu cliente, um casal ia tentar subir nos próximos dias. No dia seguinte empacotamos tudo rapidamente e partimos de volta a entrada do vale pra regressar à Huaraz. O outro dia foi de pesquisa e descanso. Precisávamos saber como estavam as montanhas no vale de Santa Cruz – Alpamayo e Artesonraju – pra ajustarmos a programação. Eventualmente ficamos sabendo que nenhum dos grupos que tentou Toclla depois de nós foi muito mais longe do que fomos.
 
A parte principal da viagem vem na segunda parte do relato.
 
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Sobre o autor

Nômade por acaso, Cissa Carvalho nasceu em São Paulo, já morou no Alabama e na Amazônia, e atualmente reside na capital Paulista até que os ventos novamente a levem pra algum destino inusitado do planeta. Trilha desde pequena e conheceu as montanhas com vinte e poucos anos, mochilou a América do Sul, andou pelas montanhas brasileiras e nos últimos anos tem se dedicado ao montanhismo de altitude, e mais recentemente à escalada em rocha. É bacharel em design gráfico e pós-graduada em design editorial.

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