Caso Marco Aurélio: “O que sei, o que fiz e o que desconfio”, análise do relatório de Carlos Vieira Soares.

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Escrito por Daniel Iozzi Sperandelli e Erasmo Henrique Belmar Arrivabene.

O QUE SEI, O QUE FIZ E O QUE DESCONFIO SOBRE O DESAPARECIMENTO DO ESCOTEIRO MARCO AURÉLIO NO PICO DOS MARINS EM 8/6/85” assim o decano montanhista Carlos Vieira Soares inicia seu relatório. Cidadão ilustre de Piquete e guia veterano no maciço dos Marins, atuou por décadas na região. Conhecia todas as trilhas da montanha, e se notabilizou por guiar diversos grupos nas subidas ao Pico dos Marins. Nascido em 22/05/1915, também se destacou por escrever sobre o folclore, a história e os costumes de seu povo, além de ter sido músico e idealizador do museu municipal (Fonte: mauxhomepage).

Figura 1 – O jovem Carlos Vieira Soares, sem data, circa 193? (Fonte: Fundação Christiano Rosa).

A primeira vez que alcançou o Pico dos Marins foi ao meio dia de 24 de junho de 1944, após três tentativas. Sabemos deste feito pois consta em fotografias sob o acervo da Fundação Christiano Rosa, que detém uma exposição virtual riquíssima sobre as primeiras ascensões nesta montanha. Notem que na exposição, foto 2 de 47, há um sacerdote na montanha, o que corrobora a história contada por Afonso Ribeiro de Freitas, aquele que mil vezes subiu o Marins, sobre a implantação da cruz de ferro. A localização exata da cruz foi objeto de estudo dos autores que aqui vos escrevem constando em publicação do AltaMontanha. Muito certamente, Carlos, se não participou da colocação da Cruz, de alguma forma contribuiu para tal empreendimento, uma vez que foi figura presente naqueles páramos durante o século XX.

Retornemos aos três intentos malsucedidos de Soares e seus companheiros atingirem o cume antes do dia de São João Batista de 1944. A que se deveram? Seria por desconhecimento da trilha ou por sua inexistência? Tendemos a considerar a segunda alternativa, pelo simples fato de que se já houvesse trilha ou pessoa conhecedora do caminho o grupo teria conseguido fazer cume. Sabemos que doze anos antes ocorrera a Revolução Constitucionalista de 1932. É de se supor que os combatentes, paulistas e mineiros, tenham buscado ocupar as posições mais altas da Mantiqueira. Teriam alcançado o Marins? Desconhecemos. Por volta de 1937 finalizou-se o relatório da comissão mista de limites dos estados de São Paulo e Minas Gerais. Também desconhecemos se alguma equipe da comissão palmilhou o pico. Uma especulação possível é a de que outros tenham logrado o píncaro antes de 1944, mas se o fizeram foi de forma efêmera e pontual. Por sua vez, Vieira e os seus, tinham a intenção de abrir uma via permanente para que outros lhes seguissem os passos sem as incertezas do caminho, e assim fazendo presentearam os brasileiros com tão icônica paisagem. Agradecemos ao leitor se puder citar outras fontes confiáveis para elucidar o assunto na forma de comentários desta publicação.

Figura 2 – Da esquerda para direita João Vieira Soares, Carlos Vieira Soares e João Batista Rodrigues, 24/06/1944, primeira ascensão documentada do Marins (Fonte: Fundação Christiano Rosa).

Avancemos para o ano central da década de oitenta. O autor do relatório, por ser um memorialista e historiador, nos legou uma rica descrição dos acontecimentos e das buscas por Marco Aurélio Bezerra Bosaja Simon, pois soube referenciar bem o leitor na montanha, conhecedor que era do terreno. Tendo participado intensamente nas buscas ao escoteiro, desaparecido em 08/06/1985, Carlos Vieira Soares relatou o que fez na montanha naqueles dias de angústia, com o tempo passando e nenhuma resposta ao mistério no horizonte. Também fez questão de registrar, no mesmo documento, suas impressões pessoais. Escrito em 13 de outubro de 1985, quatro meses após o desaparecimento do escoteiro, possui uma erudição de quem dominava a pena e as tintas, o que condiz com sua experiência de escritor.

Ciente da importância do registro escrito dos acontecimentos, é dele um dos três primeiros depoimentos coletados no inquérito policial do desaparecimento, aos dezessete dias do mês de junho de mil novecentos e oitenta e cinco, mesma data em que depuseram Paulo Roberto da Silva e Sebastião Augusto Rodrigues Ramos (Gugu). A propósito, isto se deu antes das declarações dos escoteiros do grupo 240.

Pelos detalhes da narrativa de seu relatório e pela data do documento, Soares certamente consultou suas anotações para escrevê-lo. A menos que tivesse uma memória extraordinária. Muito embora, por sua natureza de memorialista, provavelmente mantivesse um diário, talvez um hebdomadário.

Três são os verbos com os quais o cronista, já no título, sintetiza sua monografia: “sei”, “fiz” e “desconfio”. Embora seja da natureza humana se apegar ao último, pela tendência a se divagar sobre aquilo que não se tem certeza, e também por haver o autor dedicado mais texto a esta vertente, são nos dois primeiros que podemos extrair valiosas informações que passam quase despercebidas. No quesito “sei” e “fiz”, Carlos nos fornece detalhes do clima, das trilhas percorridas, das ‘pistas’ e do contexto das buscas. Já com relação ao “desconfio”, Soares expressa a crença de que Marco Aurélio não havia simplesmente se perdido na trilha, por uma série de razões e observações específicas. Passemos então a uma análise mais detalhada do texto.

“O QUE SEI, O QUE FIZ”

Nosso personagem entra na história do caso Marco Aurélio às 21h00 do dia 09/06/1985, aproximadamente vinte e nove horas após o escoteiro ter sido avistado pela última vez. Recebeu o telefonema do chefe escoteiro de Piquete, Sebastião Augusto Rodrigues Ramos. Era uma noite fria e chuvosa, devido à entrada de uma poderosa frente fria que traria até nevasca à Mantiqueira. Mesmo querendo sair àquele horário, não lhe foi possível devido aos rigores do clima. Um fato fortuito é que o experiente guia tomou conhecimento do desaparecimento de Marco Aurélio antes do pai do escoteiro, que só viria a receber a impactante notícia às 22h45 daquela noite.

A dez de junho, logo cedo, partiu com alguns policiais para a montanha. Refez, com o chefe dos escoteiros Olivetanos, Juan, o confuso trajeto de dois dias antes. O primeiro foco do policial encarregado foi o local do acidente com um dos escoteiros. Ali Soares tomou conhecimento das marcas de giz que foram feitas pelo sênior para demarcar a descida. Porém, escreveu em seu relatório “Durante os 18 dias que estivemos na busca não encontramos, eu e o Ronaldo, uma só vez essa demarcação”. Aos leitores confessamos que tal constatação nos parece estranha, haja vista que o cronista inicia seu relatório com “Nove horas da noite chuvosa de Domingo (…)”. Por acaso esperava o autor que as marcações de giz fossem resistentes à água? Ou talvez, em sua visão, a chuva que precipitou sobre a cidade houvesse sido fraca demais para apagar as marcações. Todavia, uma é a chuva sobre a urbe, e outra a da montanha, que vem sempre acompanhada de fortes rajadas de vento. Os que aqui vos escrevem puderam presenciar, no próprio maciço da Cruz de Ferro, como a fina garoa da base se transmuta em fustigante tempestade. Nunca saberemos a real intenção de Soares, contudo, uma conclusão provável é a de que ele quis meramente registrar que não encontrou as marcações ainda que julgasse óbvio não encontrá-las.

No mesmo dez de junho, Carlos vem a saber do chefe Juan que o grupo passara pela Cruz de Ferro (coordenadas -22 29 49.7, -45 07 42.7). De início desconfiou da informação, mas logo que recebeu a descrição exata do monumento, dissipou sua desconfiança. Neste ponto obtemos uma informação preciosa: naquele dia 10/06/1985 Soares, os policiais e o chefe escoteiro não estiveram na Cruz de Ferro pois: (1) seria fato deveras relevante para ser omitido no relatório e (2) o narrador menciona que soube da cruz pela descrição verbal do chefe. Hoje sabemos, pelas reconstituições do desaparecimento realizadas em 1986 e 1987, que Osvaldo feriu-se próximo ao boulder do Dado , um bloco de forma aproximadamente cúbica, disso inferimos que o chefe dos Olivetanos os conduziu pela trilha principal ao local do ferimento, do contrário, teriam passado pela cruz de ferro, como haviam feito dois dias antes. De todo modo, Vieira tomou a decisão lógica de realizar a busca do local do último avistamento de Marco Aurélio para baixo. Fizeram um pente-fino, utilizaram apitos e gritaram-lhe o nome. Resultado infrutífero.

Figura 3 – Carlos Vieira Soares (B), 1986, reconstituição do desaparecimento. (Fonte: Inquérito Policial).

Vieira, mencionando a temperatura em dez de junho, afirma que “calculava eu entre 2 e 5 graus positivos”. Pouco adiante no texto, quando comenta de sua ida ao local da cruz de ferro, no raiar do dia 11/06/1985, em companhia de seu amigo guia Ronaldo Prado Nunes, declara “(…) já estávamos galgando a subida da Cruz de Ferro, quebrando o gelo com as mãos”. Isto nos revela o poder daquela massa de ar polar que derrubou os termômetros do centro sul brasileiro. O próprio autor relata haver admitido, em entrevista à rádio Mantiqueira no dia 10 “Se ele não sofreu algum acidente e souber se esconder em alguma toca, talvez o encontremos com vida amanhã” pois sabia que os parcos agasalhos do garoto não faziam frente aos rigores invernais.

Um lampejo de conclusão percorreu a mente de Carlos durante a noite do décimo dia de junho, ao repassar mentalmente os insucessos daquela data: “Não teria Marco Aurélio errado a trilha novamente e sem saber tomado a trilha da Cruz de Ferro, sofrendo também um acidente?”. Não haviam se passado sequer 72 horas do desaparecimento, ainda havia esperança! Que grandeza a de um homem em doar-se de si mesmo todo seu conhecimento, esforço físico, empenho, ainda que septuagenário, em prol de uma vida. É possível que o sono não lhe tenha cerrado as pálpebras naquela noite de ansiedade. Às 4 da manhã partem, o experimentado guia e seu amigo Ronaldo Prado Nunes, para que a alvorada os alcance no maciço da Cruz de Ferro. A certeza de que poderia encontrar algum vestígio do sumido suplantou as adversidades congelantes. Atingida a cruz “(…) encontramos sinais recentes de que, pelo menos 2 pessoas passaram por ali”. Os sinais a que se refere o autor, acreditamos que sejam a vegetação pisoteada aqui, um corte de facão acolá, pois ambos seguiram as pistas, partindo da cruz à “esquerda” para dar em um lajeado de pedras da trilha normal. A esquerda mencionada por Vieira, aqui interpretamos como sendo o rumo norte-noroeste (a linha verde da Figura 4), mas trata-se apenas de um palpite de dois medianos conhecedores do terreno. No caso mais provável de que os sinais pertencessem à patrulha do gato e estando nossa interpretação deles correta, teríamos então uma variante do trajeto que publicamos em dezembro próximo passado. A verdade é que isso não altera o macro trajeto daquela data, pois os pontos de checagem (em amarelo) foram palmilhados, mas vem justamente reforçar a hipótese de desorientação dos escoteiros que culminaria em Marco adentrando o vale do Palmital.

Figura 4 – Rumo tomado por Vieira e Ronaldo em 11/06/1985, inferência nossa (verde). Trajeto documentado (azul) e inferido (vermelho), ambos de Marco Aurélio em 08/06/1985. (Fonte: tracklogs e digitalizações dos autores sobre Google Earth)

Quão perto esteve Carlos da hipótese de desorientação naquele onze de junho. Quisera o Altíssimo que o calejado guia houvesse percorrido aqueles campos de altitude dois dias antes, ainda que durante a tarde, antes da chuva, ter-se-ia deparado com as marcações de giz, e inexistiriam o presente artigo bem como trinta e nove anos de agonia. Soares focou no local do acidente que feriu um dos escoteiros ao invés do último avistamento do escoteiro. Fácil teorizar agora, difícil no fervilhar das buscas. Mas o local que supomos ser a entrada de Marco ao Cânion (vale do Palmital) se inicia por um quase lajeado onde a vegetação é escassa, por essa razão não se formam ‘sinais’ de capim amassado nos primeiros metros, contribuindo para a não percepção dos batedores.

Dezoito dias de busca ininterrupta foram a contribuição árdua de Soares. Incrível feito do alto de seus setenta anos. O autor finaliza o “sei” e “fiz” desculpando-se a si próprio, mas na verdade é com o leitor que busca desculpar-se, por não haver prosseguido a procura. Àquele tempo mais do que agora, jamais poderia existir reprovação a um espírito tão abnegado que somente cessou mediante um tornozelo torcido.

“O QUE DESCONFIO”

Com relação ao verbo “desconfio”, embora respeitemos os palpites do explorador, deles muito divergimos. Um homem é em parte fruto de seu tempo. A herança do regime de exceção recaiu sobre os escoteiros que retornaram da montanha de modo que foram considerados suspeitos e pressionados pelas autoridades. É neste ponto que as opiniões do guia são moldadas pelo pensamento corrente à época, refletindo as desconfianças das autoridades.

Dúvidas sobre o chefe dos escoteiros: Soares questiona a competência e a honestidade do chefe Juan (guia da excursão), com base, principalmente, em inconsistências percebidas na descrição da trilha e no tempo gasto para percorrê-la. Sua desconfiança em relação ao líder pode ter levado a uma interpretação mais crítica das informações fornecidas por ele, reforçando sua crença de que algo estava errado. Neste quesito percebe-se que o experiente guia se deixa levar pela linha de investigação da Polícia à época dos fatos. Porém, na reconstituição de 1986/87 comprovou-se que o grupo escoteiro tomou a direção errada logo na partida da casa de seu Afonso Egídio Inácio Xavier e viria a se confundir com as estradas que à época levavam veículos ao Morro do Careca.

Inconsistências na trilha: O autor notou que o líder da tropa relatou uma Cruz de Ferro que não fazia parte da trilha habitual. A trilha da Cruz de Ferro, como o próprio autor explica no seu relatório, foi desativada em 1952, tendo ele próprio traçado o caminho atual (que desvia o maciço da Cruz de Ferro pelo norte). Isso causou uma confusão adicional, pois a trilha descrita por Juan não correspondia ao caminho que o autor conhecia bem. O fato do chefe ter tido dificuldades com uma trilha bem conhecida levantou suspeitas sobre a precisão das informações fornecidas.

Tempo excessivo para a trilha: Na visão de Vieira o tempo gasto pelo grupo escoteiro para percorrer a trilha foi considerado excessivo. Enquanto o trajeto da trilha não deveria levar mais de uma hora e meia, o grupo gastou oito horas na ida e quinze horas na volta. Essa discrepância sugere que algo estava errado na navegação ou no que os integrantes da excursão declararam. Atualmente sabemos que o líder da tropa havia estado no Marins apenas duas vezes antes, o que não é suficiente para credenciá-lo como experiente na montanha, ainda mais naquela época, escassa de sinalização e marcas de intensa passagem.

Permissão para buscar ajuda: O chefe Juan permitiu que Marco Aurélio fosse buscar ajuda sozinho, o que parecia imprudente. Em situações de emergência, a divisão do grupo e o envio de um membro para buscar ajuda pode ser perigoso e, muitas vezes, contra as melhores práticas de segurança. Soares considera imprudente a decisão de permitir que Marco Aurélio buscasse ajuda sozinho. Isso pode ser uma forma de confirmar sua crença de que houve negligência ou algo mais sinistro, ao invés de considerar que decisões difíceis em situações de emergência podem ser complexas e variadas.

Desconfiança em relação ao escoteiro machucado: Segundo o relato, o líder não demonstrou um acompanhamento adequado do estado de Osvaldo, escoteiro ferido na trilha, e as evidências de que o acidentado não estava visivelmente presente quando o autor inquiriu Seu Afonso Xavier, que afirmou não ter visto ninguém acidentado, aumentaram a suspeita sobre a veracidade do relato de Juan.

Observações pessoais: Soares observa o comportamento do pai de Marco Aurélio, interpretando-o como frio e desapegado. Essas observações pessoais podem ter sido usadas para reforçar sua hipótese de que o caso envolvia algum tipo de engano ou conspiração. O comportamento do pai de Marco Aurélio, senhor Ivo, foi notado como frio e desapegado, o que o autor considerou suspeito. A falta de emoção ou preocupação visível foi interpretada como um possível sinal de que o pai estaria escondendo algo. Ora, sabemos que o genitor de Marco Aurélio demonstrou, nestes 39 anos, ser incansável na busca por respostas. Graças ao empenho deste notável homem o caso permanece lembrado. Outra desconfiança, não cabível a nosso ver, é a de que “nunca derramou uma lágrima sequer”. Quantos são os homens que na hora do desespero acionam o modo de alerta, subjugando as emoções, num instinto básico de salvaguardar a prole? Mais do que supomos. E quem garante que à noite, no silêncio dos aposentos, distante de todos, não tenha caído em prantos?

Dúvidas sobre relatos de testemunhas: Vieira questionou relatos de testemunhas e a falta de evidências claras encontradas durante a busca, o que reforçou a ideia de que havia algo mais complexo em jogo além de um simples acidente ou desorientação na trilha. Mas quais são os vestígios de alguém que percorre uma montanha? Como localizar um fio de cabelo naquela imensidão? As marcações de giz que poderiam elucidar o caso se dissiparam com a chuva noturna do dia nove.

Hipóteses de conspiração (plano arquitetado): O autor do relatório sugere que Marco Aurélio poderia estar em algum lugar distante, com a ajuda do chefe e dos outros escoteiros, como parte de um plano arquitetado. Essa hipótese se baseia em vários detalhes que pareceram estranhos ou não bem explicados, como o comportamento aparentemente frio do pai de Marco Aurélio e o desaparecimento dos japoneses que estavam à procura de ajuda. Novamente abrimos discordância pois um suposto ‘plano’ desses haveria de cair por terra frente às pressões psicológicas e físicas impostas aos jovens escoteiros paulistanos e seu líder.

Sujeição a hipóteses especulativas: O guia sugere que Marco Aurélio pode ter sido parte de um plano elaborado e conspiratório. Essa hipótese parece derivar de uma desconfiança geral em relação aos envolvidos e não de evidências concretas. A especulação sobre um plano arquitetado pode ser uma forma de confirmar suas suspeitas, mesmo na ausência de provas substanciais.

Em suma, Soares manifestou forte suspeita de que Marco Aurélio não tinha, de fato, se perdido, simplesmente devido a inconsistências na história contada por Juan, decisões imprudentes e comportamentos suspeitos de várias pessoas envolvidas. Essas observações levaram o autor a considerar a possibilidade de que o sumiço de Marco Aurélio poderia ter sido parte de um plano mais elaborado.

Inconsistências na busca: Vieira destaca as falhas e inconsistências nas operações de busca, como a falta de evidências encontradas e o tempo gasto pelo grupo na trilha. Sua análise dessas falhas pode ter sido direcionada para confirmar sua crença de que houve um erro grave ou uma conspiração, em vez de considerar a complexidade e a dificuldade da busca em terrenos desafiadores.

Foco em detalhes específicos e conclusão precoce: o narrador dá ênfase a certos detalhes que reforçam suas suspeitas, como a ausência de sinais claros de Marco Aurélio em locais críticos e o comportamento de indivíduos envolvidos. Isso pode ter levado a uma interpretação que confirma suas crenças pré-existentes sobre o caso, ignorando possíveis explicações alternativas.

A conclusão de que Marco Aurélio poderia estar vivo e longe do local, com a conivência dos demais, pode ser uma forma de viés de confirmação, se Soares estava procurando ativamente por qualquer informação que corroborasse sua hipótese de conspiração ou erro.

Embora o relatório de Vieira Soares forneça uma análise detalhada e perspicaz da situação no “sei” e “fiz”, é possível que o viés de confirmação tenha influenciado suas conclusões no “desconfio”. O viés de confirmação ocorre quando uma pessoa busca, interpreta e recolhe informações de maneira que confirma suas crenças ou hipóteses pré-existentes, enquanto ignora ou minimiza informações que as contradizem.

A confiança em suas próprias observações e a busca ativa por informações que corroborassem suas suspeitas podem ter levado a uma interpretação das evidências que reforça suas crenças, em vez de considerar todas as possibilidades de forma equilibrada. O viés de confirmação é uma tendência natural, especialmente em casos complexos e emocionalmente carregados, como o desaparecimento de uma pessoa em condições adversas. Para o guia, altamente experiente no Pico dos Marins, era impossível Marco Aurélio ter se perdido na montanha, em algum local completamente fora da trilha como o Cânion dos Marins. Essa ideia era praticamente inconcebível para o decano guia. Ele próprio abrira a trilha segura ao pico, pela qual todos seguiram durante quarenta e um anos, sem jamais ocorrer um desaparecimento sequer. Na verdade, começavam a soprar os ventos da mudança, o Marins já não era mais aquela montanha acessível apenas aos moradores do entorno, distando poucas horas de ônibus da capital bandeirante. Chegavam visitantes externos àquele contexto social pacato, desconhecedores do legado de Vieira e de suas orientações.

Eis que finalmente apresentamos a transcrição por nós elaborada do relatório de Soares, mantida a grafia original:

O QUE SEI, O QUE FIZ E O QUE DESCONFIO SOBRE O DESAPARECIMENTO DO ESCOTEIRO MARCO AURÉLIO NO PICO DOS MARINS EM 8/6/85

C.V.Soares

Nove horas da noite chuvosa de Domingo, 9 de Junho de 1985, quando o Sr. Sebastião Augusto Ramos (Gugu), presidente do Grupo Escoteiro de Piquete, me chama ao telefone. Perguntou-me se eu podia ajudar na busca de um escoteiro de São Paulo que se perdera no Pico dos Marins.

A razão do pedido se baseou no fato de ser eu a pessoa (de Piquete) que mais vezes escalou aquele pico, portanto bastante conhecedor daquelas grimpas, modéstia à parte.

Prontifiquei-me de imediato e perguntei-lhe se era para sair aquela hora, pois num caso desses, quanto mais cedo iniciássemos a busca mais probabilidade de êxito teríamos. Ele, porém, alegou não ser possível sairmos no momento, pois teria de providenciar a instalação de rádio-comunicação nos carros, o que só seria feito na manhã seguinte, marcando nossa saída para as 9 horas.

Na manhã seguinte preparei-me com o material necessário, cordas, facão, lanternas, estojo de medicamentos, etc, e dirigí-me à Delegacia de Polícia, de onde deveríamos partir.

Assim que cheguei estacionou junto a nós uma viatura policial de Cruzeiro trazendo o aspirante a oficial Waldir, o Sargento Paulo e cinco praças, requisitados que foram para o caso.

Apresentei-me a eles e o aspirante achou que não podíamos perder mais tempo e que deveríamos partir incontinente.

Telefonei ao Gugu e partimos. Ao chegarmos à base encontramos o guia escoteiro Juan. O oficial ordenou-lhe que nos guiasse até o local do acidente com um dos escoteiros, acontecido no sábado anterior, às 14 horas, segundo o próprio guia Juan, que em seguida nos contou como aconteceu o acidente. “Um dos escoteiros tentou pular de uma pedra para outra e escorregou caindo com o joelho na pedra áspera como um ralo. Sangrando bastante não podia caminhar. Marco Aurélio pediu permissão para descer até a base e trazer ajuda. Ruan permitiu e aconselhou-o a demarcar o trajeto com uma seta feita à giz, com o número 240 (número do grupo), na ponta da mesma”.

Durante os 18 dias que estivemos na busca não encontramos, eu e o Ronaldo, uma só vez essa demarcação.

Como era óbvio, toda a busca teria que ser feita daquele ponto para baixo e portanto começamos a descer, fazendo um pente fino, trilando apitos e gritando o nome do desaparecido.

Juam, sempre ao meu lado, falou alguma coisa sobre uma Cruz, por onde eles teriam passado, na volta. Estranhei e lhe disse que eles nunca poderiam ter passado por lá, pois a primitiva trilha da Cruz de ferro, por ter uma passagem bastante perigosa foi abandonada por mim em 1952, quando tracei a trilha atual. Ele, entretanto, insistiu na afirmação. Perguntei-lhe de que jeito era a cruz e ele descreveu-a perfeitamente.

No momento não dei muita importância ao fato e passamos o resto do dia em busca infrutífera.

Ao regressarmos ao cair da tarde, encontramos na base uma equipe da Rádio Mantiqueira de Cruzeiro que queria ouvir-me a respeito do ocorrido e da possibilidade de encontrarmos ainda com vida o escoteiro Marco Aurélio.

Ainda não sabia eu da formação física do desaparecido, do que ele dispunha com agazalhos e nem do que ele sabia de sobrevivência num caso desse, e portanto não pude afirmar nada e apenas respondi: Se ele não sofreu algum acidente e souber se esconder em alguma toca, talvez o encontremos com vida amanhã. Caso contrário, com essa temperatura baixa (calculava eu de 5 a 2 graus positivos), ele não resistirá.

À noite, em minha casa, comecei a reconstituir nosso trabalho do dia e cheguei a umas conclusões:

O grupo escoteiro dirigido por Juan havia perdido o caminho na ida e na volta, pois na ida gastou oito horas (das seis da manhã às 14 horas) numa caminhada que pela trilha comum, batida e assinalada não se leva mais de hora e meia. Na volta foi pior, pois gastaram 15 horas (das 14 horas de sábado às 5 horas da manhã de domingo), o que, mesmo carregando o acidentado não poderiam gastar mais de 4 horas.

Aí, então lembrei-me da Cruz de Ferro. Não teria Marco Aurélio errado a trilha novamente e sem saber tomado a trilha da Cruz de Ferro, sofrendo também um acidente?

Liguei para meu amigo e companheiro de escaladas Ronaldo Prado Nunes e contei-lhe o acontecido, pedindo que me fizesse companhia no outro dia. Saímos às 4 horas da manhã em sua Kombi e quando clareou o dia, esperançados pela probabilidade de encontrarmos o indigitado escoteiro, já estávamos galgando a subida da Cruz de Ferro, quebrando o gelo com as mãos. Insucesso. Na parte da subida, nenhum pequeno sinal que tivesse alguém por ali, há meses. Ao chegarmos, porém, junto a pedra onde está a Cruz de Ferro encontramos sinais recentes de que, pelo menos 2 pessoas passaram por ali. Seguimos a pista que nos conduziu à esquerda, em descida acentuada, por uns duzentos metros onde a perdemos, em vista a nudez das pedras, justamente onde ela devia cruzar com a trilha normal. Passamos o resto do dia em busca, ajudados depois das 11 horas pela turma do Dr. Mauro, composta de 12 pessoas, todas de Piquete.

Encontramos várias tocas e buracos profundos onde descíamos pelas cordas e onde era necessário acender nossas lanternas.

À tarde voltamos magoados pelo insucesso mas com o firme propósito de voltarmos no outro dia.

Depois do terceiro dia já não tínhamos mais esperanças de encontrar Marco Aurélio com vida. Continuamos, porém a procura, agora já com maior atenção aos urubus em suas evoluções.

Por essas alturas já havia muita gente ajudando na busca. COE com seus cães amestrados; o Corpo de Bombeiros de Cruzeiro e de Guaratinguetá; uma companhia do 5B.I, de Lorena; escoteiros de todo o Vale do Paraíba. Helicópteros; equipe civil da IMBEL e paisanos como nós, das cidades de Piquete, Delfim Moreira, Marmelópolis e das fazendas visinhas.

A pedido do Prefeito de Piquete fui de ambulância ao bairro dos Pilões, onde teriam visto um escoteiro, à escoteira, quer dizer sosinho, perambulando pelas estradas. Nada, puro boato. Também uma vidente de Conceição do Rio Verde telefonou ao Prefeito que Marco Aurélio se encontrava numa carvoaria desativada, cercada de plantação de eucaliptos. Foi ainda com sua ordem que parti para lá. Percorri 4 carvoarias e nada. Depois de 18 dias sem descanso, meus setenta anos completados em maio e um tornozelo torcido me fizeram desistir.

Desculpei-me a mim mesmo com a certeza de que lá em cima havia muita gente competente na busca. Calculava-se uma média de 150 homens dia, fóra aos sábados e domingos que esse número era aumentado para 180.

Agora, nestes dias de outubro, convalescendo-me de uma pneumonia tenho tido tempo para matutar sobre o assunto.

Se toda a busca, como era natural, foi feita do local do suposto acidente para baixo, foi deixado de procurar daquele ponto para cima. Pois bem, mas se Marco Aurélio, que desceu na frente dos companheiros tivesse perdido a trilha (lembre-se que naquele sábado havia garoa e muita neblina), e voltado para reencontrar os companheiros?. Estes também haviam errado a trilha, pois passaram pela Cruz de Ferro e portanto, Marco Aurélio não os reencontrando, passou pelo local do acidente, subindo desorientado em direção ao pico. É um caso que assim que estiver melhor, vou verificar. Prometo.

Agora, neste mês de outubro, andam falando que a polícia vai trazer o Juam e os três escoteiros para percorrerem a trilha, quer dizer, o itinerário por eles percorrido naquele dia. Francamente, duvido que os rapazes possam ajudar alguma coisa. Primeiro porque já são decorridos 4 meses e já se apagaram quaisquer sinais. Segundo, por que as pessoas que são guiadas geralmente não prestam atenção no caminho e terceiro, que a maior parte do caminho de volta foi percorrido à noite, portanto, completamente às cegas.

Quero deixar aqui, neste dia 13 de outubro de 1985, minha opinião pessoal sobre esse caso que abalou quase todo o Brasil.

Creio que Marco Aurélio está vivo e bem longe daqui. Com a conivência de Juan e de seus 3 companheiros ele fugiu depois de um plano bem arquitetado.

Existem muitos detalhes que não foram bem explicados e vou citá-los:

a) Juam é um guia muito experimentado e muito vivo e já conhecia o Marins, pois já o havia escalado. Como se explica ter levado tanto tempo para chegar ao meio da pedra, com uma trilha batida e bem batida, pois dias antes, 25/26 de maio eu a havia percorrido com Cel. Max e seu filho, Major Itamar, sua esposa e um casal de filhos e mais 18 pessoas do grupo escoteiro de Piquete.

b) Além de não obedecer o rígido regulamento do Escotismo de que nunca se deve dividir o grupo mandou, ou permitiu que Marco Aurélio saísse em busca de um auxílio que ele sabia que não seria encontrado num raio de muitos quilômetros.

c) O grupo era de 5 pessoas. Ora, com qualquer condição de terreno 4 pessoas, ainda mais, 4 escoteiros têm facilidade de transportar um ferido.

d) Quando desci na segunda feira, perguntei ao seu Afonso em cujo terreno acamparam Juan e os outros quatros, se o acidentado estava melhor. Seu Afonso respondeu-me que não viu ninguém acidentado e nem mesmo mancando.

e) Ainda o caso de um casal de japoneses que passaram por Marmelópolis em um carro de luxo e perguntaram como podiam chegar à base da Montanha. Nunca mais foram vistos.

f) E há ainda o caso do Sr. Ivo, pai de Marco Aurélio. Conversei com ele várias vezes e juro: nunca vi alguém tão frio, tão desprendido de emoções. Nnca vi um tremor de lábios, uma lágrima, nada. Ficou uma semana inteira, em casa do Gugu, dando entrevistas, lendo jornais e só foi ao local do desaparecimento do filho a convite do Pe. José Somelli, para-psicólogo, quando este me pediu para levá-lo até lá, no domingo dia 15 de junho.

Por essas e outras é que não estranharei se qualquer dia Marco Aurélio aparecer por aqui, fagueiro e bonito, rindo da gente.

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Sobre o autor

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Sempre me interessei por montanhas, tive a felicidade de me criar em Atibaia sob a vista da Pedra Grande. Engenheiro Hídrico de formação, durante a Universidade conheci a Serra da Mantiqueira e me encantei pelo Pico dos Marins. A partir de 2021 comecei a estudar o caso Marco Aurélio e propor a hipótese de desorientação.

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