O Esqueleto Sem Cabeça

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O clima estava terrível naquela manhã fria e úmida como só a Serra do Mar sabe fazer. O ano era 1952 e choveu por seis meses contínuos, deixando tudo cheirando a mofo. Trilhas e paredes babando água sem parar. Montanhistas e escaladores entocados no Martinelli, a volta do fogão, contando histórias nas rodas de viola e bebendo até cair.

O trem de passageiros estaciona na plataforma da Estação Marumbi debaixo de chuva fina e constante, daquelas que encharcam a alma. Alguns passageiros descem e circulam encolhidos, procurando ver a montanha por entre a pesada massa de nuvens escuras, mas rapidamente retornam a embarcar desapontados. O sino reverbera e o trem parte para Morretes deixando uma figura solitária em pé na plataforma. Machado, o chefe da Estação, observa aquele homem parado na chuva, olhando melancolicamente para o nada, até que desperta e vem em sua direção.

Alguns japoneses se consagraram grandes marumbinistas; Nobor (Lanterna) Imaguire que junto aos irmãos Curial conquistou o Siririca e o Agudo da Cutia ou o Key (Ok) Imaguire que participou da primeira escalada ao Dedão na Torre da Prata, entre outros que frequentavam as montanhas por esta época, mas este japonês em particular não demonstrava a mínima intimidade com o ambiente.

Aproximou-se do Machado vestindo terno completo com chapéu, gravata e sapato social. Perguntou sobre o morro e a trilha de acesso para depois de informado pedir educadamente que tomasse conta de sua maleta de couro preto, daquelas em que se transportavam documentos, e calmamente partiu caminhando debaixo da chuva fina até desaparecer na névoa por detrás das casas.

De fato estranho, mas como o Machado já estava cansado de presenciar coisas até muito mais estranhas que aconteciam com certa frequência na Estação Marumbi, apenas se limitou a guardar a maleta no armário. Mesmo em dias chuvosos o trabalho na Estação não dava trégua com a liberação dos trens de carga subindo e descendo a serra de forma que só lembrou do ocorrido quando no final da tarde subiu o trem de passageiros e o japonês não apareceu para resgatar a maleta.

Imediatamente alertou os montanhistas ainda razoavelmente sóbrios no Martinelli e na manhã seguinte o Henrique (Vitamina) Paulo Schmidlin partiu em busca pela trilha do Facãozinho enquanto outros subiam pela trilha Noroeste para se encontrarem no cume e descerem pela Trilha Frontal vasculhando todo o entorno. Mas não encontraram nenhum vestígio de que alguém tenha subido a montanha e com os dias e semanas passando sem qualquer alerta de desaparecimento nos noticiários, a coisa toda acabou no esquecimento.

Só a maleta no armário continuava à espera do proprietário.

Meses se passaram até que alguém informou ter encontrado um esqueleto atrás de uma pedra nas proximidades da Trilha Frontal e o Machado imediatamente comunicou ao Vitamina que foi investigar na manhã de 28 de fevereiro de 1953, ainda com tempo instável e úmido. Cruzou o Rio Taquaral e seguiu até a pedra onde, três anos antes, instalaram a placa de bronze em homenagem a Ewaldo Schiebler que tombou ferido mortalmente naquele mesmo lugar. A trilha contorna a pedra pela esquerda onde se instalou um degrau, mas originalmente a contornava pela direita e exatamente atrás desta pedra encontrou o esqueleto parcialmente enterrado nos detritos de aluvião.

Os restos semidestruídos das roupas prontamente identificaram o japonês da maleta e o crânio destacado do corpo descansava pouco adiante. Junto ao esqueleto, além das roupas em frangalhos, encontraram um frasco de cianureto, uma garrafa de gasosa e grande quantidade de vermes e insetos necrófilos também mortos por se alimentarem do defunto envenenado.

O Vita recolheu a caveira e a lavou no Rio Taquaral antes de guardá-la no Martinelli para que não se extraviasse, depois abriram a maleta de couro preto encontrando apenas roupas e outros objetos que em nada contribuíram para identificar o cadáver. Por rádio avisaram a polícia e a notícia se espalhou no Marumbi como fogo no capinzal. Não passava hora sem que alguém fosse conferir o lúgubre achado, sempre retornando impressionado com a visão do esqueleto sem cabeça.

Dias depois aparecem dois agentes da polícia técnica, já um tanto alcoolizados, com uma pequena caixa para ossos e seguem direto ao Martinelli a procura de um guia. A confusão foi geral para disfarçar alguns pés de cannabis sativa que insistiam em crescer junto a porta, mas por fim conseguiram que sentassem de costas para a moita enquanto os distraíam com muitas histórias e outras tantas rodadas de todo tipo de destilados. A tarde embarcam no trem de passageiros, completamente embriagados, com a maleta de couro debaixo do braço, o esqueleto sem cabeça dentro da caixa e nunca mais se ouviu falar deles, da investigação ou do japonês.

Com a desativação da pedreira restaram abandonadas algumas edificações prontamente invadidas pelos montanhistas, com destaque para o dormitório dos operários. O grande casarão de madeira possuía um espaçoso refeitório, cozinha, depósitos e dormitórios. Alguns poucos e destacados montanhistas possuíam até aposentos privativos no sótão, o cúmulo dos luxos só comparável ao mais luxuoso edifício da América Latina; o Martinelli em São Paulo.

No Martinelli do Marumbi a iluminação dependia de velas e lampiões, não tardando para que a não reclamada caveira do japonês recebesse uma delas no alto da moleira para iluminar a noites de um destes dormitórios particulares, mas a segurança era precária e os arrombamentos constantes. Pouco demorou para sumir a caveira com a vela e a história poderia terminar por aqui.

Ilustração – O candelabro macabro

Poderia, mas faltava um último e derradeiro ato. Meses depois, andando pelo calçamento da Rua Comendador Araújo quase na esquina com a Rua Brigadeiro Franco, o Vita reencontra espantado a caveira com a vela expostas na terceira janela de uma pensão para estudantes e não teve dúvida. Pula para dentro e sai às escondidas com seu precioso candelabro macabro, mas o destino já estava escrito e três meses depois a caveira sumiu para sempre. Talvez o esqueleto do japonês tenha retornado para buscar a cabeça.

História verídica extraída dos “Diários do Vita” em tradução livre.

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Sobre o autor

Julio Cesar Fiori é Arquiteto e Urbanista formado pela PUC-PR em 1982 e pratica montanhismo desde 1980. Autor do livro "Caminhos Coloniais da Serra do Mar", é grande conhecedor das histórias e das montanhas do Paraná.

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