A ruína inca no cume do Nevado Quewar

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O pouco conhecido Nevado Quewar é um enorme vulcão com 6150 metros de altitude localizado na Puna do Atacama na província de Salta, norte da Argentina. No alto de seu cume há uma ruína incaica que se distingue das ruínas que são comuns nesta região. Ela é grandiosa e muito mais elaborada.

Janeiro de 2015. Após dois dias de aproximação eu e Maria Tereza acordamos antes do sol nascer para caminhar em direção ao cume do Nevado Quewar, uma montanha especial por sua beleza e proeminência, sendo vista de toda a região de San Antonio de los Cobres. Como é normal naquela época do ano, no final do dia anterior havia nevado muito e a superfície do deserto estava pintada de branco.
 Fomos iluminados por uma lua cheia que em muito facilitou nossa progressão, mas ao amanhecer ao invés de termos céu azul fomos castigados por nuvens negras e vento, que sugou nossa energia. Dando um passo atrás do outro fomos vencendo a vertente inclinada e logo chegamos a um vale protegido pelos dois cumes da montanha. Maria estava exausta e teve que parar para tomar gel carboidrato. Ela já não acreditava quando eu dizia que o cume estava próximo, mas ao olhar para o lado não teve como negar. Uma grande construção de pedras emergia da superfície branca:
 _ Veja Maria, são as ruínas do cume! Agora sim estamos perto.
 E de fato estávamos. Fomos até o topo e na volta paramos para observar a curiosa construção que fica no ante cume. Uma foto de minha mulher de pé sobre a ruína é um dos poucos registros que existem sobre esta construção na internet.

A impressionante ruína inca no cume do Quewar.

Já achei ruínas incas em dezenas de montanhas que escalei. Sobre minhas impressões dos motivos que levaram este povo ancestral a desafiar as grandes alturas tenho texto bastante completo que pode ser lida na íntegra aqui. Neste texto, no entanto, pretendo apenas abordar fatos e curiosidades desta impressionante ruína inca.
 Na região da Puna do Atacama existem diversas montanhas com ruínas incas no cume. Estas ruínas podem ser de três tipos:

Apacheta inca no cume do Vulcão Lomas Coloradas.

 Apachetas: Tótens de pedras que geralmente eram usados com sinalização de passagens. Na maior parte dos locais onde existiam apachetas são colos entre montanhas que formam passos entre um vale e outro. Um lugar famoso onde há uma linda Apacheta é o cume do vulcão Antofalla, de 6440 metros.

Plataforma inca no cume do Antofalla.

 Plataformas: São superfícies aplainadas com muros de arrimo feitos de pedra. Algumas plataformas tinham em seu interior corpos de pessoas sacrificadas. Uma plataforma famosa é a que existe no cume do Cerro Veladero, de 6430 metros de altitude.

Abrigos no sub cume do Llullallaico.

 

Pircae abrigos: Cercas de pedra ou abrigos eram usados pelos incas para pernoite. No vulcão Llullallaico há diversas delas e ao lado de duas quase no cume foi desenterrado 3 crianças incas no ano de 1999 por uma expedição da National Geographic.
 Todas estas construções são muito rústicas e por isso sobreviveram ao tempo, ao vento e as intempéries das montanhas. São todas construções simples, feitas com os materiais locais. No entanto, a ruína do Quewar não é nada parecida com os três tipos acima.
 A ruína do cume desta montanha é mais parecida com uma plataforma. No entanto, nesta ruína há duas plataformas unidas e numa delas há a existência de uma escadaria. Pelo tipo de construção dá a entender que esta ruína é um tipo de fundação de uma casa onde havia duas peças.

Planta da ruínca do Quewar desenhada por De Nigris – Fonte: CCAM

 De acordo com montanhista inglês John Biggar, o Quewar foi escalado pela primeira vez em 1904. É uma montanha que se avista de muitos lugares e não é uma montanha totalmente desconhecida, embora sejam poucas as pessoas que tentem escala-la. Soube da existência do Quewar pela primeira vez em 2004 lendo o livro “Chile Andinista: Su história” de Evelio Evarria onde há menção desta ruína afirmando incorretamente que a mesma, na década de 1910 foi dinamitada por caçadores de tesouros e na explosão foi danificada uma múmia que estava enterrada dentro da construção. Na verdade este triste ato de estupidez aconteceu bem mais tarde, na década de 1970.
 Não acho que os Incas teriam construído um abrigo e deixado uma múmia enterrada dentro dele. Estes sacrifícios faziam parte de rituais religiosos, o “Capacocha”. No entanto, ao visitar a ruína de El Shincal, próximo à cidade de Londres na província de Catamarca na Argentina pude observar outra ruína muito semelhante à do Quewar que os arqueólogos afirmam se tratar de um “Ushnu” que é uma construção que simboliza o poder incaico.
 Uma breve consulta no Google já se pode verificar que os incas construíam Ushnus em locais importantes, geralmente cidades capitais e importantes entrepostos de serviços e bélicos, que controlavam vastas regiões. O principal Ushnu do império Inca ficava justamente no centro de Cuzco em frente ao templo do Sol, de onde saiam todas as ruas da antiga cidade.
 O Ushnu de Cuzco tinha 5 anéis e no topo ficava uma cadeira onde o Imperador e sua mulher presidiam as cerimônias mais importantes do império. A cidade de El Shincal é tida como “Machu Pichu” da Argentina, por ter sido abandonada antes da chegada dos espanhóis e descoberta séculos mais tarde muito bem preservada. Seu Ushnu, como o de Cuzco, marca o centro da cidadela, no entanto é muito mais simples, sendo composto por apenas um anel. Sua forma, no momento em que avistei pela primeira já me remeteu à ruína do Quewar.

Ushnu de Vilcashuamán no Peru.

Reprodução artística do Ushnu de El Shincal na Argentina.

Foto da ruína de El Shincal onde destaca-se no centro o Ushnu em ruinas. Forma idêntica à do Nevado Quewar.

Em outro texto escrito pelo montanhista e arqueólogo Cristian Vitry, que é diretor do Museu Arqueológico de Alta Montanha de Salta e participou da escavação das crianças do Llullaillaco em 1999, são relatadas algumas experiências nesta montanha. Vitry desconsidera as ascensões realizadas pelos caçadores de tesouro. De acordo com ele, na segunda ascensão à montanha no ano de 1957 realizada pelo Dr. Roberto Gilardoni, que realizava um trabalho científico, encontrou duas estatuetas de barro cozido, uma totalmente vermelha e outra negra, ambas de mesmo tamanho e forma, que estavam dentro de uma pequena pirca no cume.
 Em 1974, Antonio Beorchia Nigris, montanhista, explorador e arqueólogo estudou a construção inca e ainda identificou uma segunda afastada da principal. De acordo com Vitry, ele encontrou um corpo mumificado que já havia sido profanado e que estava “preso” no gelo. No artigo ele cita que a múmia era de uma criança que tinha entre 12 e 15 anos de idade quando morreu. Foi encontrado e coletado lenha, restos de animais, objetos têxteis e sandálias usadas pelos incas para escalar.
 De Nigris retornou em 1981 com o arqueólogo Johan Reinhard e nesta expedição encontrou o corpo destruído por dinamite. Uma parede da construção estava estilhaçada e havia restos do corpo espalhados no local. Foram realizadas mais duas pesquisas arqueológicas na montanha, uma em 1996 e outra em 1999. O que faz do Quewar um dos mais importantes sítios arqueológicos de montanha dos Andes que ficou posto em segundo plano depois das escavações e achados no Llullaillaco.
 Por que o Quewar foi escolhido pelos os Incas como local de adoratório?
 Como afirmei anteriormente, é comum encontrar ruínas arqueológicas nas montanhas da Puna. Há também muitos sepultamentos no cume de montanhas, como foi verificado no cume do Llullaillaco, Chañi, Chuscha, Cerro Plomo e outros. No entanto, nenhuma ruína, com ou sem corpos é tão grandiosa como a do Quewar.
 A especulação do motivo para que apenas nesta montanha tenham construído um edifício mais elaborado é por conta da importância desta montanha em fornecer água na região. A Puna do Atacama é muito seca e o Quewar é uma das poucas montanhas com vales úmidos com água corrente. A própria rota normal da montanha se dá por um vale verde com água em abundancia, o que é anormal naquele deserto.
 Todos os vales úmidos desta montanha têm ruínas e objetos arqueológicos anteriores até que os Incas. Aquela região é habitada há 10.000 anos por povos coletores e caçadores e a água que jorra do Quewar é como um oásis no meio do deserto. Daí a importância da montanha.
 O Capacocha era um ritual em que os Incas pediam aos deuses fertilidade nas plantações e prosperidade. Parece bastante obvio que esta montanha fosse um local escolhido para fazer os sacrifícios. Fora isso, o Quewar fica no centro do Collasuyo, a maior província Inca que compreendia os territórios do Sul do Império que hoje compreende a Bolívia, Chile e Argentina.
 Do alto de seu cume é possível observar outras montanhas que também eram escaladas pelos Incas, como o Macón, Nevado Cachi, Llullallaico, Acay entre outras.
 Portanto é muito provável que a ruína seja de fato de um Ushnu não apenas pela forma semelhante à estas estruturas em sítios conhecidos, mas porque ali foi encontrado um vítima de um sacrifício e porque a natureza da montanha reúne todas as características naturais que a faz ser muito importante na região, além de sua imponência e destaque na paisagem. Muito provavelmente a ruína do Quewar era um adoratório incaico mais importante que a do famoso LLullaillaco.
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Sobre o autor

Pedro Hauck natural de Itatiba-SP, desde 2007 vive em Curitiba-PR onde se tornou um ilustre conhecido. É formado em Geografia pela Unesp Rio Claro, possui mestrado em Geografia Física pela UFPR. Atualmente é sócio da Loja AltaMontanha, uma das mais conhecidas lojas especializadas em montanhismo no Brasil. É sócio da Soul Outdoor, agência especializada em ascensão em montanhas, trekking e cursos na área de montanhismo. Ele também é guia de montanha profissional e instrutor de escalada pela AGUIPERJ, única associação de guias de escalada profissional do Brasil. Ao longo de mais de 25 anos dedicados ao montanhismo, já escalou mais 140 montanhas com mais de 4 mil metros, destas, mais da metade com 6 mil metros e um 8 mil do Himalaia. Siga ele no Instagram @pehauck

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