– Vai pra casa João – O índio Guarani estava afogando as mágoas na cachaça, desconsolado – já bebeu pelo dia todo e ainda nem é meio dia!
– Ocê não entende Seu Diceu, ela adornô minha testa com chifres e todos na aldeia se riem de mim.
– Bobagem João, é coisa da tua cabeça. A Maria é boa moça e agora vocês tem uma criança pra cuidar. – foi expulsando o índio para fora da lanchonete – Chega de pinga por hoje João.
Levou o índio até a bicicleta encostada no guarda corpo da varanda e voltou para trás do balcão cuidar de seus afazeres, mas com o canto dos olhos estava atento ao movimento. Um bêbado chato era ruim para os negócios no domingo, quando a lanchonete ficava cheia de montanhistas. Muito pior num fim de feriado em que havia notícias de que os bombeiros procuravam por um grupo perdido no outro lado da serra. Talvez aparecessem por ali também apesar do forte cheiro de chuva.
O ar quente e seco prenunciava a tempestade que se formava do outro lado e não demoraria em vencer a serra. O vento já começava a levantar redemoinhos de poeira no pátio de estacionamento, soprando forte sem direção distinta. Naquela tarde o céu viria abaixo depois de quase um mês sem chuva. Diceu não queria estar no pêlo dos que estavam perdidos no mato.
O índio João até que tentou montar na magrela, mas precisou se contentar em empurrá-la morro acima. Teria muitos morros mais a enfrentar antes de chegar à aldeia e isto daria tempo para curar parte do pileque, mas seu ódio crescia a cada novo tombo na estrada. Era tudo culpa da Maria, aquela traidora, e principalmente do Matheus. Sua mente distorcida tecia planos para se vingar do Matheus, bateria nele até não sobrar nenhum dente.
Mas não sabia como separá-lo dos capangas e nem o que fazer depois para fugir da vingança. Subiu na bicicleta e até conseguiu dar umas pedaladas, mas caiu, vomitou as tripas e acabou adormecendo dentro da valeta na beira da estrada.
A Estrada dos Mananciais segue para o interior do sertão em paralelo a represa de Cayuguava de um lado e os picos da serra de outro. Chega as nascentes do Rio Iguaçu, nas grotas entre os morros da Mesa e o Negro onde ainda existem pequenas barragens e antigas tubulações que forneceram água a Curitiba em séculos passados.
João acordou molhado e com frio, mas nem um pouco mais sóbrio. Levantou cambaleante debaixo da chuva grossa com a água já enchendo a sarjeta. Os relâmpagos iluminavam o céu negro e o estourar dos trovões só aumentavam sua dor de cabeça, mas sem qualquer abrigo não lhe restavam alternativas. Seguia em frente cada vez mais irritado sem desviar das poças d’água.
O tempo e a chuva fria lentamente faziam o serviço para amenizar o pileque e finalmente conseguiu se equilibrar em cima da magrela. Viu um raio explodir sobre as pedras no Morro da Mesa e depois tremeu com o estrondo. Seu percurso era sinuoso e difícil na estrada lamacenta. Pouco se enxergava a frente e o vento frio encanava da represa para dificultar ainda mais seu parco equilíbrio.
Ainda distante estava a aldeia com todas as luzes acessas apesar do horário. A tempestade antecipava a escuridão da noite e os trovões silenciavam os cachorros, normalmente barulhentos. Havia muitos cachorros magros e cheios pústulas de mosca. Vermes por dentro e carrapatos por fora, se reproduziam muito e duravam pouco, mas eram necessários para manter os gambás e as onças pardas longe dos galinheiros.
A aldeia, de fundação recente, era composta de uma vintena de casebres e seus anexos espalhados pelo terreno natural. Casas de madeira sem sarrafos ou pau a pique, todas cobertas com fibrocimento ou velhas telhas francesas doadas pelos vizinhos. O piso de chão batido pouco isolava da umidade e os banheiros eram externos, de uso comunitário. Do século vinte tinham a luz elétrica, televisores, geladeiras e automóveis domingueiros, mas poucos em condições de rodagem e a moto ou a bicicleta eram os meios de transporte mais usual. O telefone celular começava a se disseminar mesmo com a falta de sinal na entrada do mato. Macacos e capivaras domesticadas dividiam o terreiro com os cachorros sarnentos e as galinhas.
Novos vícios vindos da cidade completavam os antigos. Índios que viviam nas favelas de Curitiba e Piraquara retornavam nos finais de semana com maconha e coisas piores. O cacique Matheus tinha muito trabalho para proteger sua comunidade dos perigos do mundo exterior. Nada podia fazer contra o fumo e o alcoolismo crônico, mas lutava arduamente contra as drogas pesadas e os cultos neopentecostais sempre a caça das almas de Tupã.
Matheus era temido pela unidade dos seus partidários e respeitado pela força dos argumentos. Andava sempre armado de revólver e não costumava engolir desaforos, mas era gentil e cordato com os amigos. Suspeitavam que estivesse envolvido com desmanche de automóveis em oficinas pouco honestas e se sabia de alguns rolos com a polícia.
Avesso às fofocas e bom apreciador de futebol e cerveja, tinha um fraco por mulher. Comentavam de muitas amantes nas favelas de Piraquara onde trabalhava, mas ninguém na aldeia sabia ao certo em quê e de onde vinha o dinheiro.
Se Maria e Matheus mantinham algum caso amoroso ninguém tinha certeza, mas desconfiavam bastante e o menino nascido há pouco mais de um ano e meio teimava em confirmar nas suas feições, desfazendo o preconceito de que todo índio era igual. A cada semana menos se parecia com o pai que desandou na bebedeira.
Um cambaleante João da Silva chegava à aldeia transformada num terrível lodaçal, empurrando a bicicleta debaixo de chuva com raios e trovões pelas costas. Arrastou-se até seu casebre na beirada do mato e abriu a porta com a delicadeza dos bêbados. Maria se encolheu no canto, junto à rede da criança.
Brigas, tapas, choro e bebedeiras tinham se tornado rotina na vida daquela mulher sempre apavorada ao final da tarde, quando o marido retornava. Mas dia a dia a violência aumentava e já temia pela vida da criança. Até os cachorros o hostilizavam ao chegar de pileque. Nunca deixava o menino sozinho com o pai e passava também a vigiá-lo durante a noite. Qualquer ruído a colocava em pânico mortal.
João atirou-se no banco de madeira ao lado do fogão praguejando contra a chuva e o frio. A resignada Maria se apressou em ajudá-lo a se desvencilhar das roupas molhadas, mas foi recebida com um murro no rosto.
– Vaca! Puta! – passou muito tempo na estrada remoendo seu ódio – Vá secar o teu amante, piranha maldita!
Levantou-se com energia redobrada e passou a espancá-la. Podiam-se ouvir seus gritos por toda a aldeia com o cessar dos trovões e os cachorros ficaram em polvorosa, latindo e uivando desesperadamente. A chuva diminuía de intensidade e a briga aumentava de volume.
A vizinha saiu de guarda chuva pela lama para bater na porta do cacique, desta vez a coisa parecia fora de controle. Matheus colocou as mãos na cabeça, depois pegou a espingarda e acompanhou a mulher até a porta do casal. Outros índios se juntaram a eles chamando por João e Maria, que não respondiam. Enfim arrombaram a porta.
Maria soluçava a um canto com o rosto deformado de tanta pancada e o menino chorava aterrorizado na rede de dormir. Do João nem sinal, o medo curou a bebedeira e fugiu pelos fundos da casa, se internando no meio do mato. Os homens ainda procuraram por ele nos galinheiros e nas garagens enquanto as mulheres tratavam dos ferimentos da pobre moça. Algumas até achavam a surra merecida diante das graves suspeitas, mas não podiam deixar de prestar sua solidariedade feminina para com a vítima.
Os homens retornaram depois de terminada a busca infrutífera pelos arredores da aldeia e vendo Maria cheia de hematomas, Matheus lhe colocou nas mãos a espingarda.
– Toma, se ele aparecer de novo é só apertar os dois gatilhos!
– Não posso – falou entre soluços – ele é o pai do meu filho.
– O pai do teu filho vai acabar matando você e a criança, faça o que tem de ser feito mulher!
Mais não disse e recolheu-se ainda tremendo de raiva para sua casa, trocar as roupas molhadas e se aquecer junto ao fogo. Os outros vizinhos, pouco a pouco, também fizeram o mesmo e no final só restaram Maria, o menino e a espingarda no casebre.
“Faça o que tem de ser feito Mulher!”
Gastou muito tempo arrumando a bagunça. Deitada na cama contemplava a escuridão com olhos vidrados no infinito. A tempestade retornou com força. Os relâmpagos iluminavam o aposento pelas frestas entre as tábuas e os trovões faziam seu coração tremer de medo. Os cães soaram o alerta e a porta se abriu de repente mostrando uma silhueta escura. Bumm, Bummm! Dois tiros de espingarda misturaram-se aos trovões.
A criança soluçava abafado no ambiente esfumaçado e o cheiro da pólvora se misturava ao doce odor do sangue. Surda com o estrondo, nada ouvia, nem o som da chuva incessante. Paralisada no tempo e no espaço deixou-se cair no vácuo até que novo trovão a despertou, pegou o menino e fugiu para a casa do Matheus.
– Deus do céu, eu matei, eu matei o João!
Os cães sumiram em meio aos casebres na escuridão. Com a lanterna iluminou o corpo caído de bruços no chão da cozinha.
– Quem é este cara?
Alguns passos atrás, Maria e a criança esperavam na chuva.
– Entre Maria, saia desta chuva! A vez do João ainda não chegou.
Olhou para fora e se certificou que a aldeia dormia tranqüila enquanto amainava a tempestade. Os trovões haviam encoberto o som dos disparos.
– Veja Maria, conhece este sujeito? – iluminou o rosto com a lanterna.
– Antes da chuva tinha helicóptero nas montanhas, podiam estar procurando alguém, mas não sei. Está morto?
Matheus revistou a mochila, encontrou os documentos, cartões, maquina fotográfica e o telefone celular desligado. Ficou com o dinheiro.
– Vamos precisar disto. Me dá uma coberta, atice o fogo e queime tudo que puder.
Maria obedecia no automático. Pelou o defunto e embrulhou no cobertor. Matheus com muito esforço jogou o peso sobre os ombros e saiu na chuva pelos fundos da casa, desaparecendo no mato. Andou por quase dois quilômetros pela estrada deserta até a última morada dos cães. Uma estreita fenda nas rochas onde jogavam os corpos dos bichos que morriam doentes.
-Aqui ninguém desconfiará do cheiro de carniça.
Passaram o resto da noite queimando roupas, equipamentos e até o cobertor. Limparam tudo e com o que sobrou encheram duas sacolas de supermercado.
– Faça as malas Maria, vou te levar pra cidade.
– Mas, o João?
– Ele se vira. Você não pode ficar aqui, vai por tudo a perder.
Partiram de carro ao amanhecer. Em Piraquara jogaram as sacolas numa lixeira de rua. Deixou Maria na casa de uma amiga numa favela de Curitiba e foi trabalhar na oficina.
Dentro da caverna dos cachorros o defunto acordou por instantes e viu dezenas de cintilantes olhos verdes na escuridão.
Continua no capítulo 6 – A TEMPESTADE