Línguas Mortas (I)

0

Acompanhe duas colunas sobre as línguas nativas do Brasil, acredito que com fatos que você desconhece.

Línguas Mortas (I)

Vou repetir aqui um comentário feito pelo linguista Aryon Rodrigues: se traçarmos uma linha entre São Luiz no Maranhão e o Arroio Chuí no Rio Grande do Sul, poderemos contar nos dedos de uma só mão as línguas nativas faladas à direita ou a leste desta linha. E destas, só duas são praticadas por uma população ainda numerosa, o guarani e o kaingang – com o tempo, é bem possível que as demais três estejam extintas.

Não é difícil imaginar a razão. Ao longo da colonização, que se deu do litoral para o interior, os indígenas foram sendo capturados, escravizados ou mortos. Muitos desapareceram por doenças contra as quais não tinham imunidade.

A língua portuguesa foi imposta como oficial, forçando-os a praticá-la. O progresso os atraiu para as cidades, afastando-os de sua cultura. E, pior, em tempos recentes suas terras foram invadidas e devastadas, alijando e dispersando suas populações.

Quando os europeus aportaram no Brasil, viviam aqui talvez 6 milhões de nativos. No decorrer dos séculos, foram sendo reduzidos para meros 150 mil indivíduos (ou talvez ainda menos).

Porém, a partir de 1980, com o parcial sucesso dos programas de territorialização, de saúde e de proteção, sua população cresceu para cerca de 900 mil. Estão aí incluídas (acho que pela primeira vez) pessoas que não vivem em terras indígenas, mas que se consideram índios.

Os linguistas dizem que antes da colonização o Brasil tinha de 600 a 1.300 idiomas nativos. Mas parece hoje haver apenas um pouco mais de 150 línguas sendo faladas, o que é ainda uma quantidade surpreendente. Esta dispersão linguística é bastante incomum em todo o mundo.

Mapa resumido da localização dos povos indígenas no início da colonização do Brasil.

A meu ver, ela pode ser parcialmente explicada pela relativa separação das tribos no ambiente tropical, ocupado em geral por uma alta vegetação interferente, e pela limitada mobilidade dos indígenas, só facilitada em geral pelos rios.

Nas minhas poucas incursões na Amazônia, notei como cada tribo parecia isolada da vizinha. É como se houvesse enclaves naturais, que geraram no tempo separações linguísticas.

Devem ter concorrido outras razões, uma delas sendo os diferentes fluxos migratórios ao longo da ocupação de nosso território.

A hipótese preferida é que as populações  tivessem vindo do norte pelo Estreito de Bering (entre Alasca e Rússia) durante o período glacial, quando pontes de gelo permitiram a passagem a pé de duas ou três migrações, provavelmente vindas da Sibéria.

Mas há hipóteses de travessias ilha a ilha pelo Pacífico e mesmo de passagens diretas, impulsionadas pelos ventos e marés do estreito Atlântico. Cada migração pode ter contribuído com idiomas distintos das demais.

Mapa das famílias linguísticas do Brasil. Note que são mais numerosas no oeste do país (Fonte – Instituto Sócio Ambiental).

Outra explicação, não da origem das línguas mas de sua persistência, é o fato de que muitas etnias proíbem o casamento fora do grupo linguístico. Neste caso, a língua não é afetada, combinada ou absorvida pelos idiomas próximos. Assim, é possível que duas ou mais línguas convivam por séculos sem se misturarem.

Estima-se que hoje apenas 230 mil índios falem de fato sua língua nativa. Se você calcular, isso seria algo como 1/4 da população – ou talvez 1/3, se forem desconsiderados os residentes de fora, que já não têm uma vida tribal. A meu ver, é uma proporção até razoável, devido à aculturação a que nossos índios foram expostos.

Há no Brasil três principais troncos linguísticos, o Tupi, o Jê e o Aruak, junto com uma dúzia de outras línguas, algumas delas sendo isoladas. Os quadros adiante mostram a variedade de famílias e de línguas que derivaram de dois desses troncos.

As línguas nativas do Brasil são variadas e interessantes. Já se disse que há línguas tão diferentes entre si como o chinês do português. Mesmo não sendo versado em linguística, é possível admirar suas muitas construções surpreendentes. A perda dessas línguas seria um lamentável empobrecimento do saber, ainda mais quando muitas nunca foram documentadas.

Será que a persistência da língua nativa irá permitir a sobrevivência da cultura e identidade indígenas.

Algumas línguas são ergativas (o que é um fato raro), onde existe uma estranha equivalência entre o sujeito e o objeto direto, dependendo de o verbo ser ou não transitivo. Veja que: os verbos transitivos transitam, ou seja, vão até o seu complemento, pois precisam dele para fazer sentido, enquanto os intransitivos não precisam ir a nenhum lado, porque por si só já oferecem a informação de que precisamos.

Outras diferenciam os verbos transitivo e intransitivo marcando ora seu objeto, ora seu sujeito. As línguas nativas apresentam formas variadas de marcadores, classificadores e valências.

Há idiomas sem pronomes, sem plurais, sem distinções entre presente e passado. Ou com mais de um pronome por pessoa. E com quantidades extravagantes de vogais ou de consoantes.

Alguns idiomas exibem variadas articulações da fala – por exemplo, nasal, labial, dental ou gutural. Aparecem diferentes usos de tons, acentos, sonoridades e métricas. Ou curiosas aplicações de prefixos e sufixos. E isso é só um resumo de uma pessoa leiga no assunto.

Mas não é só no Brasil, todo o globo está perdendo suas línguas. Pergunte aos tofas como o mundo surgiu e eles não saberão a resposta. Essa pequena tribo siberiana está esquecendo a mitologia que explica o seu nascimento. Esse torpor coletivo é resultado de uma perda ainda maior: os tofas estão esquecendo sua própria língua, conta o jornalista Luiz Romero.

O mundo possui 6.000 línguas, das quais 2.500 dormentes. Metade do total estará extinto ainda durante esse século. Talvez só o mandarim, o inglês, e quem sabe o espanhol e o árabe sobrevivam a longo prazo.

Renas eram chamadas por muitos nomes pelos tofas, conforme seu sexo ou idade, se eram domesticadas, castradas ou cavalgáveis. Na lingua russa que adotaram, perderam essas expressões e não conseguem mais nomeá-las.

Um sinal bem óbvio de perigo é quando os pais não falam mais a própria língua com os filhos, comenta uma pesquisadora. As línguas são chamadas de moribundas quando as crianças já não mais as falam. De ameaçadas, se os jovens não falam, mas podem entendê-las. E de críticas, quando só os mais velhos falam e entendem. As línguas estão desaparecendo devido à globalização, à migração para as cidades e ao ensino exclusivamente nas línguas nacionais.

Compartilhar

Sobre o autor

Nasci no Rio, vivo em São Paulo, mas meu lugar é em Minas. Fui casado algumas vezes e quase nunca fiquei solteiro. Meus três filhos vieram do primeiro casamento. Estudei engenharia e depois administração, e percebi que nenhuma delas seria o meu destino. Mas esta segunda carreira trouxe boa recompensa, então não a abandonei. Até que um dia, resultado do acaso e da curiosidade, encontrei na natureza a minha vocação. E, nela, de início principalmente as montanhas. Hoje, elas são acompanhadas por um grande interesse pelos ambientes naturais. Então, acho que me transformei naquela figura antiga e genérica do naturalista.

Deixe seu comentário