McKinley, expedição própria ou guiada?

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Quando eu e a Andrea no ano passado começamos a pensar em escalar o McKinley pensamos em fazer uma expedição privada, só nós dois. Conforme fomos tendo mais informações sobre a montanha começamos a ter dúvidas sobre a sabedoria de irmos em uma cordada de dois.


Como o McKinley é uma expedição muito demorada, de até vinte e cinco dias, e é considerada a montanha mais fria do mundo a quantidade de equipamento e de comida a ser levada a montanha e muito grande. O peso normal com que se sai do campo base é de não menos de cinqüenta quilos por pessoa divididos em trinta na mochila e vinte no trenó.

O McKinley apresenta dois perigos mais sérios, gretas e o frio extremo com o risco de congelamentos. Quanto ao frio estávamos muito bem preparados, havíamos comprado os melhores equipamentos disponíveis no mercado e sabíamos como lidar com ele, mas as gretas preocupavam. Eu uma cordada de dois a Andrea teria poucas chances de parar uma queda minha com meu peso e mais os cinqüenta quilos de carga. Buscamos algum amigo para ir conosco, mas ninguém estava disponível. Vontade existia claro, mas coordenar disponibilidade financeira e de tempo era muito difícil. Três meses antes da escalada nos deparamos com a realidade de ou irmos em dois e arriscar ou fazermos a expedição através de uma das cinco empresas que tem autorização para guiar no McKinley. Acabamos optando por irmos guiados.

O que gostaria de debater aqui são as vantagens de fazer uma ou outra baseada na experiência que acabamos de ter. No dia 25 de maio voamos para o campo base do Denali, como prefiro chamar o McKinley, já que se trata do nome indígena local e não no nome do presidente dos EUA. Após 16 dias fizemos o cume e dois dias depois estávamos voando de volta a Talketna, a pequena cidade serve de base para os vôos ao campo base. A montanha nos presenteou com uma tormenta com cinco dias de duração no campo dois a 3200 metros de altitude e com bom tempo a partir daí. A média de duração das expedições ao Denali é de 18 dias e a nossa esteve dentro desta média. Seria inesperado fazer sem ficar preso em algum dos campos por vários dias por causa de mau tempo e a nossa experiência não foi das piores já que ficamos razoavelmente baixo na montanha, outros grupos passaram oito dias presos no campo quatro onde as condições de vento e frio são muito piores.   

O que senti em relação a participar em uma expedição comercial foi o seguinte:

Pontos positivos

– Aprendizado. Nunca havia estado tanto tempo em um ambiente tão hostil, tão frio e com apenas gelo e neve ao meu redor. O guia principal (eram três para nove clientes) era extremamente experiente com dezesseis expedições ao Denali e pode nos ensinar uma enorme quantidade de coisas que serão muito úteis no Cho Oyu e Everest, nossas próximas montanhas. Nunca havia andado com snow shoes, nunca havia preparado muros de gelo para proteger as barracas contra os ventos fortíssimos desta montanha. Nunca havia andado com trenós e foi muito útil e interessante aprender a maneira mais eficiente de arrumá-los com a distância entre nós e o trenó mais segura em caso de queda em gretas. Sabíamos que era importante não deixar pele exposta que se congela em questão de segundos, mas foi importante ter alguém nos dizendo todo o tempo para tomar cuidado com isso. As máscaras que usávamos no rosto são claustrofóbicas e eu tinha muita tentação de tirá-las e os constantes avisos sobre os perigos de fazer isso me ajudou a sair da montanha com minha pele intacta.

– Organização: Como em qualquer expedição desta magnitude o trabalho de organizar permissões, comida e logística é enorme. Nós tivemos três longos trekkings, dois guiando clientes brasileiros e um abrindo uma nova rota no Nepal, imediatamente antes da expedição ao Denali e teria sido muito difícil ter encontrado tempo para fazer tudo o que seria necessário. Com a expedição comercial a única coisa que você precisa fazer é treinar muito e organizar o equipamento e mesmo isso é extremamente facilitado pela completíssima lista que eles fornecem baseado em mais de trezentas expedições a montanha. No dia anterior ao vôo ao campo base, fizeram uma reunião e checaram todo o material e em seguida fomos a uma loja para comprar o que era necessário complementar. Outra ajuda foi em deixar o que era redundante ou desnecessário. Existe uma linha muito fina que dividi o que você precisa na montanha e o que é supérfluo.

– Grupo grande é mais seguro: Como já disse, talvez o maior risco do Denali sejam as gretas. Todos os anos morrem pessoas na montanha por isso. No dia anterior ao nosso vôo ao campo base, desapareceu um escalador americano que provavelmente caiu em uma cravasse quando ia do campo três ao cume. Até hoje seu corpo não foi encontrado. Se estivéssemos só nós dois, mesmo que a Andrea conseguisse fazer o self arrest e parar uma queda minha teria muita dificuldade em fazer o resgate tendo que para isso colocar um anchor, sair da cora principal e organizar um sistema de polias. O auto resgate, ou seja, eu mesmo sair da greta usando prussiks ou jumars, é muito difícil, pois a corda tende a entrar profundamente na neve na boca da greta.        
 
Na nossa expedição estávamos sempre em 12 pessoas e no caso de uma queda em greta os outros poderiam sem dificuldade tirar o escalador que caiu sem maiores dificuldades.

– Conforto: Com tanta gente no grupo tínhamos a possibilidade de construir cozinhas que serviam de “sala de estar” e que nos davam muito conforto nas longas esperas que tivemos durante a tormenta. Cavávamos um buraco de dois metros de profundidade por quatro de diâmetro e nas bordas colocávamos blocos de gelo e por cima uma barraca muito leve em forma de pirâmide. Tínhamos assentos no gelo, lugar para cozinhar e de lá de dentro mesmo tirávamos a neve para derreter e ter água sem ter de sair na tempestade para coletar neve. Enquanto víamos os habitantes das expedições individuais presos em suas pequenas barracas por dias, nos estávamos sentados ou de pé em uma confortável barraca espaçosa.

Pontos negativos

– Custo: Esta é uma grande diferença já que as empresas cobram US 5700 por pessoa (já incluindo a permissão) pela expedição e se pode fazer uma expedição privada por muito menos do que isso. Os custos de uma expedição privada são a permissão (US 220), os vôos de ida e volta de Talketna ao campo base (US 500), o transporte de Anchorage a Talketna ida e volta (US 100) e a comida para os vinte e cinco dias de expedição que pode ser comprada em um grande supermercado em Anchorage para os campos um, dois e três e em uma das boas lojas de montanha também em Anchorage para o campo quatro e o dia de cume.

– A surpresa do grupo: Nós tivemos sorte, nosso grupo foi bastante agradável com americanos, ingleses, uma sul africana, um belga e um sloveno, mas estar tantos dias com completos desconhecidos em um clima de stress pelo esforço físico e pelo frio pode ser uma fórmula para desgaste emocional. Por outro lado, com um bom grupo a experiência de dividir com outros essa maravilhosa montanha pode ser enriquecedor.

– “Estar engessado”: Para nós, este foi o maior ponto negativo de estar em uma expedição comercial. Escaladas comerciais ou aquelas que têm um expedition leader são sabidamente experiências próximas a estar no exército. As decisões são tomadas pelo guia e não são discutidas a para mim particularmente isso foi muito difícil de lidar e aceitar. Estou acostumado a ser o guia de meus trekkings e expedições e ter de delegar todas as decisões a outra pessoa foi extremamente complicado. Durante estes dezoito dias discordei de varias decisões e sofri muito com isso. Conto apenas uma das situações onde teria agido diferente. Estávamos indo do campo um ao campo dois e a tormenta que iria nos segurar no campo dois por dias já tinha começado. Estávamos à uma hora do campo dois quando um dos nossos companheiros, o que tinha menos forma física, disse que estava tão cansado que não poderia continuar. O guia decidiu acampar ali mesmo o que significa debaixo de uma fortíssima nevasca cavar uma plataforma para cinco barracas e montar o acampamento com um vento incrível. Isso foi trabalho de duas horas e um desgaste físico imenso para todos. E no dia seguinte o mesmo no campo dois.

Em minha opinião, teria sido mais sensato deixar um dos três guias com este cliente e seguir com o grupo ao nosso destino e no dia seguinte outro guia voltar para buscá-lo. Mas, mesmo nas simples decisões do dia a dia você precisa estar disposto a ter sua vida decidida por outros, a que hora acordar comer, andar, descansar, tirar fotos, aclimatar. Tive muita dificuldade com tudo isso. Mais importante do que tudo isso foi ter de aceitar a estratégia de em que dia tentar o cume. Após a tormenta tivemos um período excepcionalmente longo de bom tempo e acabamos fazendo o cume, mas com uma “janela” menor teríamos perdido o cume por estar aclimatando por muito tempo. No Aconcagua, anos atrás, tomei a decisão de atacar o cume do campo dois, pois não acreditava que a janela duraria o tempo suficiente para passar uma noite no campo três. A decisão foi acertada e fizemos cume, mas dez minutos após chegarmos ao topo a tormenta veio e não se fez cume depois disso. Tinha medo que isso se repetisse no Denali. Tivemos sorte…

– O escalador mais fraco dita o ritmo: Isso ficou claro desde o primeiro dia. Apesar dos muitos avisos no site da empresa de que a montanha era difícil e deveríamos nos preparar o mais possível, um dos clientes era notadamente mais fraco que os demais e por toda a escalada tivemos que seguir o ritmo dele. Isso pode ser tão serio a ponto de comprometer as chances de cume dos outros. Os dias foram muito mais longos do que deveriam e todos chegavam aos acampamentos mais cansados do que se pudessem ter feito seu próprio ritmo. Nosso dia de cume demorou 15 horas. Se fossemos só a Andrea e eu imagino que pudéssemos ter feito em menos de 10 horas.

E no fim como fica? Acho que os pontos positivos, em nossa experiência, compensaram os pontos negativos principalmente no que se refere ao aprendizado. Claro que teríamos aprendido tudo “na marra”, mas nos sentimos muito mais confiantes agora para enfrentar o Cho Oyu e o Everest. Por outro lado, também estamos hoje muito mais decididos a fazer o Everest de maneira independente contratando apenas os serviços de campo base. Perder o poder de decisão nos incomodou muito. Aprendemos muito, agora estamos prontos para sermos os donos de nossas decisões.

Saiba mais:
:: De olho no Everest, brasileiro faz cume no Denali

Para quem saber das viagens que Manoel Maorgado organiza: www.manoelmorgado.com.br ou da Andrea (em espanhol) www.rumboaleverest.com

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Sobre o autor

Manoel Morgado é médico de formação, mas trabalha como guia de montanha há 20 anos, atuando em vários países ao redor do mundo. Há 15 anos é montanhista, tendo como ápice de sua carreira a conquista do Everest e também a realização do projeto 7 cumes. Ele nasceu no Rio Grande do Sul, se criou em São Paulo e dede 1989 não tem casa.

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