Saudade do Pico Paraná 01

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Este é um texto antigo e retrata uma época passada, uma paisagem também alterada que em parte não mais existe, mas que deixou muita saudade.

    A Serra do Mar sempre me fascinou e desde criança alimentei verdadeira paixão por estas montanhas maravilhosas. Quando descíamos para o litoral ninguém conseguia me afastar da janela ou desfazer o transe hipnótico em que entrava ao chegar na Graciosa. Ouvia atento a toda e qualquer história ali ambientada, caçadas e resgates sempre foram minhas favoritas. Um vizinho chamado Reinaldo perdeu-se durante uma caçada e ficou durante vários dias andando em círculos pelo mato. Eu absorvia os mínimos detalhes e os remontava na imaginação.

    Era uma época em que os acidentes com aviões se faziam muito freqüentes nesta região e as operações de resgate alimentavam muitas outras histórias. Também era um tempo em que o ar era puro e transparente, não haviam edifícios, queimadas nem poluição. Das colinas em que passei a infância via-se toda a Serra fechando o horizonte. Montanhas azuis pairando sobre o imenso plano verde. A solidão de dois altos cumes arredondados já me interessavam principalmente porque o percebia estarem muito mais distantes e mesmo assim serem mais altos que os demais.

    A ferrovia e a estrada da Graciosa, pelas facilidades de acesso que oferecem, desde há muito dominam as ações de um número significativo de montanhistas, notadamente os novatos, e quando retomei o interesse por aventuras e passeios na serra foi justamente por aí que recomecei. Anhangava num 1º de maio, Itupava e Salto dos macacos a seguir. Marumbi pela frontal, depois a noroeste e a Crista do Gigante. Nem havia amanhecido quando nos empoleirávamos dentro do trem de passageiros para percorrer o trecho mais bonito de toda a serra do mar, saltar por volta das 9:00 horas na Estação Marumbi e sumir no mato para reaparecer às 18:00 horas quando paravam os vagões de retorno.

    Excursionar até o PP nesta mesma época era um pouco mais complicado. O ônibus passava pela BR116 distante 7 Km do início da trilha e de carro tornava-se necessário negociar as condições de permanência com o caseiro da fazenda dos Belisários que nem sempre acordava com bom humor.

    O Peter guiou a mim e ao Pioli em nossa primeira investida ao Paraná no início da primavera de 1995. Fazia muito calor naquela manhã de sábado quando cruzamos o pasto e começamos a subir. Ao sair do bosque nosso guia confundiu-se e cruzou reto por dentro do samambaial até sairmos retalhados pelas unhas de gato na Pedra do Grito. Excelente apresentação para o Morro da Desistência. A inexperiência cobrou seu preço durante toda a viagem. O Peter havia planejado montar a barraca dentro do Abrigo de Pedras e imaginava que todos também o queriam,  tornando nosso passeio uma competição entre equipes.
    
    No A1 começamos a ouvir música vindo das encostas do Caratuva, parecia que uma escola de samba nos seguia. Faltava pouco para o meio dia e o sol estava infernal quando entramos na vegetação baixa e ressequida do Fio de Ligação, apressando o passo para chegar a frente da banda. O sol inclemente castigava o paredão e o Peter partiu na frente para ocupar o Abrigo. Rastejando fui medindo os passos até o A2 e lá encontrei o Peter desmaiado dentro do muro de pedras. Horas depois apareceu um sujeito em traje militar com uma pequena mochila escolar nas costas e um enorme rádio/toca-fitas no ombro em volume máximo, seguido por um menino de 15 anos. Sem nenhum equipamento queriam tirar uma foto no cume com a bandeira do Brasil que traziam na bagagem e prepararam-se para pernoitar num mocó entre as moitas e caratuvas.

    O calor sufocante produziu nuvens carregadas que lentamente foram fechando o horizonte e no final da tarde bombardeou a montanha com enormes pelotas de granizo. O Abrigo de Pedras nos ofereceu excelente proteção contra o bombardeio, mas as pedras de gelo foram se acumulando dentro das paredes e formando um cinturão gelado no entorno da barraca que forçou até o limite o revestimento de nylon e as armações de fibra. Após o intenso bombardeio seguiu-se violenta tempestade tropical com o cume sendo várias vezes riscado por descargas magnéticas. O caos estava instalado em toda a serra enquanto a noite caia e o vento varria as encostas com rajadas assustadoras. O gelo acumulado impedia o escoamento da água e muito rapidamente o Abrigo de Pedras transformou-se numa piscina gelada. A tempestade retirou-se com a mesma impetuosidade que veio e horas depois a lua cheia nos oferecia o seu brilho pálido para reorganizar o acampamento, do militar e seu acompanhante não restou sinal.

    No ano seguinte guiei uma tropa escoteira até o cume e acampei neste mesmo local quando fomos atingidos por violenta tempestade noturna que com rajadas de 120 km/h, como soubemos depois, destruiu três barracas deixando a garotada em desespero. Aproveitei esta oportunidade para levar junto a Juliana que com 11 anos já demonstrava sua fibra indomável. Muitas vezes acampei no A2 e sempre voltei com uma boa história para contar, em 96 durante um período de forte estiagem passamos muita sede e precisamos buscar água entre as valas dos Camelos, imprópria para o consumo, grossa e amarelada precisou ser coada e depois fervida. Naquela tarde vimos um montanhista vagarosamente vencer as passagens superiores, bem próximo ao falso cume. Tirou a enorme mochila das costas e enfiou-se numa fresta agora em desuso pela colocação de degraus na outra face da pedra, aparecendo a seguir no topo da saliência. Sentou-se para descansar ao lado da mochila quando esta rolou pedra abaixo. Uma hora depois ele pacientemente repetiu toda a operação.

    No inverno de 97, enquanto escalava estas mesmas pedras com o Douglas, fomos surpreendidos por um princípio de nevasca. O Ernane e o Ricardo estavam montanha acima e o Pioli ficara no A2 dando assistência ao Albano, Miltinho e outro que já esgotados não podiam subir. Vestidos com apenas camiseta e calção não estávamos preparados nem psicologicamente para a situação. Envoltos por uma espessa nuvem de estranha luminosidade e consistência quase sólida a nos bombardear com pequenos flocos que descongelavam ao nos atingir causando dores de queimadura. Com muito esforço vencemos esta perigosa passagem que por demais exposta ao abismo causou grande apreensão. O Douglas, muito abalado quis parar para comer e após alguma discussão procuramos um abrigo entre as pedras onde ele sacou da bagagem um saco com ameixas pretas em conserva. As ameixas pareciam com a lama visguenta de turfa preta que escorria por entre nossos pés.

    O vento assobiava e quase podia-se arrancar com as mãos os pedaços das nuvens, o frio estava no limite do suportável e eu pensei que poderia ser o fim de tudo, mas em alguns minutos levantamos com os músculos enrijecidos e continuamos a subir ignorando a dor. Montamos as barracas no cume e mergulhamos nos sacos de dormir já com fortes sintomas de hipotermia. Acordamos na manhã seguinte sobre uma fina camada de gelo branco suspenso sobre um mar de nuvens onde os cumes vizinhos mais pareciam as ameixas que comemos no dia anterior colocadas sobre a cobertura de nata de um imenso bolo. Em vistoria nas pedras a beira da parede leste encontramos provas do que poderia ter sido literalmente a última cagada do Ricardo já que durante a madrugada ele não havia percebido a proximidade do abismo.

    Raras vezes vi a serenidade do cume ser perturbada e em muitas noites permaneci fora da barraca para apreciar os satélites e meteoritos riscando o céu estrelado. Em 2000 guiei um oncologista de Blumenau, sua esposa e amigos para pernoitar no cume numa noite magnífica, astrônomo amador deu-nos uma aula inesquecível localizando cada constelação, estrela e planeta visível. Quando conheci o Paulo Marinho aqui acampado sozinho, em 96 após o episódio da mochila, ele disse-me que morava com a sogra e vinha procurar a paz que lhe faltava nestas altitudes.

    Gosto de acampar neste cume com minhas filhas e as trago para praticar escalada técnica e rapel nos paredões vizinhos. A Isabela demostrou total destemor e autocontrole ao descer a pedra das escrituras em julho de 2001.  Enquanto eu montava as barracas depois de uma caminhada tranqüila até o cume, ela e a Ana Paula fixaram as cordas no paredão e brincaram sem temor até o anoitecer. A Juliana enfrentou toda a fúria dos elementos quando durante a comemoração pela chegada ao cume com os escoteiros as nuvens despejaram pedras de granizo vindas de todas as direções e o vento em redemoinhos ameaçava suspender pelo ar as pessoas que se agarravam às pedras para não serem empurradas para o vazio.

    Dominado o pânico inicial conseguimos descer em segurança até o A2 onde a chuva torrencial nos alcançou em meio a desmontagem do acampamento. Alguns meninos estavam bastante assustados ao alcançar as encostas arborizadas do Caratuva, começava a escurecer e a temperatura caíra drasticamente quando os líderes começaram a cantar. Imediatamente elevou-se o moral do grupo que formou uma fila indiana muito compacta e a Juliana tropeçou e caiu no meio do lodaçal. Mais tarde ela nos confidenciou que vinha retendo a urina desde o A1 e jogou-se no barreiro quando não mais pode conter-se.

    Ao passar pelo A1 durante o retorno na seca de 96 encontramos um casal com sérios problemas. A moça apresentava um enorme inchaço no tornozelo e suspeita de fratura, os vizinhos já haviam providenciado uma tala e colaboramos com algumas ataduras. Paramos no rio para um banho refrescante e depois seguimos em frente até a bifurcação do Caratuva quando notei que havia esquecido a correntinha com a aliança em uma pedra do rio. O Pioli ofereceu-se para ir levando minha mochila com ajuda dos demais e eu voltei correndo pela trilha. Na fonte cruzei com um casal que a tinha visto e deixado no mesmo lugar, encontrei os próximos viventes a menos de quinhentos metros do rio e quando os interroguei não obtive resposta audível. O primeiro apenas olhou para o segundo que virou-se para o próximo até que após alguns desconfortáveis segundos o último me entregou a jóia sob o peso acusador de todos os olhares.

    Agradecido segui até o rio para descansar em local fresco e lá reencontrei o pessoal conduzindo a moça com muito esforço. Me detive por meia hora antes de retornar carregando uma mochila para aliviar a carga do grupo. Nas imediações da Lagoa do Jacaré percebi o Pioli escondido atrás de uma árvore observando um burrico que pastava dentro do mato, alguns metros em frente. Quando notou a minha presença sinalizou para que me aproximasse abaixado e em silêncio enquanto ele focalizava a máquina fotográfica no animal. Perguntei porque fotografar um burro pastando e ele muito desapontado exclamou: -Burro!!! pensei que era um urso!!! Sentamos na grama e caímos na risada até sentir câimbas no estômago, tornando-se impossível passar pelo lugar sem relembrar o urso do Pioli.

Continua em “Saudade do Pico Paraná 02”

    Após algumas semanas abri a mochila a procura de algum endereço ou telefone e além disso encontrei entre outras coisas uma caixa de camizinhas, uma calçinha vermelha e meio litro de perfume Rastro. Apesar de todas as explicações cabíveis e do tempo transcorrido eu ainda sou reinteiradamente cobrado sobre este episódio.
 

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Sobre o autor

Julio Cesar Fiori é Arquiteto e Urbanista formado pela PUC-PR em 1982 e pratica montanhismo desde 1980. Autor do livro "Caminhos Coloniais da Serra do Mar", é grande conhecedor das histórias e das montanhas do Paraná.

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