Leia antes os capítulos: 1 – A MARIA FUMAÇA, 2 – A CACHOEIRA DOURADA, 3 – A TRILHA, 4 – O SOCORRO e 5 – A ALDEIA
– Renan! Renan! – gritava Oscar.
– Renan responda, por favor. – choramingava Anna.
Começava a amanhecer e o capim já estava todo amassado pela busca desesperada que faziam a Renan desde que acordaram e não o encontraram na barraca. A neblina continuava igualmente densa, mas às vezes, no alto, abria um buraco por onde se via um pedaço do céu. Aldo assistia a tudo com cara de paisagem.
– Aldo, você sabe de alguma coisa, onde está o Renan?
– Não sei de nada, cara! De madrugada ele saiu da barraca e ficou gritando feito doido pelo campo, depois ficou quieto e tudo voltou ao normal.
– Normal uma ova, seu merda, porque você não levantou e foi ver o que estava acontecendo? – e partiu pra porrada.
– Calma gente! – interveio Anna – Brigar agora não resolve nada.
– Sei lá qual é a treta de vocês? O cara estava maluco, violento e porque vocês que são amigos dele não levantaram?
– Ache ele Aldo, você sabe seguir rastros. – Anna chora.
– Vocês acham que sou apache? Não se enxerga cinco metros e o capim está todo amassado! Tem rastro para todo lado e já se passou três horas ou mais. O negócio é sair daqui e chamar os bombeiros num lugar com sinal de celular, se até lá não tivermos notícias dele.
– E se ele voltar? E se nós voltássemos todos?
– Já teria voltado se quisesse e nem sabemos pra que lado foi. Podemos deixar marcas para que nos siga e em Curitiba teremos mais recursos.
Desmontaram acampamento e partiram em jejum, quebrando galhos e folhas na passagem. O terreno desce em meio à vegetação densa até que adentram um inferno composto por imensas pedras debaixo da copa das árvores. Por entre as pedras se abrem fossos de profundidade indeterminada, alguns grandes o suficiente para engolir um automóvel e outros sob medida para quebrar uma perna. Muitos tão limpos e lisos quanto profundos e os mais perigosos cobertos por galhos secos e folhas mortas.
Escalam pedras e percorrem os labirintos em zig-zag com alguns tombos e muitas esfoladuras, sempre descendo.
A neblina ficava para trás, não penetrava na floresta e já se percebia que o sol a dissolvia no alto das montanhas. Tangenciaram uma encosta de montanha que subia a esquerda ainda caminhando sobre um extenso terreno dominado por profundas gretas. Armadilhas cobertas por finas camadas de sujeira. Oscar despencou numa delas e foi salvo pela mochila que engatou num galho. Esfolou-se todo e precisou de ajuda para escapar.
– Estão ouvindo? Podem estar nos procurando.
– Minha mãe é bem capaz de chamar a cavalaria se desconfiar que estou aqui!
– Só se acharem que nos afogamos. Estão passando sobre a represa.
Perceberam um amplo vale seco se abrindo a sudoeste. Anna recorria cada vez mais ao Aldo para ajudá-la a escalar as pedras, transpor as gretas e retirar os espinhos que reiteradamente lhe feriam as mãos. Oscar que não conseguia digerir a discussão no acampamento se contorcia de ciúmes e mais afundava em ressentimentos.
A cada passo ficava mais azedo e com isto mais afastava Anna. A exagerada cortesia de Aldo o irritava ao extremo e constantemente explodia em palavrões contra as pedras, as raízes e ao vento que sacudia a copas das árvores derrubando folhas, gravetos e aranhas.
Viam que o sol estava forte, mas o vento se tornava infernal acima das árvores. O vale ascendente começou a se estreitar, espremido entre duas encostas próximas e quando mudou a inclinação para descendente subiram o morro à esquerda depois de consultar o mapa.
A vegetação se torna mais baixa e densa com a aproximação do cume, surgem os caraguatás que cortam como navalhas e perfuram como punhais, precisam lutar contra as moitas de taquaras que amarram e imobilizam.
Nos campos do cume, as lufadas de vento os quer varrer para o precipício. Sobem engatinhando, com mãos e joelhos na grama e são tomados de pavor ao contemplar o horizonte. Uma barreira de nuvens negras, maciça como uma parede fecha todo o quadrante sul recheada com ruidosos flashes de luz. Aproxima-se tratorando vales e montanhas.
A frente um selado povoado de macega e caraguatás, depois outro morro mais alto e desprotegido antes de alcançar a segurança das árvores na encosta oposta. Correm para o selado desafiando a vegetação para ressurgir do outro lado com braços e pernas dilacerados pelos caraguatás, mas não há tempo para lamentações. Sobem a encosta com a tempestade nos calcanhares, de joelhos e descem a outra face aos tropeços.
Uma explosão de luz e som os atira com o rosto na terra. O cheiro do ozônio contamina o ar e a vegetação lhes impõe pequenos choques elétricos na pele nua. Um raio acabara de cair no cume da montanha onde passaram. O chão ainda fumegava quando se abrigaram debaixo das árvores para recuperar o fôlego. Escaparam por segundos da morte certa.
– Merda! Pra mim chega desta bosta! – Oscar chega ao limite – Não agüento mais esta tortura.
– Vai fazer o quê? – Anna se irrita – Vai chorar? Vai chamar a mamãe?
– Não me encha o saco, sua, sua…
– Sua o quê? Quem tem medo do mundo atrai todo tipo de mau agouro.
– Quer dizer que minhas atitudes provocaram toda esta desgraça?
E a discussão foi interrompida pelo aguaceiro gelado que se seguiu. Imediatamente sacaram os anorakes e trataram de proteger tudo que havia no interior das mochilas com sacos plásticos. Voltaram à civilidade depois de encharcados até os ossos.
– Como se escapa daqui Aldo? – perguntou Oscar.
– O rumo é sempre sudoeste, por cima das montanhas.
– Mas não tem outra opção melhor?
– Sei que pro sul é um buraco dos infernos e para o norte tem a Estrada dos Mananciais e a represa, mas nem tenho idéia da distância e muito menos da dificuldade. Se alguém já desceu por aí nunca relatou.
– Como assim? Posso ver o mapa?
– Nesta chuva não, mas nem precisa. A estrada segue paralela a serra quase até o Morro do Cadeado. Não tem como errar, é só descer, mas chegar nela vivo são outros quinhentos e depois tem toda a estrada para andar sem a proteção das árvores. Pode levar um raio nos chifres.
Aldo não deveria ter falado em chifres, Oscar entendeu como provocação. Sentia-se fraco e humilhado num ambiente hostil que não dominava. Sempre foi o rei da balada com carro do ano, papai poderoso, i-phone e viagens a Disney. Via-se agora como piá de prédio enquanto Anna arrastava as asas para um macho alfa. Precisava mudar o jogo, se livrar do Aldo. A estrada significava civilização e o social era seu ambiente natural. Alugaria ou compraria o carro velho de algum caboclo, até carroça serviria nesta situação.
– Anna vamos descer para a estrada. – decidiu-se enfim.
– Vai você! Não ouviu o que o Aldo explicou?
– Eu vou para a estrada e você vai comigo sem discussão!
– Nem fodendo Oscar! Não estou maluca de sair sozinha com você neste mato.
– O Aldo vem também.
– Opa, Tô fora camarada! Tem mais duas montanhas que nunca andei, mas já ouvi muitas histórias e outras duas que conheço bem. Não vou trocar o certo pelo duvidoso e nem imagino as pirambas que tem aí em baixo.
– Vou sozinho para a estrada se ninguém me acompanhar.
– Nem pense Oscar. De merda já chega o que fez o Renan lá atrás. Ninguém precisa de dois perdidos neste matagal.
E outro raio explodiu no cume do Mesa, a montanha em frente.
– É pra lá que vocês vão? Quero mais é que se fodam, seus filhos da… – e calou-se.
– Não podemos te amarrar numa árvore Oscar, mas descer aí é fodeção na certa.
– Foda-se palhaço, espero vocês em casa tomando chocolate quente. Tchau!
E partiu debaixo de chuva grossa. Em instantes desapareceu no bosque sem deixar vestígios. De nada adiantou os protestos da Anna e nem que quisessem poderiam segui-lo. A água já corria pela superfície do terreno e apagava os rastros. Raios e trovões disputavam o céu e a mata estava mergulhada na semi escuridão das tempestades. Só restava seguir adiante e rezar para tudo terminar bem.
O selado vai se dividindo em múltiplos e profundos vales, todos eles inundados e tomados por forte correnteza. Oscar estava furioso com a situação e principalmente com a namorada que o havia preterido, escorregava nas pedras lisas e não foram poucos os tombos. Para escapar das canhadas inundadas se via obrigado a escalar as cristas acidentadas em meio ao barro e aos espinhos.
A raiva não é boa conselheira e não demorou para se meter em encrenca pesada, escorregava por encostas que não tinha capacidade para voltar a escalar e as pedras aumentavam de tamanho formando cachoeiras medonhas.
A tempestade corria solta com os relâmpagos intermitentes iluminando a mata seguidos por trovões ensurdecedores. A ventania derrubava árvores numa distância indeterminada e os grossos pingos da chuva o bombardeavam juntamente com folhas e outros detritos. A situação se tornava desesperadora com a proximidade da noite e a mata escura o obrigou a ligar a lanterna.
Lutou incansavelmente contra os elementos até diminuir a chuva e os raios cessarem quase por completo. Ganhava uma pequena trégua da tempestade, mas então bateu a cabeça num tronco e trincou a carapaça impermeável da head lamp. A água fez seu serviço quando alcançou os circuitos e ficou no escuro, sentado na lama, maldizendo seu destino.
Levou uma eternidade para dominar o pânico até seus olhos se acostumarem à escuridão. Olhando para o vazio percebeu um brilho ainda muito distante por entre o movimento da folhagem e com enorme esforço começou a se arrastar naquela direção. Tropeçava, escorregava e agarrava qualquer coisa ao alcance das mãos, que sangravam dilaceradas por pedras afiadas e espinhos pontiagudos.
Muito abaixo os brilhos se multiplicavam e reforçava suas esperanças de encontrar algum sítio. Descia cambaleante pela encosta barrenta já não muito inclinada e finalmente, do alto, identificou alguns casebres e postes. Depois distinguiu um uivo triste e o ladrar amedrontado dos cães pouco antes da tempestade recomeçar despejando novos raios e trovões. Talvez uma vila ou bairro afastado e seu coração pulava de alegria, finalmente havia vencido.
– Isto mesmo chuva, raios e trovões! Castiguem aqueles dois filhos da puta lá em cima. Que se fodam os palhaços!
O frio desapareceu de sua mente, a água escorrendo por dentro de suas roupas encharcadas não o incomodava mais, os tombos não podiam lhe machucar mais do que já estava ferido e a dor desaparecia por completo, anestesiada pelo otimismo. Caminhava numa estrada e a felicidade inundava sua alma. Sentia-se vivo novamente.
– Estou salvo! Estou salvo!
Continua no capítulo 7 – O ACAMPAMENTO FANTASMA