A Tempestade

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A seguir A Tempestade, 6º capítulo desta história contada em 10 capítulos, escrita para esclarecer alguns mistérios da Serra do Marumbi e aprofundar outros, onde alguns personagens, lugares e acontecimentos são reais enquanto nomes, datas e outros tantos acontecimentos são fictícios. Tudo junto e misturado durante uma hipotética Travessia Alpha-Ômega.

 
Leia antes os capítulos: 1 –  A MARIA FUMAÇA,  2 –  A CACHOEIRA DOURADA,   3 –  A TRILHA,   4 –  O SOCORRO   e   5 –  A ALDEIA  
 
 
                 – Renan! Renan! – gritava Oscar.
 
                  – Renan responda, por favor. – choramingava Anna.
 
Começava a amanhecer e o capim já estava todo amassado pela busca desesperada que faziam a Renan desde que acordaram e não o encontraram na barraca. A neblina continuava igualmente densa, mas às vezes, no alto, abria um buraco por onde se via um pedaço do céu. Aldo assistia a tudo com cara de paisagem.
 
                 – Aldo, você sabe de alguma coisa, onde está o Renan?
 
                 – Não sei de nada, cara! De madrugada ele saiu da barraca e ficou gritando feito doido pelo campo, depois ficou quieto e tudo voltou ao normal.
 
                 – Normal uma ova, seu merda, porque você não levantou e foi ver o que estava acontecendo? – e partiu pra porrada.
 
                  – Calma gente! – interveio Anna – Brigar agora não resolve nada.
 
                  – Sei lá qual é a treta de vocês? O cara estava maluco, violento e porque vocês que são amigos dele não levantaram? 
 
                  – Ache ele Aldo, você sabe seguir rastros. – Anna chora.
 
                  – Vocês acham que sou apache? Não se enxerga cinco metros e o capim está todo amassado! Tem rastro para todo lado e já se passou três horas ou mais. O negócio é sair daqui e chamar os bombeiros num lugar com sinal de celular, se até lá não tivermos notícias dele.
 
                  – E se ele voltar? E se nós voltássemos todos?
 
                  – Já teria voltado se quisesse e nem sabemos pra que lado foi. Podemos deixar marcas para que nos siga e em Curitiba teremos mais recursos.
 
Desmontaram acampamento e partiram em jejum, quebrando galhos e folhas na passagem. O terreno desce em meio à vegetação densa até que adentram um inferno composto por imensas pedras debaixo da copa das árvores. Por entre as pedras se abrem fossos de profundidade indeterminada, alguns grandes o suficiente para engolir um automóvel e outros sob medida para quebrar uma perna. Muitos tão limpos e lisos quanto profundos e os mais perigosos cobertos por galhos secos e folhas mortas. 
 
Escalam pedras e percorrem os labirintos em zig-zag com alguns tombos e muitas esfoladuras, sempre descendo. 
 
A neblina ficava para trás, não penetrava na floresta e já se percebia que o sol a dissolvia no alto das montanhas. Tangenciaram uma encosta de montanha que subia a esquerda ainda caminhando sobre um extenso terreno dominado por profundas gretas. Armadilhas cobertas por finas camadas de sujeira. Oscar despencou numa delas e foi salvo pela mochila que engatou num galho. Esfolou-se todo e precisou de ajuda para escapar. 
 
                  – Estão ouvindo? Podem estar nos procurando.
 
                  – Minha mãe é bem capaz de chamar a cavalaria se desconfiar que estou aqui!
 
                 – Só se acharem que nos afogamos. Estão passando sobre a represa.
 
Perceberam um amplo vale seco se abrindo a sudoeste. Anna recorria cada vez mais ao Aldo para ajudá-la a escalar as pedras, transpor as gretas e retirar os espinhos que reiteradamente lhe feriam as mãos. Oscar que não conseguia digerir a discussão no acampamento se contorcia de ciúmes e mais afundava em ressentimentos.
 
A cada passo ficava mais azedo e com isto mais afastava Anna. A exagerada cortesia de Aldo o irritava ao extremo e constantemente explodia em palavrões contra as pedras, as raízes e ao vento que sacudia a copas das árvores derrubando folhas, gravetos e aranhas.
 
Viam que o sol estava forte, mas o vento se tornava infernal acima das árvores. O vale ascendente começou a se estreitar, espremido entre duas encostas próximas e quando mudou a inclinação para descendente subiram o morro à esquerda depois de consultar o mapa. 
 
A vegetação se torna mais baixa e densa com a aproximação do cume, surgem os caraguatás que cortam como navalhas e perfuram como punhais, precisam lutar contra as moitas de taquaras que amarram e imobilizam.
 
Nos campos do cume, as lufadas de vento os quer varrer para o precipício. Sobem engatinhando, com mãos e joelhos na grama e são tomados de pavor ao contemplar o horizonte. Uma barreira de nuvens negras, maciça como uma parede fecha todo o quadrante sul recheada com ruidosos flashes de luz. Aproxima-se tratorando vales e montanhas. 
 
A frente um selado povoado de macega e caraguatás, depois outro morro mais alto e desprotegido antes de alcançar a segurança das árvores na encosta oposta. Correm para o selado desafiando a vegetação para ressurgir do outro lado com braços e pernas dilacerados pelos caraguatás, mas não há tempo para lamentações. Sobem a encosta com a tempestade nos calcanhares, de joelhos e descem a outra face aos tropeços. 
 
Uma explosão de luz e som os atira com o rosto na terra. O cheiro do ozônio contamina o ar e a vegetação lhes impõe pequenos choques elétricos na pele nua. Um raio acabara de cair no cume da montanha onde passaram. O chão ainda fumegava quando se abrigaram debaixo das árvores para recuperar o fôlego. Escaparam por segundos da morte certa.
 
                   – Merda! Pra mim chega desta bosta! – Oscar chega ao limite – Não agüento mais esta tortura.
 
                  – Vai fazer o quê? – Anna se irrita – Vai chorar? Vai chamar a mamãe?
 
                  – Não me encha o saco, sua, sua…
 
                  – Sua o quê? Quem tem medo do mundo atrai todo tipo de mau agouro.
 
                  – Quer dizer que minhas atitudes provocaram toda esta desgraça?
 
E a discussão foi interrompida pelo aguaceiro gelado que se seguiu. Imediatamente sacaram os anorakes e trataram de proteger tudo que havia no interior das mochilas com sacos plásticos. Voltaram à civilidade depois de encharcados até os ossos.
 
                   – Como se escapa daqui Aldo? – perguntou Oscar.
 
                   – O rumo é sempre sudoeste, por cima das montanhas.
 
                   – Mas não tem outra opção melhor?
 
– Sei que pro sul é um buraco dos infernos e para o norte tem a Estrada dos Mananciais e a represa, mas nem tenho idéia da distância e muito menos da dificuldade. Se alguém já desceu por aí nunca relatou.
 
                  – Como assim? Posso ver o mapa?
 
                  – Nesta chuva não, mas nem precisa. A estrada segue paralela a serra quase até o Morro do Cadeado. Não tem como errar, é só descer, mas chegar nela vivo são outros quinhentos e depois tem toda a estrada para andar sem a proteção das árvores. Pode levar um raio nos chifres.
 
Aldo não deveria ter falado em chifres, Oscar entendeu como provocação. Sentia-se fraco e humilhado num ambiente hostil que não dominava. Sempre foi o rei da balada com carro do ano, papai poderoso, i-phone e viagens a Disney. Via-se agora como piá de prédio enquanto Anna arrastava as asas para um macho alfa. Precisava mudar o jogo, se livrar do Aldo. A estrada significava civilização e o social era seu ambiente natural. Alugaria ou compraria o carro velho de algum caboclo, até carroça serviria nesta situação.
 
                   – Anna vamos descer para a estrada. – decidiu-se enfim.
 
                  – Vai você! Não ouviu o que o Aldo explicou?
 
                  – Eu vou para a estrada e você vai comigo sem discussão!
 
                  – Nem fodendo Oscar! Não estou maluca de sair sozinha com você neste mato.
 
                  – O Aldo vem também.
 
                  – Opa, Tô fora camarada! Tem mais duas montanhas que nunca andei, mas já ouvi muitas histórias e outras duas que conheço bem. Não vou trocar o certo pelo duvidoso e nem imagino as pirambas que tem aí em baixo.
 
                 – Vou sozinho para a estrada se ninguém me acompanhar.
 
                 – Nem pense Oscar. De merda já chega o que fez o Renan lá atrás. Ninguém precisa de dois perdidos neste matagal.
 
E outro raio explodiu no cume do Mesa, a montanha em frente.
 
            – É pra lá que vocês vão? Quero mais é que se fodam, seus filhos da… – e calou-se.
 
                  – Não podemos te amarrar numa árvore Oscar, mas descer aí é fodeção na certa.
 
                  – Foda-se palhaço, espero vocês em casa tomando chocolate quente. Tchau!
 
E partiu debaixo de chuva grossa. Em instantes desapareceu no bosque sem deixar vestígios. De nada adiantou os protestos da Anna e nem que quisessem poderiam segui-lo. A água já corria pela superfície do terreno e apagava os rastros. Raios e trovões disputavam o céu e a mata estava mergulhada na semi escuridão das tempestades. Só restava seguir adiante e rezar para tudo terminar bem. 
 
O selado vai se dividindo em múltiplos e profundos vales, todos eles inundados e tomados por forte correnteza. Oscar estava furioso com a situação e principalmente com a namorada que o havia preterido, escorregava nas pedras lisas e não foram poucos os tombos. Para escapar das canhadas inundadas se via obrigado a escalar as cristas acidentadas em meio ao barro e aos espinhos. 
 
A raiva não é boa conselheira e não demorou para se meter em encrenca pesada, escorregava por encostas que não tinha capacidade para voltar a escalar e as pedras aumentavam de tamanho formando cachoeiras medonhas.
 
A tempestade corria solta com os relâmpagos intermitentes iluminando a mata seguidos por trovões ensurdecedores. A ventania derrubava árvores numa distância indeterminada e os grossos pingos da chuva o bombardeavam juntamente com folhas e outros detritos. A situação se tornava desesperadora com a proximidade da noite e a mata escura o obrigou a ligar a lanterna. 
 
Lutou incansavelmente contra os elementos até diminuir a chuva e os raios cessarem quase por completo. Ganhava uma pequena trégua da tempestade, mas então bateu a cabeça num tronco e trincou a carapaça impermeável da head lamp. A água fez seu serviço quando alcançou os circuitos e ficou no escuro, sentado na lama, maldizendo seu destino. 
 
Levou uma eternidade para dominar o pânico até seus olhos se acostumarem à escuridão. Olhando para o vazio percebeu um brilho ainda muito distante por entre o movimento da folhagem e com enorme esforço começou a se arrastar naquela direção. Tropeçava, escorregava e agarrava qualquer coisa ao alcance das mãos, que sangravam dilaceradas por pedras afiadas e espinhos pontiagudos. 
 
Muito abaixo os brilhos se multiplicavam e reforçava suas esperanças de encontrar algum sítio. Descia cambaleante pela encosta barrenta já não muito inclinada e finalmente, do alto, identificou alguns casebres e postes. Depois distinguiu um uivo triste e o ladrar amedrontado dos cães pouco antes da tempestade recomeçar despejando novos raios e trovões. Talvez uma vila ou bairro afastado e seu coração pulava de alegria, finalmente havia vencido. 
 
                  – Isto mesmo chuva, raios e trovões! Castiguem aqueles dois filhos da puta lá em cima. Que se fodam os palhaços!
 
O frio desapareceu de sua mente, a água escorrendo por dentro de suas roupas encharcadas não o incomodava mais, os tombos não podiam lhe machucar mais do que já estava ferido e a dor desaparecia por completo, anestesiada pelo otimismo. Caminhava numa estrada e a felicidade inundava sua alma. Sentia-se vivo novamente.
 
– Estou salvo! Estou salvo!
 
 

Continua no capítulo 7 – O ACAMPAMENTO FANTASMA

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Sobre o autor

Julio Cesar Fiori é Arquiteto e Urbanista formado pela PUC-PR em 1982 e pratica montanhismo desde 1980. Autor do livro "Caminhos Coloniais da Serra do Mar", é grande conhecedor das histórias e das montanhas do Paraná.

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