COCHAMO: Escalada e Aventura no Paraíso das Grandes Paredes

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No verão de 2008 passei 50 dias na patagônia Chilena perambulando pelo vale do rio Cochamo. Neste tempo vi apenas 20 pessoas e escalei com metade delas. Entrei em vias como Bienvenidos a mi Insominio (6 VIIc E3 D4/D5 910m) no Cerro Trinidad Norte e muitas outras. Abri seis vias em estilo tradicional, sendo duas com mais de 10 enfiadas. A mata exuberante e os rios cristalinos são um convite à parte.


Vindo de Chaltén encontrei duas figuras perdidas no Frey. Um chileno (Cláudio), que adorava tocar gaita e arranhar um blues no violão, e uma californiana (Josy) forte pra diabo e freqüentadora assídua de Yosemite.&nbsp, Os dois adoravam off width e entramos em quase todos do Frey. Na barraca, comentávamos as peripécias feitas nas fendas saboreando pastas com vinhos chilenos.

Cláudio, com um grande sorriso estampado no rosto, começou a descrever o local onde morava. Falou do vulcão Osorno, de Puerto Montt e de Cochamo. Quando ele mostrou a revista Escalando (Chile) com fotos de Cochamo, ficamos vibrando de emoção e partimos em seguida para Osorno.

Chegando na casa de Cláudio, alugamos uma camioneta e partimos para o rústico povoado de Cochamo. Este pueblito fica a beira mar e não aparenta ter rocha nenhuma, só vegetação e muito marisco. Pusemos as mega mochilas nas costas, enfiamos a cara na trilha e seguimos vale acima. Ao longo do caminho, cruzamos rios e lagos paradisíacos e as pedras começaram a descortinar-se detrás da densa floresta.

Depois de umas 4 horas de lama, rios e muita vegetação, chegamos ao encantador camping do Daniel e da Silvina. Dois personagens que resolveram morar lá no paraíso das grandes pedras, dos enormes pedregulhos, das imensas paredes, do mar de granito, dos pontões de rocha que rasgam o céu, do… Yosemite Sulamericano! Aiaiai, que perjúria. Até parece que na gringolândia tem mais pedra?!?

Pra ter uma noção, a parede mais próxima do camping é o do Cerro La Junta (20 minutos de caminhada). Quando se olha da barraca, parece que tem uns 300m. Mas quando você pergunta pelas vias desta parede, te dizem que tem mais de 16 cordadas cheias (700m). Daí cai à ficha e você olha pro lado e vê que tem pedras muito maiores e em grande quantidade. A garganta seca e os dedos suam…

Escalamos vias como a clássica Camp Farm (6 VIIc 400m) e algumas fendas menores na parede da Zebra. Como estávamos em três as coisas iam devagar e na maior brincadeira. Entre pizzas e cervejas no refúgio, conheci o Nacho. Por coincidência, ele era o editor da revista Escalando. Depois de uns tragos ele me fez uma proposta indecorosa:

– Vamos abrir uma via amanhã?

Respondi entusiasmado.

– Só se for bem cedinho.

Juntamos as tralhas e subimos o Vale do Anfiteatro. Foram 9 horas de pura ralação. Trepa mato difícil, passagens em rocha molhada perto de abismos, vegetação espinhenta, Alerces milenares e uma mochila de 140 litros na lombar.

Chegamos no bivac e ficamos impressionados pela quantidade de rocha ao nosso redor. Tinha umas sete paredes de uns 400m e duas de uns 700m com pouquíssimas vias. A parede mais compacta e que apresentava sistemas de fendas perfeitas, era a tal da escolhida por Nacho. Esta parede tem textura de mármore polido e a luz solar reflete com num espelho, daí deram o nome de El Espejo.

Pra esquentar e familiarizarmos melhor com a rocha, escalamos a arrojada via Excelente mi Teniente (6 VIIc 500m). Esta é pura fenda, 97% em móvel. Fomos pra galera…

Descansamos um dia e ficamos analisando a futura linha a ser escalada. Arrumamos as coisas e partimos às quatro da madruga. Andamos uns 20 minutos pelo pedreiro que sai na direção leste do bivac e chegamos na base de um grande diedro. Nacho abriu as três primeiras enfiadas (6+) colocando apenas uma chapinha (8″). Nesta parte, a via passa por várias fendas pequenas e por lances de placa, e ficam ao lado de um diedro negativo de mais de 100m.

Juntei os móveis e iniciei a quarta enfiada. Logo no início, me detive com uma fendinha (60) suja e comecei o entretido e famosíssimo processo de limpar a fenda com o saca nut em busca de um pequeno espaço, entre raízes e terra, para pôr um móvel meia boca. Segui adiante por fendas perfeitas de dedo (5+) e passos de placa delicados, terminei a enfiada depois de um tetinho que protegi laçando uma pequena árvore, pobre alerce! Bati duas chapas e chamei Nacho, que saiu rasgando para terminar a tortuosa quinta cordada (5+). Quando cheguei na parada vi um diedro perfeito e uma fenda frontal cortada a lazer.&nbsp, Bati duas chapinhas no crux (7b) e emendei na fenda perfeita (5+). Nacho seguiu mais 50m (60) de fenda e placa até o pôr do sol.

Descemos armando os rapéis e chegamos na barraca as duas da madruga. Descansamos um dia e retornamos cedinho. Escalamos o que havia sido conquistado e Nacho assumiu a ponta. Abriu um diedro de 5+ e me chamou. Segui por lances negativos de placa e contornei a aresta à direita do diedro. Bati duas chapas e segui por fendas perfeitas e tetos (8a) até a parada. Finalmente podíamos avistar o cume.

Escalamos mais uns 100m bem fáceis (40) e chegamos no cume. Comemoramos tomando água das poças que encontramos e descemos batendo os rapéis. Terminamos a jornada as quatro da manhã. Exaustos e querendo umas pizzas, descemos pro refúgio.

Neste ínterim, Cláudio e Josy foram embora e eu fiquei na procura de algum maluco pra escalar, e não é que encontro um chegado que eu havia conhecido no Frey no ano anterior de nome Wintersong!? Abrimos mais cinco fendas perfeitas no alucinante setor Matelândia com outro casal de amigos das antigas (Nachorad e Majo). Curtimos um montão. Escalamos o elegante El Gendarme (7a 250m) no Trinidad Norte e a famigerada Mister M (5+ 500m) na Pedra do Gorila. Nestes dias o eclipse lunar deu um ambiente monstruoso para Cochamo. Saímos das barracas e todos se reuniram pra curtir a vibração da natureza em harmonia. Eram espanhóis, americanos, alemães, brasuca (eu), chilenos e argentinos assando pizzas e falando das vias abertas e de lugares inimagináveis.

Desci pro camping, e como uma pervertida, arrumei outro parceiro (JB) com vontade de abrir uma via na Pedra do Elefante. Esta empreitada durou três semanas. Choveu muito e a linha escolhida era exigente, as fendas eram de rara beleza e muito físicas (8b). Cansado da rotina de ir pra pedra, jumarear, limpar fendas, conquistar e bater chapas, resolvemos escalar o Trinidad Norte pela via Bienvenidos a mi Insominio (6+ VIIc E3 910m). Do nada, aparece Nicolas Gutiérrez, um chileno que havia conhecido em Chaltén, com sangue nos olhos. Saímos as 8 da matina e chegamos no cume as 16hs.&nbsp, Do cume se avista o Cerro Tronador, o Frey e um mar de pedras a seus pés. As 19hs retornamos pro bivac. Cara, esta via é imperdível! Ela sai, literalmente, da porta da barraca e segue por diedros, chaminés, fendas de meio corpo, placas e mais fendas por 900m de granito de boa qualidade.

Já meio cansado da viagem e com saudades de casa, resolvemos dar um último pega na via do Elefante pra encerrarmos o assunto de vez. Arrumamos as coisas e fomos na fúria. Escalamos as 10 primeiras cordadas rapidamente e chegamos com tudo pra bivacar dois dias num platôzinho aconchegante. Foi quando veio uma tempestade daquelas e jogou nosso moral lá no fundo do vale. Molhados e bem derrubados, descemos pro refúgio e, para nossa surpresa, havia dois chivos (carneiro) sendo assados pelos gaúchos do local. Uau, nunca comi tanta carne gordurosa junto com vinho.

No final da viagem, já contabilizava 50 dias sem ver mais que 20 pessoas, tinha escalado nos principais pontos de Cochamo, aberto 6 vias (uma inacabada) e emagrecido 5 quilos. Descendo pra cidade, joguei metade dos trapos fora, tal era o estado de minhas roupas depois de passar uma pequena parte de minha vida na montanha. O local é mágico, e quem pretende ir escalar por lá leve: roupas impermeáveis e/ou de secagem rápida, repelente de mosquitos, jogo completo de móveis (off sets vão muito bem), duas cordas de 60m, esparadrapo (luvas), primeiros socorros… E vá preparado físico e mentalmente para encarar esticões, fendas com proteções duvidosas, aproximações extenuantes, fendas sujas, vegetação densa e muitos Tábanos.

Espero voltar este ano pra finalizar a via do Elefante e escalar outras tantas mais. Vamos ver…

Roberto faz parte da equipe BAUZERA Escalada e conta com o apoio da Garra Aventura.

Croquis da via&nbsp, La hora es ahora

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