Os Kaapores

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Apesar de você encontrar com frequência menções a tribos indígenas nas minhas colunas, nunca tinha escrito sobre elas. A história dos kaapor é especial: uma tribo valente que migrou pelo Brasil, que desenvolveu uma tradição própria e que vem sendo há décadas espoliada pelo homem branco – até que decidiu ativamente assumir a sua cultura e proteger a sua terra.

Os Kaapores

O povo indígena Kaapor existe há três séculos, tendo ocupado inicialmente a região entre o Tocantins a leste e o Xingu a oeste, no espaço em que estes dois cursos convergem no seu rumo norte, distando apenas 200 km entre si. Acredito que foi o avanço dos colonizadores que os fez migrar para o leste, chegando até o Maranhão, 1 ½ séculos atrás, nos fins do século XIX.

Assim como os Nhambiquaras no Mato Grosso, os Kaapor eram vistos como ferozes e hostis. Sua pacificação, considerada prioritária, levou quase ¾ de século e só se completou por volta de 1930.

Naquela ocasião, os indígenas visitaram pacificamente o posto do SPI de Canindé e, quase ao mesmo tempo, os guerreiros se aproximaram da vila de Alto Turi e depuseram seus arcos em sinal de paz.

Cerca de ½ século depois, tiveram reconhecido seu território de 530 mil hectares, na divisa entre MA e PA, onde vivem até hoje. Apesar disso, a paz não veio: cerca de 1/3 da reserva foi invadida, grilada e desflorestada para o plantio de arroz e a criação de gado. Você verá que há décadas este é um lugar de violência.

A TI Alto Turiaçu, reserva dos Kaapor, junto com outras reservas indígenas. São todas elas locais de invasões e de violências. O Rio Gurupi e a EF Carajás cruzam a figura.

A migração dos Kaapor foi lenta, mas atravessou 400 km. Embora sua língua seja basicamente o tupi-guarani, ela é aparentada com a dos Waiãpi, também eles guerreiros e independentes.

Depois da separação desses povos, as duas línguas tornaram-se hoje mutuamente irreconhecíveis. Eu encontrei os Waiãpi no Amapá, já na divisa com a Guiana, a mais de 1.200 km de distância – e do outro lado do Rio Amazonas. Novamente, uma migração gigantesca, que provavelmente nunca foi devidamente documentada.

A população dos Kaapor foi certamente reduzida pela violência dos sertanistas. A partir de sua pacificação, foi afetada pelas epidemias (principalmente de sarampo): os 2 mil indivíduos daquela época estavam reduzidos a menos de 500, quando sua reserva foi criada. A partir de então, voltaram a crescer para 1.500, porém ainda menos do que havia um século atrás – os partos malsucedidos, a tuberculose e a malária reduziram sua expectativa de vida a meros 45 anos.

A sociedade dos Kaapor é relativamente sofisticada, com uma organização matriarcal, um complexo sistema de parentesco, uma prática de longas linhas genealógicas (com relatos que retroagem a mais de um século), numa sociedade medianamente igualitária, sem autoridade centralizada e com autonomia entre as diversas aldeias.

Os Kaapor praticam diversos mitos, sendo adeptos do xamanismo. Sua maior cerimônia é a nomeação das crianças, numa afirmação da fertilidade e dos laços de parentesco, que lhes permitem sobreviver e crescer.

É um rito de renovação, cuja continuidade como parte integral da cultura depende do resultado da luta do povo Kaapor por terra e justiça, como comenta o ISA – Instituto Socioambiental. Voltarei em seguida a este assunto.

São povos agricultores, que lidam com 50 plantas domesticadas – usadas como alimento, decoração ou medicamento. Sua dieta é baseada na mandioca, na caça e pesca diversificadas e na coleta de frutos.

Seu território é baixo e úmido, ocupado grandemente pela alta floresta amazônica e drenado pelas bacias de rios como o Gurupi e o Turiaçu, cursos independentes e caudalosos, que deságuam no mar.

Exemplos da arte plumária kaapor – diadema, colar e apito.

Os colonizadores que aniquilaram os Kaapor no início do século XX descobriram esplêndidos colares de penas, que os índios assustados tiveram de abandonar em sua fuga. Neste sentido, embora haja dezenas de tribos que elaboram objetos com penas, os Kaapor são considerados como os mais autênticos representantes da tradição plumária dos antigos tupis costeiros.

Os estudiosos apontam duas principais categorias da nossa arte plumária: aquela que usa longas penas fixadas em suportes rígidos, como os cocares bororos, carajás ou caiapós e a que emprega penas pequenas em delicados suportes flexíveis, a exemplo dos colares, pulseiras e cintos mundurucus ou kaapores.

Os Kaapor desenvolveram adornos masculinos e femininos. Os primeiros recorrem às penas amarelas representando o sol, especialmente nos diademas. Os segundos, às penas azuis e vermelhas e ás plumas amarelas dos colares. Os adornos chegam a recompor o formato dos pássaros que os originaram – por seu virtuosismo e sua sutileza, são chamados de joias de penas.

Darcy Ribeiro discutindo com os Kaapor a sua língua de sinais.

O etnólogo Darcy Ribeiro, que conheceu os Kaapor no início de 1950, considerava natural que os indígenas criassem uma elaborada arte plumária porque a plumagem dos pássaros, com sua variedade de formas e riqueza de colorido, constitui o material mais precioso e mais acabado que a natureza oferece aos índios para se exprimirem artisticamente.

Queria fazer agora um comentário. Dom Pedro I mandou fazer para a sua coroação uma gola de penas de tucano, revestindo o seu manto. Foi uma homenagem aos indígenas do país, uma afirmação do poder imperial, uma imagem da ruptura com Portugal e um símbolo da unidade nacional entre brancos e índios.

Dom Pedro usando uma capa decorada com as plumas de tucano. Esta é uma capa curta, diferente da usada na coroação. A pintura é de Pedro Américo.

Dom Pedro II também usou este manto, mas ele foi depois esquecido. De fato, hoje não faz mais sentido algum comemorar os indígenas do Brasil.

Você sabe que existe no Brasil uma língua de sinais, hoje chamada de Libras, aquela que aparece de forma um tanto bizarra na TV. Ela foi recentemente declarada uma língua oficial, derivada da língua similar francesa. Ela recorre tanto a sinais como a expressões.

A língua de sinais brasileira, que usa figurações das mãos e expressões faciais e corporais. Incorpora regionalismos e é derivada da língua de sinais francesa.

Mas você não deve saber que dispomos na realidade de duas línguas. A outra foi desenvolvida sem qualquer influência externa pelos índios Kaapor, não sendo usada em nenhum outro lugar.

Este povo contraiu uma doença infecciosa neonatal, que durou muitos anos e tornou surda uma a cada 75 crianças.  As tribos Kaapor então se tornaram bilingues. Em 1980 a doença foi finalmente debelada, com o uso de antibióticos.

A língua usual dos Kaapor pertence ao tronco tupi-guarani. Curiosamente, não é compreensível para os vizinhos Tembé e Guajá, que com eles dividem a reserva. Até o momento, a língua de sinais continua sendo praticada, talvez de forma crescentemente precária. Só 40% dos Kaapor falam o português, e mesmo assim de forma rudimentar.

Como comenta o ISA, quando os Kaapor foram pacificados, tinham uma clara noção de quem eram seus inimigos – os karaí, ou homens brancos. Hoje sua situação é mais complexa, depois de trinta anos seguidos de invasões absurdas, que os puseram em contato com madeireiras, missionários, grileiros, burocratas, fazendeiros, ONGs e Governos.

A mata amazônica dos Kaapor contém algumas espécies de porte, como andiroba, jatobá e tauari. As áreas onde a floresta foi invadida passaram a abrigar palmáceas como o babaçu, o tucumã e o açaí. Hoje cerca de metade do que sobrou da floresta no Maranhão está nas terras indígenas.

Cansados de serem espoliados pelos karaí, os Kaapor resolveram expulsar eles mesmos os invasores. Seguem a trilha dos madeireiros, derrubam as pontes de acesso, tomam seus equipamentos e incendeiam seus veículos. Os invasores têm de voltar a pé. Em seguida, fecham as trilhas usadas e levantam aldeias nos pátios das serrarias ilegais, como postos avançados para proteger seu território.

Esta assembleia do povo kaapor levou quatro dias, para afirmação de sua cultura e defesa de seu território.

Há cerca de dez anos, os Kaapor resolveram romper com o sistema educacional dos brancos e adotar sua própria didática, na língua nativa. Acabaram com o cacicado, que dizem ter sido fomentado pela FUNAI, trocando-o por um conselho formado por 70 líderes. Proibiram o consumo do álcool, que corrompia e enfraquecia o povo. E voltaram o tratamento da saúde para a medicina tradicional à base de plantas.

Os Kaapor construíram estradas internas, garantindo que o trânsito local fosse rapidamente feito dentro do seu território. Criaram a uma guarda florestal, para ser a sua própria polícia. Pois têm de proteger uma área imensa – igual a 4 vezes o município do Rio e 2/3 da Grande São Paulo.

Nela a polícia local não pode agir, por não ser território estadual. E a fiscalização federal é escassa e irregular. Dizem que a FUNAI os estimulou a se defenderem, embora sua administração afirme que não apoia ações de fiscalização realizadas por indígenas.

O líder Itahu kaapor é um dos membros do conselho que substituiu o cacicado em 14 das 17 aldeias indígenas.

Praticando e sofrendo violência, os Kaapor procuram a sua autonomia longe dos colonizadores. O líder Itahu Kaapor resume assim: O jabuti vive sozinho, não tem amigo. A gente tem de copiar ele e ficar só.

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Sobre o autor

Nasci no Rio, vivo em São Paulo, mas meu lugar é em Minas. Fui casado algumas vezes e quase nunca fiquei solteiro. Meus três filhos vieram do primeiro casamento. Estudei engenharia e depois administração, e percebi que nenhuma delas seria o meu destino. Mas esta segunda carreira trouxe boa recompensa, então não a abandonei. Até que um dia, resultado do acaso e da curiosidade, encontrei na natureza a minha vocação. E, nela, de início principalmente as montanhas. Hoje, elas são acompanhadas por um grande interesse pelos ambientes naturais. Então, acho que me transformei naquela figura antiga e genérica do naturalista.

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