Ser, mais que parecer

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Todos os estereótipos que eu tinha visto em filmes, vídeos e textos se confirmaram nessas semanas em que estive no vale do Khumbu, e também em Kathmandu. Agências com estruturas de campo base excessivamente luxuosas, clientes totalmente inexperientes, sherpas sendo mal tratados, sherpas mal tratando, atitudes anti éticas e imorais, lixo em acampamentos altos, exigência de pagamento pra todo e qualquer serviço ou ajuda, entre outras coisas.

No Peru conheci um dono de uma agência de expedição muito famosa, que atua principalmente no Nepal. Ele teve 3 grupos na temporada, e por lá é conhecido pelo luxo e "padrão Himalaia" de seus acampamentos base, mas também por quase nunca chegar aos cumes, dando as mais esfarrapadas desculpas. Nos meus últimos dias em Kathmandu encontrei com ele e me disse que na próxima temporada vai levar um grupo de clientes pro Huantsán, com 2 sherpas. Eu ri por dentro. O Huantsán é uma montanha dificílima, que nem alguns dos melhores alpinistas da atualidade conseguem escalar, menos ainda uma patota de clientes inexperientes e sherpas com capacidade técnica limitada. Por outro lado, me dá arrepios pensar que esse tipo de "poluição" pode chegar à jóias do alpinismo mundial, como o Huantsán. Mas isso prova a mentalidade dessas pessoas, de que o dinheiro vai comprar qualquer cume, de qualquer maneira. Não vai.

Daí veio a notícia de que a UIAA é contra a instalação de escadas nas partes altas do Everest, e com isso uma enxurrada de opiniões concordando com a UIAA, mas mais estarrecedor do que qualquer bizarrice que eu já vi na escalada, foram as opiniões dos donos do negócio e clientes discordando e achando que é necessário sim colocar mais "trapaças" pra facilitar a vida do milionário que quer chegar ao cume do Everest.

Depois disso, entendi o abismo que existe entre um escalador de verdade, e um turista de montanha. Os segundos não entendem aonde estão se metendo: podendo pagar, passam por cima de tudo e todos pra chegar a um cume. A que ponto chegamos? Minha mãe bem definiu isso quando chamou de "esculhambação" e "oba oba"… Mas boas práticas podem ser ensinadas, e esse abismo diminuído. O pior no entanto, são os que tem o poder da informação (geralmente vinculado à alguma maneira de capitalizar essa informação) e divulgam de maneira irresponsável a ideia de que qualquer um pode chegar em qualquer cume, e de qualquer maneira. Não pode.

Vamos então esclarecer algumas coisas que não são novidade pra ninguém mas às vezes precisam ser repetidas:

Primeiro, as montanhas não são para todos. Assim como por exemplo, um diploma de doutorado, montanhas são pra quem merece estar lá, batalhou pra juntar dinheiro, treinou, aprendeu, se dedicou e adquiriu a experiência necessária, e isso muitos podem fazer. Ir pelo caminho fácil, com os outros fazendo tudo por você, não é montanhismo, é capricho de ricos e milionários.
Felizmente as montanhas mais incríveis do mundo são todas tão técnicas que nunca, nem com cordas fixas, nem com 10 sherpas pra cada cliente, nem com helicóptero, esse tipo de pessoa vai chegar lá. E ainda que algum ganancioso dono de agência consiga vender esse sonho, não vai realizá-lo. No Ama Dablam, da expedição de espanhóis, de 14 do permisso, apenas 2 chegaram ao cume e o restante sequer colocou a cadeirinha ou passou do acampamento 1, mesmo com guias, sherpas e carregadores. Os 2 que chegaram eram os únicos com experiência suficiente pra estar ali. Coincidência? Não.

Segundo, a UIAA tem um código de ética, inclusive um deles é específico para expedições, e diz claramente que as expedições devem "evitar o uso de meios materiais ou financeiros que estejam fora de proporção em relação ao objetivo" (para ver o código completo, em inglês, acesse aqui). Mais ainda, no Código de Montanha UIAA recomendo principalmente a leitura do artigo 9, sobre estilo e excelência. Esse Código não é um artigo romântico e filosófico, mas sim um guia de como manter a atividade do montanhismo e escalada com o caráter de exploração e aventura que são inerentes à ela. Se tiramos esse caráter, vira mero turismo de luxo – assim como passar a lua de mel nas Ilhas Fiji ou em hotéis de luxo de Paris ou Nova Iorque – o que não faz de ninguém um escalador, e com a diferença de que é muito mais fácil voltar pra casa num caixão ou sem dedos.

Terceiro, sobre a comercialização excessiva das montanhas do Nepal: o fato dessa indústria do montanhismo estar nesse estado deplorável não justifica querer resolver um problema criando outro ainda maior. O argumento de que proteções artificiais evitariam mais acidentes, ou que escadas fixas no Hillary Step seriam eficientes e resolveriam a situação de excesso de pessoas na montanha é totalmente grosseiro, e atropela de maneira grotesca e absurda os princípios da escalada – que aliás são o que permitem que os turistas de montanha estejam lá hoje. Se não cultivarmos a escalada de elite, de exploração, a verdadeira escala alpina, em breve não teremos mais gente pra abrir vias novas, que eventualmente são comercializadas, e rendem fortunas à agências, pagas por endinheirados sem noção que provavelmente não sabem fazer um nó oito e precisam de uma babá pra trocar seus mosquetões e jumares a cada seção de corda fixa. Oras! Se é pra ser desse jeito, se só o cume interessa, vamos logo de helicóptero de acampamento a acampamento, ou direto pro cume! E levemos então oxigênio desde o campo base, e porque não também colchões infláveis, aquecedores a diesel, televisão de tela plana e uns DVDs pra passar o tempo, afinal de contas, só o cume interessa não é mesmo?

Em vez de achar que encher a montanha de proteções artificiais é o que vai salvar a vida das pessoas, é preciso pensar o contrário: se o número de incompetentes numa montanha como o Everest (e outras de 8000 m) não fosse tão grande – gente que sequer monta a própria barraca ou carrega o próprio saco de dormir, ou ainda aprende a colocar crampon e usar jumar no campo base, ou ainda não sabem o que é um prussik – não seriam necessários tantos sherpas e a tragédia de 2014 provavelmente não teria sido tão grande. Mas muitas das grandes agências, seus donos e seus clientes não pensam assim, pois com as fortunas que pagam os clientes e recebem os donos, pensam que podem tudo, inclusive desperdiçar a vida de um sherpa, que vira mera mercadoria numa lista de serviços oferecidos pelas expedições. Antes escalar uma montanha não tão técnica e não tão alta de maneira limpa, do que se meter nas mais altas do mundo participando apenas na parte física do processo, só pra se chamar de montanhista ou "ocho milista" e afins. Assim fica fácil subir montanha não é mesmo?

Repito: não se aumenta a segurança colocando escadas, mais cordas fixas e o que mais for. Segurança se aumenta com pessoas que tem experiência e nível pra estar em determinada montanha, que escalam rápido, que dominam diversas técnicas pra lidar com adversidades. Não é necessário ser um ganhador de Piolet D´Or pra escalar uma montanha, mas é preciso um mínimo de conhecimento pra fazê-lo sem colocar em risco sua vida e de outras pessoas, e isso tenho certeza que a maior parte dos turistas das montanhas comerciais do Himalaia não tem. Regra das pessoas sensatas: escolher objetivos de acordo com sua capacidade.

Infelizmente nas discussões que tive sobre esse tema com locais no Nepal, o assunto sempre terminava com um horrendo "it´s a business". Mortes inúteis e por motivos idiotas não me parecem bom negócio, mas talvez seja por isso que quase não ouvimos falar delas. A propósito, a quem interessar, foram 3 mortes em 2 semanas no Ama Dablam na temporada de outuno 2014… me parece um número bastante alto pra um ambiente onde tudo é tão controlado por guias e sherpas.

Nós brasileiros, leigos e inexperientes que somos em atividades invernais, ainda engatinhando no cenário mundial da escalada e montanhismo em grandes montanhas, precisamos ficar ainda mais alertas e nos policiarmos com esse tipo de questão. Pelo que conversei com diversos guias, donos de agência e sherpas no Nepal, infelizmente nossa fama por lá já não é muito boa.

Portanto colegas escaladores, estimados turistas, e futuros praticantes das modalidades da escalada do Brasil: das premissas do sábio Código do Montanhista da UIAA citado mais acima, precisamos ter sempre em mente algumas das principais, como "ver, observar, aprender", "preparar-se", "realizar o que somos capazes", "economizar no uso de meios artificias" e a mais pertinente a este artigo, e para nosso próprio bem, "ser, mais que parecer".

Um 2015 cheio de escaladas a todos, com segurança, responsabilidade e bom senso.
 

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Sobre o autor

Nômade por acaso, Cissa Carvalho nasceu em São Paulo, já morou no Alabama e na Amazônia, e atualmente reside na capital Paulista até que os ventos novamente a levem pra algum destino inusitado do planeta. Trilha desde pequena e conheceu as montanhas com vinte e poucos anos, mochilou a América do Sul, andou pelas montanhas brasileiras e nos últimos anos tem se dedicado ao montanhismo de altitude, e mais recentemente à escalada em rocha. É bacharel em design gráfico e pós-graduada em design editorial.

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