Diário da Expedição do Cho Oyo – A cada passo um record pessoal

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Saí do campo base com uma mochila de 16 quilos e um mixto de otimismo e apreensão. Estava possivelmente indo até 7500 metros, de longe o mais alto ponto de minha vida e para passar uma noite a 7100 metros, algo que com meu histórico de aclimatação vagarosa inspirava bastante medo.


19-09-09

O dia estava lindo, o quinto dia em seguida de céu azul e sem vento. Sei que essas janelas de bom tempo tem duração limitada e que, mais do que agora que ainda estamos razoavelmente em altitude razoavelmente moderada, esse bom tempo nos fará falta mais acima na montanha.

O trajeto até o campo 1, agora já bem conhecido, foi tranquilo e tivemos a tarde toda para descansar e preparar-nos para o segundo dia mais difícil da expedição, o do campo 1 ao campo 2. Com um desnível de 700 emtros e rompendo a barreira dos 7.000 metros esse dia só perde para o dia de cume em dificuldade.

Saimos do campo 1 as 7 da manhã levando uma mochila pesada com sleeping bag de altitude, as pesadas roupas de frio extremo, rádio e comida para uma ou duas noites no campo 2. Parte do caminho já tinha feito no primeiro ciclo até embaixo do ice cliff e desta vez foi mais fácil com a aclimatação adquirida. Daí veio a parte mais técica de toda a escalada, uma parede de ao redor de 50 metros de neve e gelo. Se isso fosse ao nível do mar não teria maiores problemas, mas qualquer trecho técnico a esta altitude fica extremamente mais complicado. Prendi meu jumar, o mosquetao de segurança e avancei confiante, afinal eram apenas 50 metros. Mas, após apenas alguns passos já estava ofegante ao extremo e ganhar esses poucos metros me tomou 35 minutos e cheguei ao platô acima exausto e tive que ficar outros 20 minutos sentado tentando recuperar as forças. Nesse meio tempo chegou o Marco em condições semelhantes e após ele se recuperar seguimos juntos.

Mas, o sofrimento não havia acabado. Na nossa frente tinhamos uma encosta de 35 graus de 100 metros de altura que nos tomou outra uma hora para escalar. Um passo, duas respirações, mais um passo. Quando o terreno se tornava mais irregular, ou quando ao colocar um pé ele escorregava novamente ficava ofegante e tinha que respirar várias vezes antes de poder prosseguir. Ao final desta longa encosta se seguiram várias outras de inclinação mais moderada e aos poucos a marca mágica dos 7.000 metros ia chegando. Quando finalmente a atingimos, 6 horas de duríssima escalada paramos para comemorar. Era o meu ponto mais alto e o record de Malta. Seguimos os últimos 130 metros até o acampamento com extremo cansaço, mas a Andrea que já havia chegado lá uma hora e meia antes nos estava esperando com chá quente e bolachas com queijo.

Para minha surpresa, passei o restante do dia sem dor de cabeça e me sentindo razoavelmente bem. Durante o tarde e o comeco da noite nos dedicamos a atividade predominante de uma expedição: derreter neve e rehidratar. Não consegui comer quase nada, o que é normal nesta altitude. Uma grande lasidão tomou conta de mim e qualquer movimento necessitava de um grande planejamento. Pensanva que precisava colocar mais um casaco, mas entre perceber que precisava e conseguir energia para fazê-lo um grande tempo passava.

Acordamos as 5:30 para preparar-nos para a caminhada do dia, chegar ao campo 3 a 7500 metros. Toca o despertador, abro os olhos e torno a fecha-los. Me aconchego no fundo do sleeping bag. Qualquer movimento desencadeia uma chuva gelada de pequenos flocos de neve sobre tudo. Passam os minutos e eu digo a mim mesmo e a Andrea que precisamos começar a nos preparar, derreter neve, beber, tentar comer. Após 20 minutos finalmente tenho energia para me levantar e me agasalhar. Fora do conforto do saco de dormir está gelado.

Abro o ziper da barraca e mais uma chuva de neve cai molhando tudo. Com socos doloridos no saco de neve consigo quebrar alguns blocos de gelo para colocar na panela. O fogareiro produz um calor fraco que tarda vários minutos para derreter alguns poucos blocos de gelo. Os minutos desaparecem e quando olho no relógio já são 6:30. Uma hora se foi sem que eu percebesse. Consigo tomar um litro de chá fraco e dois pacotinhos de sopa instantânea com não mais do que 150 calorias cada. Tento comer mais, mas não desce. Esse será o meu combustível para a subida.

As 7:30 finalmente estou pronto depois de colocar a cadeirinha, as botas duplas congeladas apesar de terem dormido dentro da barraca, os crampons e camadas de roupas. Caminho lentamente tentando não ficar ofegante. Tenho apenas 40 ou 45% do oxigênio do nível do mar. Em poucos metros as horas de descanso dessaparecem e novamente estou exausto. Finalmente sinto no meu corpo aquilo que tantas vezes li. Acima de 6.000 metros não existe descanso, não existe recuperação, apenas desgaste. O esforço do dia anterior volta. Subo 150 metros e vejo que não tenho mais forças para prosseguir. Viro e desço para minha barraca sentindo o gosto amargo da derrota. A opção da subida sem oxigênio está descartada. Este era a prova. Se hoje eu fosse bem tentaria sem oxigênio.

Com esforço tiro os crampons e me largo na barraca que aos poucos vai se aquecendo ao sol da manhã. Durmo pesadamente sem sonhos e acordo com a voz do Lui me perguntando se estava bem. Ele tinha desistido da subida também. Um pouco mais tarde chega o Felber e depois o Lucas que tinha semi congelado seus pés. Ele é o único entre nós que não tem botas para 8.000 mais quentes. Durmo novamente. Acordo com a Andrea chegando no campo. Ela foi a única que chegou no objetivo do dia, 7500 metros, novo record para a Guatemala. Mas, está exausta também. Arrumo nossas coisas, derreto mais gelo e ao meio dia e meia estamos a caminho do campo base, 1400 metros abaixo e um longo caminho para minhas pernas cansadas. Desço meio em transe ainda abatido psicologicamente com o desempenho do dia. Minha força de vontade faz com que as pernas se movam, mas o corpo todo pede que eu pare e fique onde estou. Passamos pela campo 1, deixamos algumas coisas, pegamos outras e seguimos. As cinco e meia da tarde chego ao campo base a recuperado pela maior concentração de oxigênio. Que felicidade, dois dias para descansar antes de subir novamente.

20-09-09

Acordo as 8 da manhã depois de um sono de um século e me deixo ficar na barraca ouvindo música. Ouço o chamado para o café da manhã, mas me viro para o outro lado e meio durmo meio presto atenção nas letras das músicas que passam um após outra sem que eu me de conta muito bem do que estou ouvindo. O Ipod está em shuffle. Horas mais tarde ouço chamarem para o almoço. Acho um chocolate na barraca e decido ficar alí dentro. A temperatura está perfeite, pela porta aberta entra uma brisa fria. Pela fresta da barraca vejo o Cho Oyu dois quilômetros e meio acima de mim e penso que em mais dois dias estarei subindo rumo ao seu cume. Fecho os olhos e durmo um pouco mais.

As 3 da tarde temos o treinamento do equipamento de oxigênio. Todos com exceção do Lucas e da Andrea decidem ir com oxigênio. Percebemos que sem não teríamos chance. Mas, nas montanhas não é só sua vontade que conta. A previsão do tempo nos conta que temos apenas mais quatro dias de tempo bom antes que os ventos fortíssimos se abatam sobre nossa Deusa Turquesa roubando qualquer possibilidade de cume por pelo menos uma semana. Fazemos nossas contas e vemos que se queremos ter os dois dias de descanso, o mínimo para que possamos subir novamente, temos que partir para o cume a partir do campo 2, 1100 metros abaixo do cume. Não temos tempo para subir ao campo 3. Sair do campo 2 sem oxigênio e loucura e a Andrea e o Lucas com dor no coração também tem que desistir de seus planos. Vamos todos com oxigênio suplememntar.

O Victor está feliz. Para ele é muito mais seguro que todos os seus clientes façam desta forma. Provamos as máscaras, testamos o regulador, colocamos e tiramos o regulador dos cilindros. Repetimos os movimentos até que eles se tornem automáticos, pois lá em cima, de noite, a menos 20 ou 30 graus, com as mãos dormidas e o cérebro embotado pela anóxia podemos facilmente aumentar o fluxo de oxigênio quando pensamos que estamos dimuindo erro que já custou muitas mortes. Temos dois cilindros de oxigênio cada um, o que dá dezesseis horas a dois litros por minuto. Isso deverá ser administrado por nós. Quando fizermos um trecho mais duro como a Yellow Band aumentaremos para 3 ou 4 litros por minuto. Se ficarmos parados em alguma fila de corda fixa, o grande medo sempre nessas montanhas, diminuiremos para 1 litro por minuto. Mas, essas são as chances de erro. Então voltamos a praticar.

Durante o resto da tarde perguntamos as mil duvidas que njos vem a mente. O que pode dar errado? Como é o terreno acima do que já conhecemos. Como é a Yellow Band? Quantas horas até cada parte? O que acontece se o oxigênio acabar? A partir de que parte na descida podemos descer sem oxigênio e sobreviver? Qual é o horário que devemos desistir não importa onde estejamos? De repente todos tem perguntas urgentes como se durante todos esses dias não tivessemos falado mil vezes sobre tudo isso. É como se agora de repente a escalada tivesse adquirido realidade. Agora não são mais suposições e sim nossa realidade. Os medos aparecem à superfície.

21-09-09

Hoje é dia de trabalho. Arrumar as mochilas, separar a comida dos campos altos, recarregar as baterias dos eletrônicos. Comer e hidratar. No café da manhã fazemos a revisão do estado de saúde de todos. Eu tive diarreia ontem, o Felber também. O Greg, um homem de 100 quilos e físico perfeito está abatido por vômitos durante toda a noite. O Lucas está tentano combater o segundo episódio de laringite e está muito preocupado. O Lui ontem caminhando de volta a barraca a noite torceu o pé. Fora isso, todos com saúde perfeita e prontos para subir.

Agora são meio dia e dentro de 3 dias, dentro de exatamente 72 horas sonho estar no cume da sexta mais alta montanha da Terra. Não sei se vou conseguir, nenhum de nós sabe. Estamos nesta expedição há 23 dias e amei cada segundo dela. O cume sera um premio. Sinto assim agora, mas sei que se não chegar será muito difícil pensar assim. Sei que ficarei frustrado. Coloquei muita energia nisso tudo. Muitos sonhos, muito dinheiro, muito tempo. Quero o cume. Mas, tenho que aceitar o que vier.

Manoel Morgado é médico e guia de montanha com mais dezoito anos de experiência guiando grupos de brasileiros em viagens de trekking e escalada em vários países do mundo. Se quiser saber mais sobre as expedições organizadas e guiadas por Manoel Morgado visite o site www.manoelmorgado.com.br
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Sobre o autor

Manoel Morgado é médico de formação, mas trabalha como guia de montanha há 20 anos, atuando em vários países ao redor do mundo. Há 15 anos é montanhista, tendo como ápice de sua carreira a conquista do Everest e também a realização do projeto 7 cumes. Ele nasceu no Rio Grande do Sul, se criou em São Paulo e dede 1989 não tem casa.

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