Ricardo Baltazar na Cordilheira Branca – Pt III

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Com este terceiro relato, encerramos a sequência de matérias do escalador gaúcho Ricardo Baltazar sobre a Cordilheira Branca, nos Andes Peruanos. Depois de escalar 4 montanhas num curto espaço de tempo no Vale Ishinca, o trio de montanhistas (Ricardo, o gaúcho Érico Winkler e o mendocino Gaston Riolla) tirou uns dias de folga na praia, para então encarar um outro setor da Cordilheira, a Quebrada Parón.

Texto: Ricardo Baltazar

Introdução: Eduardo Prestes
 
Trata-se de um vale localizado um pouco mais ao norte do Huascarán, cercado por algumas das mais belas montanhas do mundo. O acesso é feito pela cidade de Caraz, por estrada até a Laguna Parón, de onde se pode caminhar até os campos avançados de cada montanha. Entre estas, destacam-se a Aguja Caraz (6020 m), o Cerro Parón (mais conhecido como Esfinge, com 5325 m), a Pirâmide de Garcilaso (5885 m), Los Huandoys (são 4 cumes principais, o mais alto com 6395 m), o Pisco (5760 m), o Artesonraju (6025 m) e o Chacraraju (6112 m). Próximos estão o Alpamayo (5947 m), o próprio Huascarán (são 2 cumes, o mais alto com 6768 m), o Quitaraju (6036 m), entre outras. 
 
Para quem tem dúvidas sobre a beleza destas montanhas, vale destacar algumas curiosidades. A Pirâmide de Garcilaso é, como diz o próprio nome, um pináculo piramidal de perfeita geometria, com encostas nevadas e arestas demarcadas. O Alpamayo, visível do cume de qualquer montanha na Quebrada Parón, foi eleito (por foto) em 1966 como a "mais bela montanha do mundo" por uma revista de montanhismo alemã. Claro que isso não existe, mas não deixa de ser um justo reconhecimento de sua forma espetacular. O Artesonraju foi representado na logomarca da Paramount Pictures, famoso estúdio americano de cinema. Na próxima vez que você assistir um filme e a inconfundível logomarca deste estúdio aparecer, saiba que aquela montanha de sonho existe e se chama Artesonraju. O Huandoy destaca-se por ser o segundo cume mais alto da Cordilheira Branca. E por fim, o Chacraraju, escalado pela primeira vez em 1962 por uma equipe liderada pelo lendário guia francês Lionel Terray. No livro "Conquistadores do Inútil", escrito por Terray, o Chacraraju ganhou destaque, por sua dificuldade técnica e beleza incomum. 
 
De uns anos para cá, também as grandes paredes rochosas, que existem nas áreas mais baixas da Cordilheira Branca, começaram a receber a atenção dos montanhistas. No caso da Quebrada Parón, é a imensa parede vertical da Esfinge que destaca-se na boca do vale. Sem gelo e exigindo uma abordagem que mescla o big wall com escalada tradicional, a Esfinge possui hoje cerca de 18 vias estabelecidas, muitas recentes e com graduação elevada. A conquista da montanha é de 1955, por uma dupla alemã. Esta via da primeira ascensão, localizada em outro setor da montanha, é normalmente utilizada pelos escaladores para rapelar do cume da Esfinge, uma vez que ali a parede é mais baixa. Ao escolher a Esfinge para sua despedida na Cordilheira Branca, Ricardo, Érico e Gaston optaram pela via mais frequentada, chamada de "Original" ou "1985", bem ao centro da parede. Esta via possui cerca de 800 m, distribuídos em 17 cordadas. Ela foi estabelecida em 1985 pelos espanhóis Antonio Gomez Bohorquez e Onofre Garcia, depois de uma permanência de 9 dias na parede. Atualmente, a via costuma ser repetida em um dia.
 
A seguir, Ricardo Baltazar conta mais algumas histórias e o desfecho desta sua primeira temporada na Cordilheira Branca. 
 
 
Buenas, seguindo o baile, depois de uns 10 dias internados na Cordilheira, deixamos a Quebrada Ishinca e nos dirigimos para Huáraz, para descansar. Fomos também às compras e fizemos a tradicional ronda nos bares noturnos. Precisávamos repor os estoques de graxa e energia, pois na altitude o gasto calórico é muito alto, a carne vai desaparecendo e ficam só os ossos. Para o descanso ser completo, resolvemos seguir para o litoral, buscando uma mudança de ares, de paisagens e de esporte. Ficamos uma semana em Lobitos, uma praia a cerca de 65 km ao sul de Mâncora, no litoral norte do Peru. Acampamos em um quiosque na praia, eu, Gaston, Érico e Sebastian, sem outras preocupações exceto surfar as longas esquerdas do pico. Foi uma semana ali, salgados, em meio ao deserto, cagando nas dunas, só íamos até o povoado de pescadores quando acabava a cerveja.
 
Entre uma onda e outra, fomos amadurecendo nossa próxima investida na Cordilheira Branca. Decidimos seguir para a Quebrada Parón, localizada a cerca de 100 km ao norte de Huaraz, mais próximo da cidade de Caraz. A partir deste vale é possível ver e acessar várias montanhas, entre as quais a Esfinge, o Pisco, Aguja Caraz, Artesonraju, Pirâmide de Garcilaso, los Huandoys e a menina dus zóio: o Chacraraju. São todas montanhas técnicas e que iriam demandar uma abordagem mais cuidadosa. 
 
Depois de renovadas as baterias, deixamos o litoral e fomos para nossa conhecida Huaraz. Batemos cabeça um dia inteiro, comprando provisões no mercado público, local onde costumávamos almoçar. O esquema ali é um pouco rústico, para não dizer meio delirante. Nos corredores, passeamos entre negras cabeças de porco, penduradas junto com milhares de frangos, de todos os tipos, com e sem cabeça. Pode-se encontrar ali ainda ovelhas, bodes, mulas, a fauna é bem variada. E que tal um pé de galinha frito dentro de um pão por 1 sol ?  O povo de lá não tem frescura, come-se de tudo. De vez em quando passava por nós um cachorro, com um belo pedaço de carne ou coisa parecida na boca, certamente furtado de alguma banca. Aquilo era uma feira da morte ! Quando íamos almoçar no restaurante do mercado, tínhamos o cuidado de entrar por uma porta lateral. Nosso apetite não resistiria a um passeio nas galerias, entre cadáveres de todos os tipos em liquidação.
 
Saindo de Huaraz, passamos por Caraz mais ao norte e dali fomos para a vila de Parón, já dentro do Parque Nacional. A aproximação talvez seja a mais fácil de toda a Cordilheira Branca, uma vez que é possível chegar de carro quase até o campo-base. O vale começa seco e rochoso, com um visual semelhante a um cânion, delimitado por imensas paredes verticais de rocha nua. Mais adiante, a paisagem vai se modificando, até a chegada na Laguna Parón, em um ambiente já alpino. O visual da Laguna é estupendo. As visões do Artesonjaru, da Pirâmide e do Chacraraju são de tirar o fôlego, as formações são descomunais.
 
Desta vez, estávamos apenas eu, Gaston e o Érico. Nossa intenção, um pouco vaga, seria tentar a Pirâmide de Garcilaso (5885 m) ou Artesonraju (6025 m). Já o Chacraraju, a partir da Quebrada Parón, é uma ascensão complicada, feita pela face oeste, bem vertical, com gelo instável e rochas soltas. Por isso, o Chacraraju normalmente é escalado a partir de outros vales. Mas nosso primeiro problema acabou sendo o clima, que não estava tão favorável como em nossa investida no Ishinca. O dia amanhecia bom, com sol, mas progressivamente ia entubando, até fechar à tarde, quando começava a garoar e nevar. O nível de fumo e de rum baixou rapidamente. As maiores montanhas em torno da Laguna Parón são bonitas, mas também técnicas, exigindo um acampamento de altitude, o que representava outra dificuldade para nós, pela limitação dos equipamentos. Nosso tempo de convivência também já era longo, e discutíamos mais do que o recomendável. Por isso, o tempo foi passando sem que tivéssemos um acordo sobre nosso objetivo. Acabou que o Gaston e o Érico resolveram tentar o Nevado Caraz (6020 m), enquanto eu permaneci na base. O tempo estava feio de doer e minhas roupas não estavam segurando o frio. Os chicos voltaram 2 dias depois. Na parte alta da montanha, encontraram neve na altura do peito e umas gretas de arrepiar, foi uma excursão ao labirinto do Fauno.     
 
Esperamos mais um tempo, dialogamos, brigamos, alucinamos e desanimamos com o tempo, que não deu trégua. A decisão acabou sendo sair da quebrada, em direção da entrada do vale, uma área mais seca, onde está o Cerro Parón, mais conhecido como Esfinge. Sua face principal é um paredonaço de granito, onde existem diversas vias estabelecidas,  as mais longas com até uns 1000 metros de "recorrido".  
 
A aproximação é bem empinada, trepamos uma pirambeira até o campo-base, localizado a cerca de 1 hora da parede. No outro dia, acordamos cedo e perto das 6 da manhã estávamos iniciando os primeiros movimentos da via "1985", uma das rotas mais percorridas da parede, com uns 800 metros. A escalada foi tranquila, apesar da altitude e do frio. A linha é bem óbvia e as fendas perfeitas. Utilizamos a estratégia patagônica de escalar rápido e exposto, mas estávamos em nosso ambiente, a rocha. Dividimos a parede em duas partes, com o Érico guiando a primeira metade da via, até um platô e eu guiando daí para cima, até o cume. Para o Gaston acabou sobrando a função de motorista da rodada, porteando a mochila mais pesada e reclamando da nossa ganância. Mas às vezes precisamos abrir mão de algumas coisas para priorizar a velocidade, dormir na montanha não estava nos planos. Apesar do croqui da via indicar a presença de proteções fixas, no local tinha muito pouca coisa. Basicamente, de fixo só encontramos as paradas e uns pitons velhos, uma meia dúzia eu arranquei com a mão e joguei para baixo, tudo podre. A escalada transcorre em boas fissuras e granito sólido, com proteções móveis bem sólidas e alguns poucos spits perdidos. Talvez o crux seja um largo cotado em 6C, tem umas fissurinhas e uns tetos, mas no geral é bem factível. Pessoalmente, o que pegou mesmo foi a altitude, porque isso tudo acontece acima dos 5000 metros. É de cuspir fuego pelas ventas, tal qual um dragão. 
 
Chegamos no cume lá pelas 4 da tarde. Fazia um frio de "gelá o pinto".  Foi uma bela escalada. A vista no topo da Esfinge é uma pintura digna de um quadro do Van Gogh. Um anfiteatro abriu-se sob nossos pés, pontuados por 3 pirâmides brancas perfeitas, com um lago azul turquesa no fundo do vale. O cara que construiu aquilo lá fez bem feito! Comemos um pouco e curtimos nosso pequeno momento de glória. Mas não demorou muito e chegou o momento de partir. O sol começava a avançar para o horizonte e o frio iria apertar em breve. Caminhamos por uma longa crista até uma linha de rapel, onde com 3 puxadas de corda alcançamos a base da parede outra vez.
 
O tempo fechou à noite, como de costume. O sol sumiu, assim como nossos soles, a moeda peruana. Sabíamos que a Esfinge havia sido a nossa despedida, porque já estávamos lambendo a espoleta. Já não tínhamos dinheiro nem para a Coca, quanto mais para a Pepsi. Aliás, vendem-se as folhas de coca por todos os lados. Com 1 sol, dá para comprar uma bucha que você pode mascar o dia inteiro, até ficar verde e fedendo a estrume de cavalo. Mascar a folha realmente auxilia um pouco na aclimatação, ameniza o efeito do puna, o mal da altitude. Só é preciso estar atento para não acabar viciando na porcaria, transformando-se num drogadito ruminante, cuspindo verde no pé dos outros. Tem uns caras que acabam desse jeito por aqui. Conformados com o fim da expedição, empacotamos nossas tralhas e descemos da Cordilheira.
 
Bem, estar sem grana significa não ter nada a fazer nas cidades. Nossa saída seria à francesa, discreta, bem oposta a nossa chegada em Huaraz.  Agarramos o resto dos nossos bagulhos lá na pousada da Mariela, o El Tambo, é um albergue divertido. Tem de tudo e muitos escaladores se hospedam ali. Tem uma hippielhada forte também, mas é tudo sangue. Claro, como em todo o resto do Peru, é preciso estar sempre de olho na bagagem. A Mariela é tão gente fina que a primeira coisa que ela faz quando tu chegas é alertar sobre os riscos do próprio albergue! Papo reto ! Como eu não tenho muita coisa mesmo, nunca carrego comigo algo importante que possa ser levado. Não sendo a integridade ou a alma, o resto eu reponho fácil. Mas a rapaziada estranhou a recepção e ficou meio apreensiva nos primeiros dias. Escutamos a história de um gringo que saiu para pegar um taxi e ao voltar, poucos segundos depois, descobriu que o maldito haulbag com mais de 30 quilos de tralha tinha evaporado ou criado asas. Mágica digna de um David Copperfield …
 
Mesmo desapegado, estou sempre atento ao que se passa em volta. Mas isso não me impediu de perder um moleton de estimação para uma peruana ligeira. Quis ser gentil na balada, emprestei o moleton para a menina não passar frio, achei que estávamos nos entendendo. Mas foi um segundo de distração e ela sumiu, volatizou-se com meu pano. Isso me fez lembrar das milongas da minha terra, quando me perguntaram certa feita:
 
"E  a china ? Nunca mais a vi, talvez ande por aí, no rodeio das alçadas, ou talvez de madrugada seja uma estrela chirua, dessas que se banham nuas, no espelho das aguadas."
 
Pues, foi isso. Saltamos dentro do madrugadão, agora em quatro, eu, Gaston, Érico e uma amiga chilena, a Natália. Iniciamos em seguida o longo caminho de volta, para cruzar o continente novamente, do Pacífico ao Atlântico. Desta vez, estávamos cansados e com pouco dinheiro, então foi uma viagem mais rápida. Nossa única parada planejada seria em San Pedro do Atacama, onde pretendíamos conferir uma destas festinhas noturnas e ilegais no meio do deserto.  O problema foi que chegamos no meio da noite na cidade, cansados, e montamos um campo-base cigano com as barracas, no meio da rua.  Lá pelas 7 da manhã, os Carabineros (polícia militar chilena) nos acordaram aos gritos e nos fizeram engolir uma multa de 40 dólares por cabeça por perturbação da ordem. Como pode isso, a gente estava até dormindo ! Tivemos que ir até a Prefeitura para pagar a multa, um total de 160 dólares, o que liquidou nossas combalidas finanças. Tivemos que dar um tchau para o Atacama, era isso ou começar a caçar e comer lagarto. No mesmo dia, à tarde, estávamos cruzando os Andes, na região do Paso Sajama, a estrada é asfaltada e muito bonita, levando do Atacama ao norte da Argentina. Adiós Chile, voltaremos um dia desses.
 
Na aduana, um dos cachorros implicou com o meu tênis, mas o oficial não teve coragem de me descascar. Eu já vinha há uns dias sem banho, imagina a inhaca. Em Jujuy, o Gaston desembarcou e tomou um ônibus para Mendoza. Nós três, os remanescentes, seguimos rumo ao Brasil. Foram uns 6 dias de Huaraz até Porto Alegre, fim do nosso roteiro. 
 
É preciso ter uns parafusos soltos na cabeça para entrar numa viagem dessas, mas vale a pena. Nosso Continente é grande e bonito, com paisagens variadas e habitado por pessoas hospitaleiras. Viajamos sem saber muito o que encontraríamos e fizemos o que foi possível. Em termos esportivos, não fizemos nada de espetacular. Mas sob o sol,  escalando na crista de uma destas montanhas, a história é outra, o bagulho é doido! Lá no alto da Esfinge, tive uma sensação de dever cumprido. A pessoa que vai nunca é exatamente a mesma que volta. Vivemos e aprendemos nestes meses nas montanhas. Quem sabe um dia eu venha a sentar num banco de praça, para contar umas histórias, “a la"  Forrest Gump. Algumas delas certamente serão da Cordilheira Branca …
 
Fiquei com a certeza de que eu volto em breve para Huaraz e cercanias, talvez na próxima temporada, em busca destes meus sonhos latinos, onde sempre há uma montanha mais bela, a minha espera, no fundo de uma destas quebradas que eu ainda desconheço. 
 
Alma forte, coração sereno. 
 
Buenas, e como esta é a última parte da matéria, sou obrigado a registrar alguns agradecimentos.
 
Ao Érico e ao Gaston, os parceiros, valeu a viagem, em todos os sentidos. Sozinho a gente não faz nada ou faz muito menos.
 
Ao Sebastian e a Natália, assim como aos demais integrantes "honorários" da expedição, valeu também, estivemos todos juntos, sem vocês não seria a mesma coisa.
 
Ao pessoal do Alta Montanha, agradeço mais uma vez a confiança e o espaço no site. Sempre que possível, eu apareço para contar uns "causos".
 
E não poderia faltar uma saudação especial para o pessoal que acompanha as matérias no site, espero que tenham curtido um pouco esse relato parcial das nossas peripécias. Ando meio perdido por estas estradas e montanhas, meio que nem sei mais direito onde moro. Essa comunicação com os amigos, conhecidos e desconhecidos, tem sido importante para manter a motivação e seguir na "pelea".   
 
Um grande abraço a todos !
 
Ricardo Baltazar
 
 
      
 
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Sobre o autor

Texto publicado pela própria redação do Portal.

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