Para escalar grandes vias

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A escalada tradicional é muito diferente da escalada esportiva, veja porque e também as manhas para escalar uma via longa passando menos perrengue, menos, pois nesta modalidade a perrengue faz parte da escalada.

Pedro Hauck escalando em Salinas

Um escalador que começa agora no esporte pode achar que tudo na escalada é subir vias dificeis. Para o novato o bom escalador é aquele que “encadena” uma via e faz um grau elevado.

Isso é reflexo da grande popularização da escalada esportiva que houve apartir da segunda metade dos anos 90, mas nem sempre foi assim, pois antes disso o normal era escalar vias de parede, que levassem o escalador até o cume de uma montanha.

Mas se engana que um escalador esportivo que faz vias dificeis vai mandar com facilidade uma via tradicional, pois são estilos de escalada muito diferentes e ao menos que o escalador seja muito completo, ele irá passar grande dificuldade, sobretudo com a exposição e a interpretação da via.

Muitas vias tradicionais tem a cara da conquista. Não é raro uma dupla de escaladores entrar na parede e sair dela com a via pronta para ser repetida. Com isso, é normal que se faltem grampos, pois ninguém vai metralhar uma parede com proteções fixas numa situação onde o tempo é precioso, pois ninguém quer dormir na parede, principalmente por causa da logística que é ter que levar material de bivaque e água para permanecer na via por mais de um dia.

Isso quer dizer que escalar uma via longe é, de cara, uma luta contra o relógio. Para isso sempre que você for entrar numa via tradicional, entre sempre com alguém que você esteja habituado a escalar, para assim escalar com mais agilidade. É fundamental estar bem entrosado com seu parceiro.

Visual dos 3 Picos, ou simplesmente Salinas. Pico Médio, Maior e Capacete.

Outra coisa que vai influenciar na agilidade de sua escalada é o tamanho de sua mochila nas costas. Sim, vias tradicionais são escaladas com mochila nas costas, pois de maneira alguma pense que você irá ficar um dia inteiro na parede sem comer e sem beber água. Para isso você tem que fazer uma média, nem levar coisas demais e nem de menos.

A própria mochila é algo que se tem que tomar cuidado, pois já que inevitavelmente vai estar contigo na escalada, ela tem que ter um tamanho adequado e não pode atrapalhar seu acesso aos equipamentos no rack da cadeirinha. Existem mochilas feitas especialmente para vias longas, feitas pela Equinox, Deuter, Conquista e outras marcas que não são comercializadas no Brasil. Em geral a diferença destas mochilas com as normais é que elas tem a base mais estreita, exatamente para não atrapalhar a cadeirinha.

Estiiiiiiiiica a corda!

As vias longas de escalada no Brasil tem características muito peculiares, isto por causa da evolução do relevo brasileiro ao longo do Cenozóico, em que se predominou processos erosivos e denudacionais muito intensos. Por mais que tenha existido tectonismo isostático em todo território nacional, as formas das montanhas brasileiras são oriundas de erosão em clima seco e suavização em clima úmido, do Rio Grande do Sul ao Tumucumaque no Amapá e por isso a escalada tradicional brasileira tem características próprias.

Uma dessa característica é que as vias são quase todas positivas. São poucos os lugares com inclinação de 90 graus e negativos, quando isso ocorre são o “crux” da via e são passados em artificial ou por chaminé.
As partes positivas precisam que o escalador não tenha medo de aderencia. Aliás, como estes trechos predominam nas grandes paredes, os escaladores têm que estar habituados com este tipo de escalada, então esqueçam daquelas sapatilhas super esportivas e bicudas que detonam o pé, dê preferencia à sapatilhas de cadarço mais confortáveis, mas que ao mesmo tempo tenham um bom solado aderente.

Devido estes trechos em positivo, não pense em cair! Cair em positivo é como deslizar num ralador, principalmente por causa dos cristais da rocha.

Os outros trechos mais inclinados, na maioria das vias, são passados em artificial. Então o escalar tradicional tem que ser mais completo. A maioria destes trechos são passados com buraco de cliff e isso é algo tranquilo, mas que quem não está habituado pode achar estranho e inseguro.

Chaminé no Dedo de Deus

As chaminés são caso à parte. Muitos falam que são escalada de vovô, eu mesmo falo isso e não gosto. Mas não há o que fazer, em vias assim elas existem aos montes e nesta hora temos que utilizar as técnicas de antigamente. Se são fáceis? Eu não sei. Já passei adrenalina em chaminé, são escaladas diferentes, as vezes não dá nem pra cair e nem pra subir. Tem que conduzir seu psicológico se auto enganando que está tudo ok. Talvez este seja o segredo…

Aliás chegamos ao ponto crucial das vias tradicionais: O psicológico. Este é um tipo de escalada em que controlar o medo é o maior segredo e para isso acontecer não há treino, há somente experiência. Há que ter experiência para interpretar a via e não se perder, há que ter experiência para escalar longos esticões sem proteção, há que ter experiência para proteger em móvel um lance com fenda ou na pior das hipóteses, desescalar um trecho que, por engano, você escalou e quando esticou a corda descobriu que estava no lugar errado!

Para todas estas coisas existe o croquis. Ande sempre com ele no bolso e interprete-o bem. Mas não se engane, não é o croquis que vai te livrar do perrengue, mas sim a experiência. Portanto se você gosta da ideia de subir um cume onde só se chega escalando, comece aos poucos. Já primeiro para uma via mais curta e mais fácil e gradativamente vá “piorando” as coisas.

Recentemente escalei em Salinas, a Meca da escalada tradicional brasileira, onde muita gente fala horrores de perrengue e até morte já teve. Escalei a Leste, uma das vias mais tradicionais do local, com muita sobra. Pra falar verdade, achei a via muito tranquila, contrário que muita gente que escala melhor do que eu fala. Entretanto isso só aconteceu, por que eu e meu parceiro, o Tacio Philip de São Paulo, já estávamos habituados a escalar juntos vias assim. Havíamos escalado dias antes uma via de 650 metros em Minas e também já havíamos feito muitas vias mais difíceis e mais expostas em outros lugares, vias mais curtas, mas que ajudaram muito a fazer esta escalada super clássica, na qual eu recomendo para todos.

A escalada tradicional é uma grande aventura, um grande prazer. Ela nos coloca num contato muito desafiador com a natureza, mas tem que ser levada com maior comprometimento, aliás esta é a palavra que melhor caracteriza uma escalada destas: Comprometimento, isso faz toda a diferença. Nestas escaladas o grau da via é um detalhe e nem sempre será a maior dificuldade.

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Sobre o autor

Pedro Hauck natural de Itatiba-SP, desde 2007 vive em Curitiba-PR onde se tornou um ilustre conhecido. É formado em Geografia pela Unesp Rio Claro, possui mestrado em Geografia Física pela UFPR. Atualmente é sócio da Loja AltaMontanha, uma das mais conhecidas lojas especializadas em montanhismo no Brasil. É sócio da Soul Outdoor, agência especializada em ascensão em montanhas, trekking e cursos na área de montanhismo. Ele também é guia de montanha profissional e instrutor de escalada pela AGUIPERJ, única associação de guias de escalada profissional do Brasil. Ao longo de mais de 25 anos dedicados ao montanhismo, já escalou mais 140 montanhas com mais de 4 mil metros, destas, mais da metade com 6 mil metros e um 8 mil do Himalaia. Siga ele no Instagram @pehauck

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