Mortes Humildes

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Quantas vezes escrevemos sobre mortes que não tenham sido de aventureiros como montanhistas, mergulhadores, pilotos ou lutadores? E que não sejam de seres humanos? Quase nunca. Este é o relato de duas mortes, de seres humildes, que até hoje assombram minha vida.

Caminho pelas estradinhas entre São Paulo e Minas. Estou na região de São Bento do Sapucaí, bastante visitada por mim devido às Pedras do Baú e Ana Chata. Esta última foi minha primeira trilha de montanha sozinho, num passado imemorial.

Saí bem cedo de São Bento, com aquela emocionante vista da Pedra do Baú, e subi rumo norte uma via pedregosa na Serra da Coimbra, para descer depois entre as Serras da Candelária e da Luminosa.

Pedra do Tatu em Luminosa, MG

São estas formações que, ao abraçarem a vila de Luminosa, formam um arco de paredes à sua volta que torna tão estupendo aquele visual. Seus moradores contam que o vilarejo pertencia a São Paulo, mas Minas conseguiu tomá-lo e o mantém até hoje.

Luminosa é um distrito de Brazópolis, ela também uma cidade pequena. É exatamente pelo vão entre as serras que o vale se prolonga até esta cidade, pois nas demais direções só se alcança Luminosa por cima, descendo as encostas, como foi o meu caso.

Quilombo, no Vale de Luminosa, MG (Fonte: Marcelo Carvalho)

Mas eu não havia ainda chegado ao vilarejo, caminhava pelo vale do Ribeirão Vargem Grande, já no comecinho da tarde. Havia uma mata à direita e, de repente, ouvi um grito abafado, talvez com os ouvidos da mente.

Era uma árvore, alta e reta, que era cortada naquele momento à beira do córrego. Curiosamente, mal me lembro de vê-la cair, logo em seguida estava no chão. Senti como era bárbara a ação do lenhador e como era terrível a morte desta criatura tão humilde. Carrego até hoje a perplexidade deste sacrifício inútil.

Vale de Luminosa, MG (Fonte: Divulgação)

Não muito tempo depois, passava de carro à noite por Santo Antônio do Pinhal. É aquela vila logo abaixo de Campos do Jordão, onde o trenzinho que vem lá de cima para por alguns momentos. Era um feriado, iria pousar nas redondezas e levar alguns jovens à Pedra do Baú.

Santo Antônio era um local conhecido, havia passado muitos fins de semana lá. Sempre ficava no Rancho do Grilo – esse era o nome de seu antigo dono, que não cheguei a conhecer. Ele havia caído no seu primeiro voo de asa delta no Pico Agudo.

O Agudo era a principal atração da cidade. Montanha de fácil acesso, era debruçada sobre o Vale do Paraíba, com um grande desnível de mil metros. Isto a tornava um local privilegiado, com boas térmicas e belos visuais.

Paisagem em Santo Antônio do Pinhal, SP

Numa noite amena levei lá Dona Ana, a viúva do Zé Grilo. Estava maravilhoso, com todas as luzes do vale criando uma realidade nova, como se o estivéssemos sobrevoando. Mas Dona Ana estava triste, não falou nada.

Percebi então que era a primeira vez que ela retornava ao local do acidente, depois de tantos anos. Hoje ela deixou a cidade, para tocar uma pousadinha na São Bento vizinha. A Pousada do Grilo, antes tão modesta, foi reformada, com lareiras, toldos e piscinas.

Mas só a conheci na sua versão anterior. Na verdade, eu ia lá para visitar um cachorro. Tinha má reputação, era considerado perigoso. Quando o conheci estava com bernes e ficava isolado num pátio. Pulei o muro, espremi os bernes e ficamos amigos Plug e eu para o resto da vida.

Panorâmica do Pico Agudo com Baú ao Fundo, S Antônio do Pinhal, SP (Fonte: Rodolfo Marcondes)

Sem que Dona Ana soubesse, ele sempre dormia no meu quarto. Já que ele não podia viajar, eu tinha o compromisso de visitá-lo a cada alguns meses. E durante anos, fizemos muitas coisas juntos: Plug era inteligente, leal e valente.

Então, naquela noite do feriado, eu estava quase deixando a cidade, quando o veículo à minha frente freou e uma suspeita me fez saltar do carro. A razão da freada era um cachorro atropelado – o meu amigo Plug!

Fui socorrê-lo, achando que logo estaria bem, mas ele não reagiu. Abraçado comigo, bufou uma única vez e senti que sua essência o abandonava como se fosse fumaça. Parece que ele esperou por mim para morrer aquela sua morte estúpida e covarde, causada por um artefato sem vida. Não o esqueço jamais; me tornei melhor por tê-lo conhecido.

Parapente Voando do Pico Agudo, S Antônio do Pinhal, SP (Fonte: youtube)

Plug era um cachorro bonito e deve ter namorado bastante. Tempos depois de volta a Santo Antônio, soube que tivera um filho. Chamava-se Thor e pertencia a uma argentina que criava vários animais. Fui visitá-la e revi no filho as feições do meu amigo.

Ela quis me mostrar uma fonte d´água. Fui caminhando e todos os animais me seguiram, numa fila exata: o Thor, a galinha, a ovelha, a vaca. Parecia um mágico e humilde cortejo pela lembrança imemorial do Plug.

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Sobre o autor

Nasci no Rio, vivo em São Paulo, mas meu lugar é em Minas. Fui casado algumas vezes e quase nunca fiquei solteiro. Meus três filhos vieram do primeiro casamento. Estudei engenharia e depois administração, e percebi que nenhuma delas seria o meu destino. Mas esta segunda carreira trouxe boa recompensa, então não a abandonei. Até que um dia, resultado do acaso e da curiosidade, encontrei na natureza a minha vocação. E, nela, de início principalmente as montanhas. Hoje, elas são acompanhadas por um grande interesse pelos ambientes naturais. Então, acho que me transformei naquela figura antiga e genérica do naturalista.

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