O dia que salvei um amigo

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Saímos do acampamento alto, em direção ao cume. Não era a maior das montanhas do mundo, mas estávamos no Andes…

Éramos mais jovens, inexperientes demais até para aquela simples montanha, e era evidente isso, quando conversávamos com o a outra parte da equipe, todos já experimentados nas montanhas andinas, e com bem mais idade que a nossa.

Porém, lá estávamos e subíamos. A primeira parte da caminhada era formada por várias paredes rochosas, encobertas em alguns pontos por uma fina camada de gramíneas. Nossa trilha seguia por uma tênue linha entre os precipícios e a grande parede rochosa que formava a parte alta da montanha.

Mais para cima, um grande platô nos levava para o topo da montanha, porém um vale ainda nos separava da subida final ao cume.

Fui o primeiro a chegar ao ponto em que abortei a subida. Ainda conseguia ver a turma dos mais velhos já passando o vale e subindo as encostas de rocha nua do Cerro Tunari.

Ali fiquei por cerca de 15 minutos, até que o próximo amigo apareceu. Era o Beto Joly, que apesar de nas montanhas da serra do Mar paranaense ser muito mais forte e ágil que eu, ali demonstrava certa dificuldade de resistência. Talvez o cigarro que o acompanha há muitos anos estivesse fazendo efeito.

Demorou mais um pouco para que os outros 2 amigos chegassem, quase extenuados. Já tinha em mente a minha proposta de ficarmos por ali mesmo, pois como acabamos saindo tarde do acampamento, havíamos chegado tarde demais naquele ponto, e aquela montanha era apenas para aclimatação.

Três dos meus amigos seguiram meus preceitos, mas um, exatamente o Beto Joly resolveu seguir sozinho ao topo da montanha. Tentamos o convencer do contrário, pois o dia seria curto e não haveria tempo hábil para um retorno na segurança da luz do dia. Não conseguimos.

E assim, enquanto retornávamos ao acampamento, até certo ponto frustrados, devo admitir, nosso amigo tentava chegar ao topo daquela montanha.

Já no acampamento, a turma dos mais velhos chegou com o topo no bolso, mas nem avistaram o Beto ao longo da jornada de retorno do cume.

As horas passaram, a noite caiu e meu amigo ainda não havia chego ao acampamento.

O pessoal já jantava, mas meu nervosismo não me permitia comer. Falei para o pessoal que precisávamos subir a montanha para tentarmos encontrar o Beto, mas eles foram contra minha idéia.Ouvi até uma frase que me marcou muito: “Antes um do que três”.

Nervoso e ainda cansado, subi a pequena montanha que formava o vale onde havíamos montado nossas barracas. Esperava avistar o Beto descendo, mas nada via. De repente, sob a penumbra da última iluminação que ainda atingia o sol, avistei uma figura esguia, que atravessava a região que apelidamos de canaleta.

Tinha certeza. Era meu amigo que descia, e confiante de que logo ele estaria nos acompanhando na janta, fui preparar minha refeição.

Comi um pouco, conversei, e até comentávamos da superação do Beto, de seu provável cume conquistado e tudo mais. Porém novamente as horas passaram, a noite gelada já se fazia presente, e alguns amigos já adentravam as barracas para uma merecida noite de descanso, mas meu amigo Beto ainda não havia chego.

Não entendia o que poderia ter acontecido, porque ele demorava tanto. Eu o havia avistado, sabia que era ele. Impacientemente subi a mesma pequena montanha de antes, e não avistava nada. Até que de repente uma luz apareceu, ainda lá no alto, próximo da canaleta.

Bem, pelo menos eu imaginava que estava próximo a canaleta, pois já não dava mais para distinguir as diversas formações rochosas na escuridão da noite. Mas era o Beto que lá estava, eu tinha certeza disso.

Porém, a luz não se mexia.  Eu gritava, esperava que a noite tranqüila, livre de ventos e de ruídos pudessem carregar meus apelos ao amigo.

_BETO!!! SE ESTÁ PRECISANDO DE AJUDA, PISQUE A LANTERNA TRÊS VEZES!!!

_BETO!!! SE ESTÁ PRECISANDO DE AJUDA, PISQUE A LANTERNA TRÊS VEZES!!!

_BETO!!! SE ESTÁ PRECISANDO DE AJUDA, PISQUE A LANTERNA TRÊS VEZES!!!

Sabia que meu amigo não estava bem, mas não queria acreditar. Como se fosse por milagre, aquela lanterna pisco 3 vezes, e nesse exato momento desci alucinadamente a montanha e convoquei os amigos a subirem para ajudar o Beto. Mas a resposta foi a mesma:

“Antes um do que 3!”

Não tive dúvidas do que faria então. Comecei a me preparar, calcei as botas, e quando arrumava minha mochila, o Elcio e o Julio Fiori se aprontaram juntamente a mim. “Se você vai mesmo assim, então que vá os três”.

Subimos da forma que era possível a encosta da montanha. Não enxergávamos nada além dos poucos metros que a pouca luz da lanterna nos possibilitava ver. Não esperei pelos outros dois, talvez pela adrenalina depositada em meu sangue, eu subia num ritmo, quase escorrei duma parede que ao invés de desviar, tentei escalar, mas continuava. Meu amigo precisava de mim.

Já conseguia avistar a luz da lanterna dele, foram pouco mais que uma hora de subida. Mas cheguei num ponto que não havia passagem. O Beto falava algumas besteiras cerca de 15 metros acima de mim, bem na encosta dessa pequena parede. Pedia a ele que não se movesse, pois previa que se o mesmo tentasse chegar até mim, acabaria caindo do penhasco. Mas mesmo que não tivesse falado isso para ele, ele não tentaria, pois estava esgotado.

Dei uma grande volta pela parede, e consegui encontrar um caminho. Quando cheguei o Beto parecia um fantasma, de tão branco que estava. Falava algo com lhama, e de repente começou a me falar que tinha que descer rápido, pois tinha aula na faculdade. Coloquei minha mão quente do exercício físico e senti que ele estava muito gelado.

Puxei um saco de dormir de pena que havia levado para cima, o cobri, peguei um copo de café quente da garrafa térmica, o servi, e após o abracei tentando o esquentar. Nisso chegou o Elcio que quando o avistou tomou um susto:

“Cara! Precisamos descer ele logo!!!”

E assim, meio que o carregando, fomos transpassando todas as pequenas paredes, que com grande capacidade de memorização, o Elcio lembrava o caminho feito para subir. Um pouco mais abaixo encontramos com o Julio Fiori e agora em três, conseguíamos o descer com mais velocidade.

Chegamos ao acampamento base e logo o colocamos na barraca do Douglas, que é médico.

Algum tempo se passou quando o Beto já melhor saiu de sua barraca. Mas ainda estava cambaleando, e precisava deitar. O acomodamos em sua barraca, e a fechamos.

Nesse momento meu mundo voltou e me senti mal. Poucos amigos sabem, mas logo depois vomitei tudo que havia jantado por detrás duma pedra e, não demorou muito, uma longa disenteria começava ame afligir, ainda naquela noite.

O Douglas depois deu o diagnóstico. O Beto não havia levado nem comida, nem água para cima, o que se transformou numa hipoglicemia aliada a desidratação. O frio da noite ainda o fez sofrer com um princípio de hipotermia e, segundo o Dr. Douglas, não fosse o resgate, possivelmente nosso amigo teria perecido na montanha.

Estas lembranças não saem da minha cabeça e hoje mesmo estive pensando em como estaria o mundo se eu não tivesso ajudado a salvar o grande amigo Beto Joly!

Essa coluna é uma homenagem a você, meu amigo…
 

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Sobre o autor

Hilton Benke é um dos idealizadores do AltaMontanha.com. Dono de uma personalidade muito forte, é hoje praticante assíduo do voo livre, principalmente da modalidade "hike and fly", que une o voo com o montanhismo. Como montanhista e escalador, gastou seu tempo galgando montanhas brasileiras e andinas, além de ter prestado alguns serviços como instrutor de escalada junto ao CPM. Deixá-lo feliz é fácil: só marcar um bom pernoite em um cume da Serra do Mar Paranaense, com um bom menu para o jantar e uma condição de tempo boa para que possa decolar com seu parapente dia seguinte e realizar uma das muitas travessias sobre a Serra do Mar.

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