A Trilha do Carteiro

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Reza a lenda que havia um carteiro que – na condição de informante da Inconfidência Mineira – cruzava a imponente Serra de São José saindo da antiga vila de São José del Rei, atual Tiradentes, pra levar correspondências pro outro lado da serra, mas que terminou sendo morto numa emboscada armada por tropas da Coroa Portuguesa.

Verdade ou não, o fato é que o trajeto desse desafortunado insurgente deu origem a uma caminhada que se tornou clássica na charmosa cidade mineira, a “Trilha do Carteiro”. E foi essa pernada, que mistura história e natureza, que conhecemos num belo dia de sol.

Chegando em Tiradentes

Não bastasse, emendamos a “Travessia dos Mirantes”, até o Mangue, totalizando assim um puxado circuito de 16 kms, mas que recompensa com altos “visus”, muitas quedas e direito a refrescantes banhos em piscinas douradas e poços cor de coca-cola.

Distando apenas 16 km de São João del Rei pela BR-265, a viagem de “busão” até Tiradentes foi até bem mais rápida que o previsto. Saltamos então na minúscula rodoviária da simpática cidade mineira por volta das 8:30 hr, dando início a nossa chinelada a exatos 890 m de altitude.

O dia começava radiante e sem nenhum vestígio de nebulosidade no firmamento, com promessas de muito calor no decorrer do período. Enquanto isso, o sol emergia aos poucos sobre a morraria a leste, iluminando a enorme muralha de quartzito que guarda Tiradentes a seus pés.

Pois bem, após uma rápida passada no Chafariz São José (que nos passara despercebido em nossa visita á cidade, o dia anterior), nos pirulitamos pro norte ganhando uma ladeira de calçamento irregular em frente a rodoviária, a Rua Nicolau Panzera.

No caminho, pausa pra fotos da Igreja São Francisco de Paula e da bela paisagem descortinada do alto da colina onde está alocada. Dali basta se manter sempre pro norte ainda nessa via até sua última bifurcação, onde tomamos a Rua Idilberto de Andrade até o final, já no bairro Cascalho.

Em caso de dúvida é só acompanhar a sinalização “Pousada da Trilha” ou perguntar pela vereda do carteiro, informação que qualquer tiradentino sabe dar.

Assim, ás 9:20 pisamos no início da trilha que leva ao alto da serra, onde três placas dividem a informação necessária sobre a área de preservação ambiental que será percorrida, o “Refúgio Estadual de Vida Silvestre Libélulas de São José” e outros avisos de cunho ambiental.

inicio da trilha

Mergulhamos então no frescor da mata fechada, que inicialmente se mostra densa, úmida e frondosa, principalmente pelas proximidade do manso Córrego Santo Antonio, que perfuma o ambiente com lírios-do-brejo e não demora em ser cruzado por meio de um pequeno pontilhão de madeira.

Na outra margem a vereda não só abandona a espessa floresta como a ganhar forte declividade; surgem degraus no chão de terra em meio a mata, que por sua vez reduz seu tamanho a chaparrais de samambaias e muita vegetação arbustiva.

A ascensão é tranquila e compassada, primeiro na direção leste mas virando lentamente em direção á serra, isto é, pro norte. Na sequência o caminho suaviza, ganhando altura de forma imperceptível, se estreita e alarga várias vezes, assim como alterna trechos agradavelmente florestados com outros mais descampados, exibindo o paredão rochoso da serra cada vez mais próximo.

Muralha da Serra de São José

Depois de um tempo a trilha vira pra leste, agora em nível, cruza uma bela florestinha e intercepta a “Calçada dos Escravos” as 10 hrs, na cota dos 1050 m. Esta via é um antigo caminho tropeiro calçado de pedras irregulares, construído por escravos no séc. XVIII pra facilitar a circulação de mercadoria entre Tiradentes e São João del Rei, que aquela altura já era bem desenvolvida devido á corrida do ouro.

E este também era o caminho utilizado pelo tal carteiro da introdução, fosse na distribuição de correspondências ou alimentar fofocas entre os rebeldes insurgentes dos povoados ao norte da serra.

A simpática calçada via começa então a subir a encosta serrana na diagonal, agora pra oeste, felizmente no frescor da sombra. Mas depois de um tempo não demora pra emergir nas partes mais altas da serra, passando por trechos onde existem gretas, lapas e lugares a margem da via onde a rocha foi visivelmente trabalhada a mão.

Calçada dos Escravos

São quase 10:30 hrs e 4 kms caminhados desde o início quando pisamos no primeiro mirante do dia, do lado de uma das várias placas (que posteriormente encontramos) sinalizando os atrativos da serra. Aqui a Lau fez uma breve parada pra descansar e tomar ar, enquanto eu apreciava a bela paisagem ali descortinada que, no alto dos 1140 m, que privilegiava os contrafortes da serra enquanto Tiradentes aparecia pequenina, ao sul.

Retomamos então a chinelada e nos pirulitamos pro alto da serra num piscar de olhos, onde o cenário a nossa volta muda de forma radical: o chão de terra dá lugar a um carreiro claro de quatzito, o arvoredo some cedendo espaço a arbustos de galhos retorcidos e capim ralo, entremeados de lajedos e muitos afloramentos rochosos pontiagudos, que é a paisagem característica do Espinhaço.

tudo bem sinalizado

E assim, acompanhando a sinalização presente, fomos visitar os atrativos daquele contraforte serrano, ainda palmilhando o trajeto oficial da “Trilha do Carteiro”, sempre pro norte, que segue sinuoso em meio a muitas formações rochosas pitorescas.

O caminho então aparenta findar num mirante, a beira de um íngreme penhasco na cota dos 1100 m, onde se tem uma bela panorâmica dos vales alocados no outro lado da serra. Mas procurando pela esquerda o carreiro de quartzito reaparece e começa a perder suavemente altitude em dois largos ziguezagues.

Foi ali que tropeçamos com a tal “Cruz do Carteiro”, as 10:45 hrs, que se resume a um decrépito cruzeiro de madeira cercado dum amontoado de pedras empilhadas, onde reza a lenda foi o lugar onde o finado mensageiro foi emboscado enquanto outros afirmam ali ser seu túmulo.

Cruz do Carteiro

Há quem diga que quem faz um pedido e coloca uma pedra sobre o túmulo tem o seu desejo realizado. Será mesmo isso ou a antiga superstição fúnebre de aliviar a alma do finado? Só o carteiro rebelde sabe.

Ainda descendo pela mesma vereda serra abaixo, logo se alcança a parte alta da “Cachoeira do Carteiro”, que nada mais é a sucessão das pequenas quedas formadas pelas cabeceiras do Córrego do Riacho, onde o tal mensageiro da lenda costumava abastecer, apesar de também ser conhecida por “Cachu do Gamelão”.

No entanto, o que estas cascatas carecem de altura é compensado pela beleza impar de suas piscinas e banheiras naturais de coloração acobreada, a semelhança da Serra do Cipó e Chapada Diamantina. Isto se deve ao acúmulo de matéria orgânica (folhas, galhos, etc) em decomposição trazida pela chuva e á ausência de ferro nas rochas.

Logicamente que foi ali mesmo, no calor das 11 hrs, que nos brindamos com um merecido descanso e direito a refrescante banho naquelas jacuzzis cor de coca-cola!!!!

piscina cor de coca-cola

Depois deste momento de relax e descontração, fomos rapidamente conhecer a parte baixa da queda – que se resume a um belo poço de cor dourada – e retornamos ao alto da serra afim de seguir por sua crista na direção sudoeste, agora pela “Trilha dos Mirantes”.

piscinão dourado do Córrego do Riacho

Dessa forma fomos avançando tranquilamente pela cumieira serrana sem grande variação de altitude, por meio de uma vereda óbvia e inconfundível.

O trecho inicial se mostra mais acidentado e escarpado, desviando de formações geológicas bastante peculiares e demandando “escalaminhada” fácil, mas depois a pernada suaviza em nível por amplos e largos platôs descampados. O calor estava bem forte naquele horário e vento que é bom, nada.

Ás 13:45 hrs alcançamos o chamado “Mirante Central”, um belo belvedere rochoso que divide espaço com a única árvore presente no topo da serra, cuja sombra já estava sendo desfrutada por um trio de andarilhos. “Dá pra entrar nessa sombra aí?”, perguntei brincando á galera, que respondeu afirmativamente.

cores do Espinhaço

O trio se resumia a um casal paulista guiado por um tiradentino credenciado, com o qual tive boa parte das informações descritas neste relato, inclusive de qual rota seria melhor tomar a partir dali. Ali fizemos mais uma breve parada pra descanso, bebericar goles de água e mastigar o delicioso lanche trazido na mochila.

A vista dali do alto dos 1260 m, á beira de um íngreme penhasco, é generosa em largos horizontes mas se destaca principalmente por escancarar toda a cidade de Tiradentes bem á nossa frente, espalhada logo abaixo! Era possível identificar todas as igrejas e lugares históricos sob aquela perspectiva privilegiada, como se fosse uma maquete repleta de detalhes.

visu de Tiradentes, do Mirante Central

Descansados, nos despedimos do pessoal e prosseguimos nossa pernada pra sudoeste. Pois bem, daqui a trilha se bifurca e, ignorando o ramo da direita que ainda se mantém no alto (porém, pelo meio do platô e perdendo altitude suavemente), tomamos a vertente da esquerda que é a tal trilha que bordeja a íngreme encosta sul da serra.

E assim foi. A vereda se manteve na cumieira inicialmente cruzando amplos descampados forrados de capim dançando ao vento e com suaves lombadas serranas, mas depois de um tempo o terreno mostrou-se mais acidentado, inclusive com eventuais escalaminhadas em meio ás pedras. Independente do trajeto, a vista ao sul exibia a toda hora Tiradentes de um ângulo diferenciado.

andando pela crista da serra

E assim sempre em ritmo constante, e após cruzar um campo mais nivelado, chegamos no que nos pareceu final da linha pela cumieira, uma vez que já não havia mais pra onde ir. Ao contrário, do lado dum trio de pitorescas rochas que o pessoal chama de “Pedra do Dromedário” (da qual não vi semelhança alguma com o bicho), descortina-se um fundo platô cercado pelas montanhas desgarradas da serra. Uma paisagem que emula uma versão menor do “Vale do Ruah”, na Serra Fina, porém nos 1154 m de altitude.

Daqui não dava pra prosseguir no sentido da crista devido ao penhasco abrupto despencando á nossa frente, mas procurando o rabicho de trilha encontrei o dita cujo saindo, de forma bem discreta, á direita da supracitada pedra camelídea. Ufa!

Pedra do Dromedário

E assim começamos a descer da crista por uma trilha bem íngreme – e repleta de pedras soltas – que demandou atenção redobrada da Lau, onde perdemos num piscar de olhos mais de 100 m de altitude!

Mas uma vez na horizontalidade do platô a vereda suavizou e a chinelada tornou-se mais amena novamente. Ali cruzamos um correguinho e tropeçamos num entroncamento de veredas, devidamente assinaladas: a que vinha do norte, de Águas Santas; a outra vereda que vinha do alto da serra paralela á nossa, mas com menor desnível; e a que provinha de Mangue/Bom Despacho, que foi á qual nos agarramos, agora tocando na direção sul.

platozão do Mangue

Não andamos sequer 200 m do cruzamento e pisamos na parte alta do complexo de quedas conhecido como “Cachu do Mangue”, onde o córrego do mesmo nome despenca em várias quedas e forma vários balneários naturebas escalonados conforme segue seu curso, serra abaixo, pra depois desaguar no Rio das Mortes.

cachu do Mangue

O celular marcava exatas 15:40 hrs (e 12 km percorridos!) e ali mesmo, na cota dos 1000 m, tivemos mais um demorado pit-stop pra descanso e banho refrescante nas piscinas de água cristalina represadas na parte alta. O sol e o calor nos cozinhava lentamente e aquela parada foi mais que bem vinda naquele horário. Vale mencionar que aqui já se começa a ver novamente o trânsito de mais visitantes desfrutando das quedas (e nem todos com consciência ambiental), sinal da relativa proximidade do final do nosso rolê.

Revigorados e bem dispostos, mastigamos o restante do lanche e bebemos todo nosso cantil, pra só então começar a descer o restante da trilha que nos faltava, acompanhando o curso do rio a distância. A vereda tornou-se novamente calçada de pedras e passa pela entrada de vários caminhos que levam a aprazíveis remansos naturebas, inclusive á queda que nomina todo o complexo, que não passa dos 3 m de altura mas forma uma bela piscina que reluz os tons dourados daquele final tarde.

Não demora pra chegar noutra bifurcação bem sinalizada, onde ignoramos o caminho da direita, que se mantem do lado do córrego na direção sudoeste e termina levando á Cachu Bom Despacho, situada a margem da Estrada Real que, apinhada de gente e distante de Tiradentes, mostrou-se fora de mão pra nós.

Ao invés disso tomamos o ramo da esquerda e a vereda logo se afastou do córrego tocando pra sudeste, sentido Pacu, perdendo o resto de atitude em meio a uma vereda tremendamente erodida, que vez ou outra permite contato visual com Tiradentes, cada vez mais próxima.

O trecho final, mais nivelado, se dá no frescor da mata fechada pra finalmente nos largar a margem da Estrada Real, bem do lado da cidade. Dali até o Largo das Forras foi um piscar de olhos, passando em meio ao bonito casario colonial e as belas Igrejas da Santíssima Trindade e a Matriz de Santo Antônio.

Horário? Quase 17 hrs, tempo suficiente pra embarcar no latão de volta a São João del Rei, mas não sem antes garantir latões de cerveja pra bebericar durante a viagem.

Em tempo, a “Trilha do Carteiro” é apenas uma das várias caminhadas passíveis de ser feita na respeitável Serra de São José, enorme muralha de quartzito que separa Tiradentes e São João del Rei. Pela sua composição compacta, seu formato linear e desprovida de mata mais agreste, é possivel chinelar pra todas as direções percorrendo altas ou baixas distâncias, onde a preguiça parece ser o único obstáculo real.

As possibilidades são várias, seja pra Santa Cruz de Minas, Águas Santas, Coronel Xavier Chaves, Prados ou Bichinhos, mas desde que o tempo colabore uma vez que estando bastante enevoado demanda, no mínimo, o uso da boa e velha bússola.

Outra coisa importante é a escassez de água por toda cumieira, pois ela se concentra nas nascentes do setor oeste da serra. Mas aí basta fazer como o antigo carteiro da lenda: abastecer ou simplesmente curtir as piscinas cor de coca-cola – alocadas estrategicamente no meio do espigão – dessa simpática vereda que mescla a história de tempos de insurgência e a natureza tipica do Espinhaço.

Confira outros relatos de Jorge Soto: https://altamontanha.com/author/jorge/

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Sobre o autor

Jorge Soto é mochileiro, trilheiro e montanhista desde 1993. Natural de Santiago, Chile, reside atualmente em São Paulo. Designer e ilustrador por profissão, ele adora trilhar por lugares inusitados bem próximos da urbe e disponibilizar as informações á comunidade outdoor.

6 Comentários

  1. Getulio Vogetta em

    Grande Jorge Soto, sempre nos brindando com bons relatos de lugares bacanas!
    Boas lembranças dessa região!
    Forte abraço ao casal.

  2. Só em ler me senti nesta longa e admirável trilha. Foi uma leitura( apesar de grande e cheia de detalhes) que não consegui parar. Viajei!

  3. Fiz hoje e somente a noite, li seu relato o que me fez feliz pela esclarecedora narrativa. Parabéns e que venham mais desafios

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