Como as montanhas são afetadas pelo aquecimento global

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Costumamos chamar de “aquecimento global“, mas as mudanças que ocorrem na “sucessão de estados de tempo” é na verdade uma mudança climática, pois nem sempre o clima aquece. Ele pode em alguns locais esfriar, secar ou ficar mais úmido.

Ao longo de meus quase 25 anos dedicados ao montanhismo, pude ver mudanças significativas nos ambientes montanhosos que transformaram montanhas e cadeias de montanhas inteiras. Glaciar recuaram e derreteram, rotas clássicas do montanhismo desapareceram, avalanches passaram a ocorrer onde antes não era tão comum, isso apenas para citar alguns fatos.

O montanhismo é um esporte de temporada, então costumamos frequentar algumas montanhas em épocas específicas. Na Bolívia, por exemplo, a temporada se dá nos meses de inverno, entre maio e setembro. Frequentando este país há mais de 20 anos, vi o glaciar do Huayna Potosi, local onde ministro meu curso de alta montanha, retrair dezenas de metros, o que afetou muito meu próprio curso. Antes, eu oferecia a aula de escalada em gelo em um local a 4900 metros, hoje, preciso subir até os 5100 metros para um gelo de mesma qualidade para realizar esta prática.

Em português temos apenas a palavra “gelo” para designar a água em estado sólido, porém há diversos tipos de gelo, além da neve. Veremos sobre isso com mais aprofundamento abaixo:

Como os glaciares são afetados?

Glaciares se formam em lugares onde o acúmulo de neve no inverno é maior do que o derretimento no verão. Ou seja, um glaciar é em tese uma “neve eterna”. O gelo glaciar é formado pela compactação da neve, que ao longo do tempo vai se tornando mais denso com a saída do ar em seu “corpo”. Para montanhistas, este tipo de gelo é o de melhor qualidade, pois ele tem estabilidade e ao mesmo tempo uma dureza que permite que as pontas dos crampons e piolets sejam fincados, permitindo que possamos progredir sobre eles.

VEJA MAIS: Água dura: uma revisão sobre geleiras em montanhas – AltaMontanha

Seja por excesso de calor no verão, ou mesmo falta de neve no inverno, milhões de glaciares na terra estão em processo de derretimento e ao longo de mais de duas décadas dedicadas ao montanhismo, pude acompanhar alguns casos.

Um deles é no Aconcágua. Na montanha mais alta dos Andes havia até o começo dos anos 2000 pontes de gelo no vale de Horcones, na entrada do parque, que eram turísticas. Hoje, inexiste gelo perpétuo abaixo dos 4200 metros de altitude.

Caminho ao Aconcagua com ponte de gelo em 2002. Foto de Pedro Hauck.

Caminho ao Aconcágua sem ponte de gelo em 2020. Pedras marcadas em vermelho ainda estão lá!

Restos de gelo na região baixa de montanhas não é das evidências mais fortes para demonstrar as mudanças ambientais decorrentes das mudanças climáticas. Porém há muitos casos de geleiras imensas que vem perdendo volume e um dos casos mais emblemáticos é o caso do Mer de Glace, um dos maiores glaciares dos Alpes na França.
Estive no Mer de Glace em setembro 2019 para acessar a Aguile du Jardin, Droite e a Aguile Verte, três montanhas de 4 mil metros que faltavam no projeto de Waldemar Niclevicz para finalizar a ascensão de todos os 4 mil alpinos. Na ocasião fiz a foto abaixo comparável a outra em preto e branco da década de 1900. O angulo é parecido e a comparação assustadora.

Mer de Glace em 2019. Foto de Pedro Hauck.

Glaciar Mer de Glace na França no começo dos anos 1900.

Neste caso nota-se que o gelo continua lá. Porém o volume é outro. Na primeira foto é possível notar a altura que chegava o gelo, que quando ele perdeu volume expos a rocha do substrato. A perda de volume de geleiras ocorre em diversos locais do mundo. Pude notar isso no Annapurna, Manaslu e também no Himlung, montanhas de grandes altitudes no Nepal.
Essa perda de volume de gelo ocorre de diversas maneiras e é sentida também com o aumento do tamanho das gretas, ou seja, das fendas naturais que existem no gelo devido ao substrato irregular do mesmo e também no aumento dos penitentes, que são formas pontiagudas de gelo formadas pela sublimação do gelo. Abaixo tenho duas fotos que comparam a mesma montanha, o Pequeno Alpamayo, em agosto de 2007 e em setembro de 2016 onde nota-se o aumento das gretas.

Pequeno Alpamayo na Bolívia. Foto de Pedro Hauck.

Paula Kapp em meio a gelo penitente na região do Bonete Chico – Fonte: Paula Kapp

Um dos grandes e mais perigosos problemas das mudanças climáticas é por conta da queda de blocos de rocha em decorrência de outro processo chamado atenuação do Permafrost. Este problema vem se tornado frequente, vitimou muitos montanhistas e tem fechado montanhas nas épocas que anteriormente eras as mais propícias para a prática de montanhismo, como ocorreu em julho de 2022 no Mont Blanc e no Matterhorn.

Como o Permafrost é afetado?

Permafrost é o congelamento de solo e de rochas. Em regiões polares ou qualquer tipo de terreno onde a temperatura é negativa na maior parte do ano (como montanhas altas ou de grande latitude), uma camada de gelo forma-se sob a superfície do solo. Esta camada permanece congelada durante o ano todo. Rochas e qualquer tipo de material solto, ficam presos à montanha devido ao permafrost. Durante os últimos 30 anos, por alguma razão, o permafrost de várias montanhas começou a derreter. Em consequência, todas as peças soltas presas a este, começaram a cair. Paredes e torres inteiras estão literalmente desmanchando. Veja alguns exemplos:

Rota Reloj de Arena no Cerro Rincón em 2004. Foto P Hauck

Rota Reloj de Arena no Cerro Rincón em 2020. Foto P Hauck

Em 2004 escalei a Rota Reloj de Arena no Cerro Rincón no Cordón del Plata na Argentina. É uma rota que percorria uma canaleta nevada entre dois blocos rochosos. Ainda naquela época era possível observar dejetos de rochas sobre o glaciar na parte inferior do mesmo, resultado do desprendimento rochoso em decorrência da atenuação do permafrost.
Em 2020 o glaciar já está quase completamente enegrecido devido as quedas de rocha da parte superior da montanha. O gelo da rota Reloj de Arena desapareceu! Ambas as fotos foram tiradas no mês de janeiro.
A atenuação do permafrost é tão severa em montanhas, que em 2022, um abrigo desabou nos Alpes por conta deste fenômeno.

Mas afinal, o que está acontecendo?

Fenômenos climáticos atípicos sempre aconteceram durante história humana, mas não com tanta frequência. Há pessoas que digam que a culpa é do homem, outros dizem que é culpa de ciclos naturais.

Ninguém ainda conseguiu provar qual das versões é a correta. No entanto, é provado que a terra já passou por mudanças climáticas graves quando já existiam humanos e essa não foi a primeira vez. Para explicar isso, compilei de maneira resumida algumas das principais teorias sobre as mudanças climáticas.

As alterações da cobertura das geleiras no globo

Apesar de ausente no Brasil, o gelo é um agente geológico e geomorfológico muito importante, pois 10% do total da superfície terrestre é recoberto por gelo, ou seja, por volta de 15 milhões de quilômetros quadrados são geleiras no mundo. Em um passado próximo (em termos geológicos), o gelo chegou a ocupar uma área três vezes maior que a de hoje durante a passagem do Pleistoceno para o Holoceno, uma época que chamamos de era glaciar. Veja como era a terra há 18 mil anos atrás:

O mundo na última glaciação. Fonte. Robert Scotese.

A última grande glaciação, a de Würm-Wisconsin, ocorreu no final do período Pleistoceno para o início do Quaternário, ou seja, entre 18.000 a 10.000 anos. Neste período, a temperatura da terra foi muito mais fria que a atual. De lá para cá, a temperatura oscilou até 5.000 anos, esteve mais ou menos estável até aproximadamente 1.000 anos atrás, quando ela caiu, havendo na idade média uma pequena idade do gelo. De lá para cá, a temperatura subiu e hoje vivemos um período de aquecimento global.

Existem centenas de teorias sobre as glaciações, mas nenhuma ainda é tida como o paradigma mais certo de sua existência. O que não há dúvidas é a existência de tais períodos. São quatro os argumentos que podem explicar a origem de tal fenômeno.

Argumento Geográfico: Estes invocam fenômenos atmosféricos e oceânicos para explicar a glaciação, advogando as mudanças dos continentes em relação aos oceanos, assim como mudanças das correntes aéreas ou marítimas, ocasionadas pelas variações na forma das bacias oceânicas ou nos levantamentos orogenéticos.

No momento mais quente da história do planeta, vivíamos em um único paleocontinente chamado Pangeia. Como as rochas absorvem e perdem calor para atmosfera mais rápido que oceanos, o interior da Pangeia era quente e desértico.

Entretanto, se forem analisadas as condições paleogeográficas do Pleistoceno, a era geológica em que ocorreu a última grande glaciação, observa-se que quase não existe uma mudança com configuração atual dos continentes. Há quem defenda que as glaciações tiveram origem nas poeiras de erupções vulcânicas, que teriam barrado a entrada de energia solar ocasionando um resfriamento global.

Argumento Geofísico: Estes procuram explicar as grandes glaciações na suposição da mudança na posição dos continentes. Segundo esta teoria, os continentes formavam até o fim do Paleozóico uma única massa, situando-se o pólo sul próximo ao extremo meridional deste continente. Isto explica a existência de rochas sedimentares originadas em ambientes glaciais no sul da América do Sul, África, Índia e Austrália. Entretanto estes materiais citados, como por exemplo, o Varvito e rochas Moutoneé de Itu (SP), são de idades muito antigas, assim esta teoria não explica a glaciação pleistocênica, por exemplo.

Argumentos Astronômicos: Estes referem-se às variações no movimento da Terra em relação ao Sol. Entretanto, se apenas este argumento estivesse correto, os períodos glaciais deveriam ser simétricos, pois o movimento da terra é uniforme e sincrônico e a geologia comprova que as glaciações não apresentaram uma periodicidade.

Argumentos cósmicos: Estes explicam que nosso sistema planetário atravessa regiões frias em sua caminhada celeste. Outros admitem a existência de nuvens cósmicas ocasionais que dispensariam os raios solares, determinando com isto a queda na temperatura.

Efeito estufa: Este fenômeno teria como origem a destruição da camada de ozônio pela emissão de gases poluentes Cloro Fluor e Carbono. Com o aumento do furo na camada de Oxônio, a radiação solar penetraria com mais facilidade na atmosfera, refletiria na superfície, voltaria para maiores altitudes e refletiria novamente na camada restante de ozônio, produzindo um efeito de estufa. Apesar da teoria ser popular, notou-se uma redução no tamanho do furo da camada de ozônio.

Efeito do gás carbônico: Além da contribuição no aumento do buraco na camada de ozônio, o gás carbônico na atmosfera pode ajudar na absorção de calor, contribuindo com o aumento da temperatura em alguns locais do planeta.  Como o gás carbônico resultado da queima de combustíveis fósseis, ou seja, este carbono estava dentro das rochas como carvão mineral e petróleo e após serem queimados são despejados na atmosfera. Há um aumento da presença de gás carbônico de forma não natural. As geleiras são um registro natural do aumento destes gases na atmosfera. Quando há precipitação de neve e acumulação dela nas montanhas, é também acumulado o material em suspensão presente na atmosfera. Observou-se no gelo perfurado na Antártida que o carbono aumentava drásticamente a partir do período da revolução industrial, portanto deixa claro a influência do homem na mudança atmosférica global, e isto é uma prova sólida a favor deste argumento.

Entretanto, em outros períodos de calor, como no Jurássico, também foi notado um aumento de carbono na atmosfera e há muitos debates se o carbono é causa ou efeito do aumento das temperaturas médias globais.

Superfícies de calor: Deriva do paradigma das Ilhas de Calor Urbano que é uma teoria que versa sobre o clima em regiões urbanizadas e seu efeito de aquecimento. Apesar de ser uma teoria que cobre uma escala local, ela se baseia em como a superfície pode aquecer devido a absorção de radiação. Apesar de menor, quando há a substituição de uma cobertura florestal original por pastagem ou culturas, existe uma alteração de diversos elementos que alteram o clima, como a absorção de radição, reflexão e evapotranspiração. Levando-se em consideração as enormes áreas que são desmatadas, (só na Mata Atlântica foram desmatados mais de 90% da cobertura vegetal original), pode haver reflexos no clima em escala macrorregional.

Com 8 bilhões de habitantes no planeta, cada vez mais há menos espaço para os ambientes naturais originais e assim, as mudanças macrorregionais podem se tornar globais.

Negacionismo e uso político do aquecimento global

A causa ambiental emergiu politicamente, ou melhor, foi abraçada politicamente por partidos de esquerda. Ao longo do tempo, “partidos verdes”, ou seja, partidos estritamente defensores das causas ambientais foram criados, mas a causa é ainda vista como uma pauta “esquerdista”, ainda que ela não tenha nenhuma relação com outras teorias políticas de esquerda, como o marxismo.

Entretanto é inegável que ativistas “antissistema” e “marxistas” usam argumentos ambientais para criticar grandes corporações, principalmente da área energética de petróleo e gás, colocando-as como “vilãs” das mudanças climáticas. Cientistas, principalmente da área das geociências, ganham dinheiro palestrando e defendendo estas empresas usando seus conhecimentos sobre a história da Terra e sustentando que as mudanças climáticas sempre aconteceram e que isso é inevitável, pois o planeta Terra estaria em um período interglacial, ou seja, um período entre duas glaciações, com temperaturas mais elevadas.

Estes conhecimentos dão sustentação à manutenção do uso de combustíveis fósseis, argumentando uma não necessidade de reduzir a poluição planetária e assim menos investimentos em pesquisas para fontes alternativas de energia.

A mudança climática não quer dizer que não há frio em épocas frias e nem que vai parar de nevar em locais que neva. A mudança no clima quer dizer que as habituais sucessões nos estados de tempo não são como eram de habitual.

A politização das discussões sobre as mudanças climáticas, afastando-as da academia gera uma polemização preocupante, uma vez que alimenta o negacionismo sobre este fato. Apesar de não existir uma certeza sobre os motivos das mudanças climáticas, é inegável que ela não exista, mas a polemização sobre os motivos refletem sobre uma negação do fenômeno em si.

Quando em 2022 fui entrevistado pela Folha de São Paulo e mostrei minhas fotos e dei meu depoimento sobre o que vi acontecer nas últimas décadas a respeito das mudanças climáticas globais, fui duramente atacado por milicias digitais que me chamaram de mentiroso e me acusaram de forjar fotos e relatos, o que é lamentável, pois não defendi nenhuma tese, apenas falei de minha experiencia que corrobora com muitos relatos já conhecidos sobre as mudanças climáticas.

Soluções para um mundo melhor

Ainda que não se saiba os motivos que está levando a uma mudança climática a nível global, soluções verdes são importantes para que possamos ter melhor qualidade de vida, preservemos nossos recursos naturais e possamos ter fontes de energia até mesmo mais baratas.

Não é porque não temos certeza de que o gás carbônico seja responsável pelas mudanças climáticas que devemos abandonar o desenvolvimento de tecnologias que tornem viável os carros, ônibus e caminhões elétricos. Imaginem como seriam nossas cidades sem nuvens de poluição, sem o barulho dos veículos?

Imagine se nossas casas, ao invés de ser consumidoras de energia, passassem a ser fornecedoras se houvesse uma política de incentivo do uso de painéis solares nos telhados e assim não fosse necessário ter tantas termoelétricas?

O que não falar se pudéssemos recompor parte das florestas para atenuar os efeitos das superfícies de calor. Imagine se as propriedades rurais pudessem reduzir o modelo da monocultura, para outro modelo híbrido que pudesse além de atenuar este efeito, permitir a circulação de animais da vida selvagem?

Uma coisa é certa: Algo precisa ser feito. Não estamos aqui falando do fim do mundo, mas sim no fim da humanidade. Nosso planeta já presenciou diversas mega extinções em sua história, poderemos ser o protagonista de uma próxima se levarmos a Terra a seu colapso ambiental.

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Sobre o autor

Pedro Hauck natural de Itatiba-SP, desde 2007 vive em Curitiba-PR onde se tornou um ilustre conhecido. É formado em Geografia pela Unesp Rio Claro, possui mestrado em Geografia Física pela UFPR. Atualmente é sócio da Loja AltaMontanha, uma das mais conhecidas lojas especializadas em montanhismo no Brasil. É sócio da Soul Outdoor, agência especializada em ascensão em montanhas, trekking e cursos na área de montanhismo. Ele também é guia de montanha profissional e instrutor de escalada pela AGUIPERJ, única associação de guias de escalada profissional do Brasil. Ao longo de mais de 25 anos dedicados ao montanhismo, já escalou mais 140 montanhas com mais de 4 mil metros, destas, mais da metade com 6 mil metros e um 8 mil do Himalaia. Siga ele no Instagram @pehauck

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