Vou falar sobre acidentes

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Não passa um final de semana ou feriado sem que apareçam notícias sobre alguém que se perdeu e foi resgatado pelo GOST, mas o pior é que não poucas vezes a história termina de modo trágico. A temporada de rios e cachoeiras está só começando e já temos o primeiro óbito na Serra do Mar. Acidentes acontecem no montanhismo e muitas vezes são até inevitáveis, mas esta sequência ininterrupta e macabra que estamos assistindo pelos meios de comunicação e mídias sociais gritam outra realidade. O que vem acontecendo não são acidentes, são erros estruturais e existem culpados por estes pequenos contratempos e pelas irremediáveis tragédias.

Culpados são os clubes, associações, FEPAM e seus antigos dirigentes que negligenciaram sua principal e talvez única razão de existir que é a iniciação dos novatos através dos ensinamentos mínimos para a prática segura do montanhismo. Por décadas investem e incentivam a marcação de trilhas com fitas, instalação de cordas fixas, correntes e degraus que facilitam a vida dos ineptos para vivenciarem suas tragédias e dos profissionais de resgate que deveriam ficar disponíveis para atender os acidentes realmente inevitáveis.

Travessia Morro do Canal – Vigia em 2 fases, com corda e com degraus. Em que fase ocorreram os acidentes?

Há décadas que também venho alertando para este lamentável destino, mas também sendo duramente combatido por estas entidades e seus integrantes mais ferrenhos. Neste período de tempo identifiquei quatro tipos de gênios aguerridos nesta prática.

O primeiro é aquele incompetente com iniciativa que prega pedrágios e outras facilidades. “Vamos retribuir às montanhas os bons momentos que lá passamos”, sendo que a própria natureza criou obstáculos para barrar os incompetentes e ineptos. A montanha só quer paz e tranquilidade, mas recebe com cortesia aqueles que se preparam para ela.

O segundo é o esperto que antevendo futura demanda turística para a atividade, tratou imediatamente de asfaltar os caminhos, mas dormiu no ponto e foi ultrapassado na reta final. Amassou a farinha e assou o pão, mas foram outros os que se banquetearam.

O terceiro tipo são os ideólogos de miolo mole. Ditadores de botequim, cegos pela sua própria ignorância e arrogância que se tornam professores de Deus. Movidos por anseios políticos para cargos e prestígio embrulhado em abundante retórica que já vi terminar numa camisa de força.

O quarto tipo é o mais comum, inocente útil, massa de manobra que se presta ao trabalho braçal, carrega as pedras e diz amém aos sábios descritos acima. Não poucos se encaixam em todas estas categorias simultaneamente.

O pior de tudo isto é que os clubes e a própria FEPAM perderam prestígio se transformando em inócuas associações burocráticas suplantadas pelas novas tecnologias de orientação, mídias sociais e guias de turismo pouco seletivos para levarem amadores despreparados nos roteiros que disponibilizam.

Estes são os problemas, mas e as soluções? Existem? Quais?

Sim existem soluções para todo e qualquer problema que se apresente e estes nem de longe são os piores que temos a enfrentar, mas antes é necessário cabeça fria e pés no chão para se desvencilhar das ideias mirabolantes que demandem muito esforço ou dinheiro.

A primeira solução fácil e completamente inútil é exigir do Estado o controle dos acessos. Entenda que o Estado existe apenas para roubar você vendendo soluções ilusórias. Os containers do IAT na entrada do PP, do Itupava/Salto dos Macacos e do Marumbi já impediram que algum desavisado quebrasse o pescoço? São inúteis até para controlar o número de pessoas que adentram as montanhas mais badaladas nos finais de semana. Existem furos em todo o perímetro e nem todo o contingente de policiais do Estado poderiam conter ou fiscalizar a manada. Proibir e ameaçar é igualmente inútil ou funciona na Travessia Alpha-Ômega?

A segunda solução nem tão fácil, mas igualmente inútil é espelhar os parques e trilhas gringas que são calçadas e sinalizadas contando com infraestrutura invejável. Money que é good nóis num have (Mamonas Assassinas). Num país em que 70% das cidades não tem tratamento de esgoto gastar dinheiro público em trilhas de montanha seria mais que sacrilégio, seria crime. Dá para privatizar os roteiros mais glamurizados, mas então certamente a manada se direcionará para outros pastos e os problemas continuariam.

A terceira solução que me vem a cabeça não é nada fácil. Trata-se de convencer as atuais diretorias dos clubes de montanhismo a revalorizarem estas associações tornando-as novamente necessárias e talvez até indispensáveis para o montanhismo atual. Os clubes poderiam assumir a magna tarefa de educar e instruir os novatos nas técnicas e conhecimentos necessários para a prática do montanhismo seguro nos seus diversos níveis.

A quarta iniciativa que é complementar a terceira cabe a FEPAM ao cadastrar e informar ao público todos os acidentes ocorridos nas serras, montanhas, trilhas, rios e cachoeiras do Estado do Paraná identificando os guias responsáveis pelo grupo, individualmente e por empresa, possibilitando a atuação do livre mercado na seleção destes profissionais, separando o joio do trigo.

E nós montanhistas federados ou independentes o que fazer para dormir com a consciência tranquila pelo fato de não ter cooperado para que os desavisados se percam ou se matem, para que os maus educados deixem de contaminar trilhas, cumes e rios com seus dejetos biodesagradáveis e os que chatos parem de incomodar com suas pequenas e inconvenientes JBLs? Sim podemos ajudar retirando as fitas de marcação e as tabuletas indicativas num primeiro movimento, depois paulatinamente retirando degraus e cordas fixas para devolver as montanhas e matas suas defesas naturais que separam os preparados dos inconsequentes, sem nenhuma lei, controle ou proibição.

Fácil não é. Foram anos de descontrole seguindo na direção do abismo e não será nada fácil reverter esta tendência. Haverá muita resistência, muito choro e o trabalho terá que ser repetido muitas vezes porque nunca faltará fita para marcar arvores, tinta para pintar pedras e gente disposta a seguir no caminho inverso. Mas é fato que eliminando estas facilidades desnecessárias você estará colaborando para a valorização dos clubes de montanhismo como instrutores e educadores das futuras gerações de montanhistas, colaborando para manter as montanhas do Paraná limpas e íntegras e principalmente colaborando na diminuição dos acidentes previsivelmente evitáveis.

Finalmente admitam o óbvio. Facilidades facilitam e dificuldades dificultam. Quanto mais fácil, mais gente despreparada, mais erosão, mais lixo e mais acidentes evitáveis. Calçamento, fitas e placas facilitam. Labirintos, paredões e confusão de trilhas dificultam e retiram o incentivo dos tarados por selfies irresponsáveis. Dificuldades valorizam a atuação dos clubes e aumentam os ganhos dos guias de turismo responsáveis retirando os maus profissionais do mercado. Durma com a consciência tranquila.

 

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Sobre o autor

Julio Cesar Fiori é Arquiteto e Urbanista formado pela PUC-PR em 1982 e pratica montanhismo desde 1980. Autor do livro "Caminhos Coloniais da Serra do Mar", é grande conhecedor das histórias e das montanhas do Paraná.

9 Comentários

  1. Francisco Leszek em

    Prezado Sr. Júlio Fiori,

    Quando o Sr. se refere a culpa dos clubes de montanhismo, também se refere ao seu CÚme, o clube qual o Sr. faz parte?

    Agradeço a resposta.

    Respeitosamente

    Francisco Leszek

    • Seu texto é excelente mas traz uma solução decepcionante…retirar ferramentas de apoio?retirar degraus,demarcações e cordas ? Muitos iniciantes utilizam essa forma para conseguir prestigiar uma bela escalaminhada,vencer limites de forma solo,respeitosa,sem degradação do ambiente,sem visar lucros ou fazer parte de diversos clubes.
      A natureza é livre e montanhista independentes não precisam de ditador da montanha.

    • Como sempre uma postura de crítica mas sem ação.

      Hipocrisia um montanhista federado apresentar um posicionamento tão infundado. Porque participa de clube então? Quem sabe seja hora de largar esse meio de montanha e seguir outro rumo. Ou agrega ou parte pra outra.

      Montanhismo deve ser inclusivo como qualquer outro esporte. Se existem grampos, cordas etc, é para evitar maiores desgraças. Hipocrisia reclamação de geração de facilidades, divulgação etc, quando muitos quem deveriam dar exemplo fazendo travessias proibidas, divulgando e incentivando isto como montanhismo real. Isso sim gera acidentes e má orientação.

      Ajude na educação de novos montanhistas através dos bons exemplos, da conscientização, tolerância, repasse de conhecimento e ética.

      Att

      Thiago Pegetz

  2. Acho elitista a postura. Gosto muito das trilhas do Marumbi, por exemplo, considero um exemplo espetacular, com as fitas e os degraus nos trechos verticais. Gosto bastante também da trilha do Pico Paraná. São rotas que eu nunca canso de repetir levo amigos, é muito legal. Há espaço para todos, essas trilhas equipadas sempre serão exceção. Os caminhos para a aventura são infinitos, quem prefere a rocha original vai encontrar infinitos desafios: Ibitirati, as paredes do Morro Sete, é só olhar em volta, tem paredes para todos os lados Ter uma ou outra via ferrata só acrescenta opções ao montanhismo, acho muito positivo. A Europa tem uma tradição de vias ferratas, há distintos níveis, acho muito interessante esse segmento do montanhismo. Queria que houvessem mais vias ferratas no Brasil, minha posição é oposta àquela do colunista. Aliás, uma pena que o colunista não veja qualquer mérito nas trilhas verticais e vias ferratas, inclusive com desmerecimento de quem curte essas modalidades. Mas para cada escalada na face da Esfinge ou da Pedra do Sino, devem ocorrer umas 5000 ascensões pela trilha até a Pedra do Tigre e o Olimpo. A proporção deve ser a mesma entre o paredão do Ibitirati e o Pico Paraná. Quem quer sossego e solidão pode encontrar em milhares de montanhas pelo Brasil, são realmente muito poucas onde há presença de pessoas.Enfim, muitas pessoas nas montanhas, para mim, não é problema, acho boa notícia. Que todos se divirtam, cada um a seu modo.

  3. Fica uma duvida…
    Os novatas e incompetentes, conforme descrito acima, não são clientes da loja oficial desse portal/site.
    Loja e site que incentiva abertamente o montanhismo.

    Inclusive durante a leitura da hipócrita matéria, os Spam e Pop-up ficam aparecendo oferendo artigos para montanhistas. Ambiguidade pura.

  4. Esse articulista não deve conhecer a história do montanhismo nacional, pois não aprendeu a lição que alguns Mateiros e um ferreiro de Teresópolis ( que não eram alpinistas) deram a alguns europeus na conquista do dedo de Deus.
    Triste ironia: a montanha símbolo do montanhismo nacional foi conquistada , não pelos métodos alpinistas europeus, mas por gente simples da área, que hj em dia seriam barrados pelo articulista

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