Bagaceira pouca é besteira

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Um caiaque sem leme, um sanduíche de atum e dois malucos no mar encrespado.

Janeiro já se dividia ao meio com sol de rachar e o João (Johny) Carlos de Andrade me aparece com uma daquelas idéias de girico impossíveis de recusar. Vamos para as Ilhas dos Currais saindo do Balneário de Santa Terezinha na Praia de Leste, só 14 quilômetros em linha reta. Vinte e tantos da Ilha do Mel, como se linha reta existisse no oceano.
 
Saímos atrasados e chegamos ao litoral mais tarde ainda. Estacionamos em frente à birosca e tratamos de descer as tralhas na calçada quando o Johny saca da mochila um sanduíche de atum quase do tamanho do próprio peixe. 
 
          – Tem certeza que vai comer tudo isto e entrar no mar? – Claro que vai.
 
Caiaque todo equipado sobre a areia. Comida, roupas, câmera fotográfica e outros em sacos impermeáveis dentro dos compartimentos de carga. Corda, coletes salva vidas e água bem amarrados no tombadilho com elásticos de neoprene. Saiotes presos nas barrigas e é só empurrar o bicho pra água. O Johny entrou e fechou o habitáculo entre uma pancada de onda e outra. No intervalo entre outras duas ondas também pulei pra dentro e remo pra que te quero! Levamos a primeira pancada na proa, suportamos a segunda e sobrevivemos a terceira, mas o equipamento teve menos sorte e apareceu bagulho espalhado a esquerda e a direita. Direita volver e retornamos para a areia capotando na arrebentação. Um corre pra cima e outro para baixo recolhendo tudo que encontramos boiando na espuma. Foi-se algumas garrafas d’água e o segundo sanduíche de atum. 
 
Enquanto esgotávamos a água do caiaque já começava a juntar curioso para assistir a comédia. Tudo arrumado e lá fomos nós, de novo enfrentar as ondas. Na quinta pancada se repetiu a tragédia e tive a certeza que o mar não estava de bom humor. Retornamos, capotamos e corremos pela praia atrás das coisas flutuando entre as ondas. Desta vez o mar engoliu a corda, os óculos, o boné, o protetor solar, mais garrafas d’água e o que restou das frutas. Sinceramente pensei em ficar por ali, alugar uma cadeira de praia e comprar um coco verde e não duvido que o Johny também tenha pensado o mesmo, mas quem primeiro jogaria a toalha?
 
A meia dúzia de curiosos já tinha virado multidão e os dois retardados novamente esgotaram toda a água, amarraram a equipagem e repetiram a dança nas ondas. Pancada de frente, pancada de lado e de cima, mas furamos a barreira de ondas e escapamos inteiros da arrebentação. Tudo conferido e no lugar era só remar em frente com as ilhas no horizonte. Mas como seguir em frente sem leme, com vento de través e corrente puxando para a entrada da baía de Paranaguá?
 
O leme havia se quebrado três meses antes no canal de Superagui, durante uma tempestade no desembarque em Bertioga e continuava inoperante sendo necessário guiar aquela geringonça de sete metros no remo e no braço. Assim nosso poder de arrasto se reduzia a um homem e meio contra uma ondulação lateral de sessenta a oitenta centímetros num infinito zig-zag. A cada duas ou três remadas se perdia a energia para corrigir o rumo e manter a parca estabilidade. O caiaque oscilava a esquerda e a direita, dançando no ritmo do mar e as horas passavam lentamente enquanto a terra firme quase desaparecia a ré sem que as ilhas aumentassem a frente.
 
Vinte e tantos quilômetros depois, dos 14 planejados, a ilha de Currais já se mostrava possível, mas cada vez com mais freqüência o Johny parava de remar e permanecia longos minutos com o meio do remo encostado na testa. A princípio pensei que estava tentando captar sinais de alta freqüência das baleias, golfinhos, sereias ou extraterrestres, mas isto me deixava sozinho na tarefa de manter a embarcação estabilizada e perdíamos todo o empuxo anteriormente conseguido a duras penas. Quando voltava a remar tínhamos que novamente superar a inércia com esforço dobrado.
 
O inevitável aconteceu pouco depois e todo o enorme sanduíche de atum pulou direto do estomago para os peixes num jorro de vômito incontrolável que faria inveja para a menina do “Exorcista”. Depois veio o jantar do dia anterior, o almoço, o café da manhã e as ânsias de vômito continuavam mesmo sem mais nenhuma mercadoria para por pra fora. O sujeito ficou verde, depois azul e por fim transparente e já podia ver as ilhas em frente através dele. Como bagaceira pouca é besteira ainda se levantou uma grande onda lateral, maior que as outras e no instinto afundei o remo na direção contrária, mas o Johny que já não tinha mais instinto nem estômago, inclinou-se para o lado oposto e os esforços se anularam deixando o caiaque entregue ao balanço do mar. 
 
Subimos até a crista e desabamos de ponta cabeça junto dela a pouco mais de um quilômetro de distância da ilha maior. Mesmo dentro d’água podia ver as ondas se arrebentando com estardalhaço nas pedras afiadas. A espuma explodia nos rochedos e o caiaque se reduziu a um tronco de madeira boiando na superfície da água. 
 
E agora José? Até que poderíamos esgotar toda a água do caiaque esvaziando uma garrafa pet de água potável. Jogar fora a água nem pensar, o Johny estava muito desidratado e poderíamos precisar muito dela nas próximas horas, mas beber numa só golada também não era aconselhável sem pensar que para esgotar os mais de 300 litros que inundavam o caiaque seriam necessárias 200 garrafadas ou mais.
 
Nem era meio dia e o sol a pino fritava os miolos dos dois náufragos a deriva em mar aberto. Decidimos tentar a sorte fazendo sinais para algum barco que porventura passasse perto, então firmei o caiaque e o Johny subiu a bordo levantando o remo na vertical. Uma hora depois e dois barcos passaram do outro lado da ilha sem nos verem apesar dos acenos, gritos e xingamentos.
 
           – Johny, chama os bombeiros! 
 
A única coisa seca que ainda tínhamos era seu telefone celular dentro de um saco estanque pendurado no pescoço, mas o sujeito teimoso não dava sinais de entregar os pontos. Empurrados pela maré já havíamos passado das ilhas em direção ao mar grosso.
 
          – Cara, não estou a fim de seguir o padre voador até Macaé e se bater nas quatro da tarde e ainda estivermos boiando por aqui vou a nado até a ilha deixando você e o caiaque para os peixes.
 
Com este ultimato o teimoso despertou, interrompeu a rotina de vômitos secos e ligou para o 191.
 
          – Não se desesperem – aconselhava a atendente – já estamos enviando socorro.
 
Uma hora depois e nada da cavalaria despontar no horizonte. Ligamos novamente para ouvir a mesma ladainha, repetimos as coordenadas e esperamos outro tanto. Terceira ligação e nem sinal dos heróis de vermelho, pior o telefone já estava umedecendo também.
 
Enfim salvos, depois de quase quebrar os braços de tanto acenar com os remos, eis que um iate altera o rumo e vem diretamente em nossa direção. Duas beldades tomavam banho de sol na proa e invertendo os motores estacionou ao nosso lado. Os marinheiros jogaram uma corda e recolheram o Johny já em estado de decomposição. Subi em seguida passando pelo bote inflável acomodado no deck inferior e cheguei na varanda de popa onde o Johny estava sentado com a cabeça enterrada entre os braços apoiados no tampo da mesa. Só se mexia de vez em quando para correr até a amurada chamando pelo “Hugo”. 
 
Os marinheiros ainda nos ministraram aquela costumeira aula de bom senso antes de passarem uma mensagem de rádio para os bombeiros que nos procuravam do lado oposto das ilhas e em poucos minutos estavam ao nosso lado com um barquinho inflável com casco de fibra e um motor de popa do tamanho dum armário. Só que não cabíamos todos dentro do barquinho e o iate aceitou nos levar até perto da praia. Arrancou e o caiaque mergulhou feito submarino. 
 
          – Para tudo que o toco é de estimação!
 
Pedi uma panela emprestada e mergulhei no mar para esgotar o caiaque, o bombeiro pegou outra e me auxiliou na ingrata tarefa até que a coisa flutuou orgulhoso novamente. Engatando uma primeira, partimos voando enquanto o caiaque surfava a reboque nas ondas. Tivemos tratamento de primeira classe quando apareceram os donos do iate, curiosos para ouvir nossa história, com comida e bebida a vontade que o Johny não conseguia nem olhar. Estacionou um ou dois quilômetros distante da praia e nos entregou aos bombeiros que nos levaram até perto da arrebentação alegando que poderiam avariar o motor se seguissem adiante. 
 
Estávamos por nossa conta agora e pulei na boleia do caiaque. O Johny se jogou na água e se fixou na popa para dar estabilidade na arrebentação e lá fomos nós capotando nas ondas até a areia. Recomeça toda a trabalheira de esgotar o caiaque e fazer o inventário do equipamento, mas não demora e reaparecem os bombeiros com um tratorzinho para nos conduzirem até carro estacionado em frente da birosca, uns bons cinco quilômetros distantes. Os caras foram finíssimos, muito prestativos e não nos aplicaram nem o costumeiro e merecido sabão aos imprevidentes. Verdadeiros heróis do mar, nem sabemos seus nomes, mas isto não nos impede de lhes sermos gratos pela preciosa ajuda. Agradecemos também aos donos do iate pela solidariedade e a seus lobos do mar pela presteza em cooperar.
 
Na birosca ganhamos uma porção de peixe frito, alguns amigos e mais ajuda para fixar o caiaque sobre o teto do carro. Também abatemos dois outros sanduíches gigantes para compensar aquele entregue aos peixes. Foi divertido e aprendi a lição, consertei o leme com ajuda do mestre Alex Pacheco, providenciarei novas e melhores guarnições para os compartimentos estanques e vou encomendar uma bomba d’água manual num site da China. 
 
E na próxima vez que o Johny aparecer com nova idéia de girico vou jogar o sanduíche de atum para os peixes antes dele dar a primeira mordida.
 
 
Obs. Por justificadas razões, úmidas e salgadas,  não sobreviveram fotos nem as máquinas fotográficas que ilustrariam este perrengue.
 
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Sobre o autor

Julio Cesar Fiori é Arquiteto e Urbanista formado pela PUC-PR em 1982 e pratica montanhismo desde 1980. Autor do livro "Caminhos Coloniais da Serra do Mar", é grande conhecedor das histórias e das montanhas do Paraná.

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