Quantas vezes escrevemos sobre mortes que não tenham sido de aventureiros como montanhistas, mergulhadores, pilotos ou lutadores? E que não sejam de seres humanos? Quase nunca. Este é o relato de duas mortes, de seres humildes, que até hoje assombram minha vida.
Caminho pelas estradinhas entre São Paulo e Minas. Estou na região de São Bento do Sapucaí, bastante visitada por mim devido às Pedras do Baú e Ana Chata. Esta última foi minha primeira trilha de montanha sozinho, num passado imemorial.
Saí bem cedo de São Bento, com aquela emocionante vista da Pedra do Baú, e subi rumo norte uma via pedregosa na Serra da Coimbra, para descer depois entre as Serras da Candelária e da Luminosa.
São estas formações que, ao abraçarem a vila de Luminosa, formam um arco de paredes à sua volta que torna tão estupendo aquele visual. Seus moradores contam que o vilarejo pertencia a São Paulo, mas Minas conseguiu tomá-lo e o mantém até hoje.
Luminosa é um distrito de Brazópolis, ela também uma cidade pequena. É exatamente pelo vão entre as serras que o vale se prolonga até esta cidade, pois nas demais direções só se alcança Luminosa por cima, descendo as encostas, como foi o meu caso.
Mas eu não havia ainda chegado ao vilarejo, caminhava pelo vale do Ribeirão Vargem Grande, já no comecinho da tarde. Havia uma mata à direita e, de repente, ouvi um grito abafado, talvez com os ouvidos da mente.
Era uma árvore, alta e reta, que era cortada naquele momento à beira do córrego. Curiosamente, mal me lembro de vê-la cair, logo em seguida estava no chão. Senti como era bárbara a ação do lenhador e como era terrível a morte desta criatura tão humilde. Carrego até hoje a perplexidade deste sacrifício inútil.
Não muito tempo depois, passava de carro à noite por Santo Antônio do Pinhal. É aquela vila logo abaixo de Campos do Jordão, onde o trenzinho que vem lá de cima para por alguns momentos. Era um feriado, iria pousar nas redondezas e levar alguns jovens à Pedra do Baú.
Santo Antônio era um local conhecido, havia passado muitos fins de semana lá. Sempre ficava no Rancho do Grilo – esse era o nome de seu antigo dono, que não cheguei a conhecer. Ele havia caído no seu primeiro voo de asa delta no Pico Agudo.
O Agudo era a principal atração da cidade. Montanha de fácil acesso, era debruçada sobre o Vale do Paraíba, com um grande desnível de mil metros. Isto a tornava um local privilegiado, com boas térmicas e belos visuais.
Numa noite amena levei lá Dona Ana, a viúva do Zé Grilo. Estava maravilhoso, com todas as luzes do vale criando uma realidade nova, como se o estivéssemos sobrevoando. Mas Dona Ana estava triste, não falou nada.
Percebi então que era a primeira vez que ela retornava ao local do acidente, depois de tantos anos. Hoje ela deixou a cidade, para tocar uma pousadinha na São Bento vizinha. A Pousada do Grilo, antes tão modesta, foi reformada, com lareiras, toldos e piscinas.
Mas só a conheci na sua versão anterior. Na verdade, eu ia lá para visitar um cachorro. Tinha má reputação, era considerado perigoso. Quando o conheci estava com bernes e ficava isolado num pátio. Pulei o muro, espremi os bernes e ficamos amigos Plug e eu para o resto da vida.
Sem que Dona Ana soubesse, ele sempre dormia no meu quarto. Já que ele não podia viajar, eu tinha o compromisso de visitá-lo a cada alguns meses. E durante anos, fizemos muitas coisas juntos: Plug era inteligente, leal e valente.
Então, naquela noite do feriado, eu estava quase deixando a cidade, quando o veículo à minha frente freou e uma suspeita me fez saltar do carro. A razão da freada era um cachorro atropelado – o meu amigo Plug!
Fui socorrê-lo, achando que logo estaria bem, mas ele não reagiu. Abraçado comigo, bufou uma única vez e senti que sua essência o abandonava como se fosse fumaça. Parece que ele esperou por mim para morrer aquela sua morte estúpida e covarde, causada por um artefato sem vida. Não o esqueço jamais; me tornei melhor por tê-lo conhecido.
Plug era um cachorro bonito e deve ter namorado bastante. Tempos depois de volta a Santo Antônio, soube que tivera um filho. Chamava-se Thor e pertencia a uma argentina que criava vários animais. Fui visitá-la e revi no filho as feições do meu amigo.
Ela quis me mostrar uma fonte d´água. Fui caminhando e todos os animais me seguiram, numa fila exata: o Thor, a galinha, a ovelha, a vaca. Parecia um mágico e humilde cortejo pela lembrança imemorial do Plug.