Montanhismo é uma atividade movida pela curiosidade e ousadia que desafia a própria sobrevivência dos praticantes. Por aqui começou nos anos de 1870 com Joaquim (Carmeliano) Olímpio de Miranda, Joaquim Antônio Coelho e outros que subiam as montanhas usando de todo e qualquer dos meios disponíveis. Em 1938 deu um grande salto técnico com José Peon, Affonso (Titio) Hatschbach e o casal Armin e Ana Henkel na conquista do Abrolhos e na sequencia pela abertura da via dos Bandeirantes em 1942 que dá início a escaladas mais técnicas. A chegada de Erwin (Professor) Gröger trazendo da Europa técnicas mais avançadas inicia a era da conquista dos paredões verticais.
Apesar das significativas diferenças nada se perdeu, montanhas e paredes continuavam a serem conquistadas pelas mesmas pessoas munidas de um arsenal de técnicas heterodoxas acumuladas ao longo do tempo. Valia de tudo para se chegar ao cume, desde caminhar contornando obstáculos, escalaminhar se agarrando em moitas de capim, cortar árvores para fabricar escadas ou cravar os pinos metálicos que originaram os famosos paliteiros.
Novo salto ocorre na década de 1970 com a chegada dos irmãos Kent e Daniel Lotus trazendo avançadas técnicas norte-americanas prontamente assimiladas pela dupla Antônio (Bito) Carlos Meyer e Leonel Mendes que acabam por provocar uma ruptura no montanhismo tradicional com muitos dos praticantes migrando para esta nova vertente em que o vale-tudo já não era mais aceitável. Técnicas cada vez mais apuradas e equipamentos realmente eficientes inauguram a era do purismo na escalada sem, contudo, diminuir o ímpeto do montanhismo tradicional que depois de conquistar praticamente todos os cumes significativos passa a se dedicar a travessias cada vez mais longas e complexas.
As limitações de peso e de volume assim como as dificuldades de orientação não permitem ao montanhismo tradicional este mesmo purismo elegante adotado pela escalada esportiva. No tradicional o jogo é bruto e a ruptura parecia irreconciliável.
As travessias no montanhismo tradicional
As travessias começaram meio que por acaso, no calor das circunstâncias. Em 1902 José Nogueira e outros tentavam levar um anemoscópio até o Pico Marumbi, mas abandonam a engenhoca no Bandeirantes seguindo sem carga para o destino final. Desanimados pelas dificuldades da face Sul optam por retornar pela rota do Carmeliano na face Norte, assim fazendo a primeira travessia registrada. Fato similar ocorreu com Waldemar (Gavião) Bücken e Rubens Stresser na conquista do Farinha Seca em 1946. Retornar pela mesma rota tomaria um tempo que não tinham e decidiram se arriscar descendo a face Leste em direção ao Salto dos Macacos.
Já Nobor (Lanterna) Imaguire e os irmãos Orisel e Osíris (Vespa e Arame) Curial planejaram sua travessia em 1949 cruzando pelo Tucum, Siririca e Agudo da Cutia, descendo pelos paredões da face Sul em direção a Antonina, mas encontrando obstáculos intransponíveis redirecionam para Oeste, percorrendo todo o vale do Rio Bonito.
Mas as travessias tomaram verdadeiro impulso nos últimos anos do século passado e nos primeiros do atual com diferentes grupos de entusiasmados montanhistas. A dupla Evandro Wendland e Paulo Oto Ebert desbravam a Siririca – Graciosa e os Poetas da Montanha investem na Farinha Seca que pouco depois é finalmente percorrida de Sul a Norte pelos Montanhistas de Cristo que pouco antes também haviam percorrido a totalidade da mítica Alpha – Ômega.
Nos anos seguintes foram criadas inúmeras outras travessias, muitas irrisórias como Canal – Vigia – Torre Amarela e outras muito longas e cansativas como a Alpha – Crucis que na realidade apenas emenda de forma contínua outras travessias consagradas. Com o advento e a popularização do GPS acrescido do crescente número de montanhistas a percorre-las e marca-las com fitas, acabaram por se tornar trilhas, praticamente eliminando as dificuldades iniciais de orientação, se tornando simples desafios físicos e de controle da ansiedade. O que também não é pouca coisa.
A escalada esportiva
Na escalada não foi muito diferente. Com as vias mais emblemáticas e desafiadoras conquistadas se investiu na dificuldade técnica, treinos extenuantes e repetitivas ascensões para decorar movimentos de forma quase automática nos lances de crux. Pior que o montanhismo tradicional, a escalada se tornou excessivamente regrada em busca de um absurdo purismo minimalista. Por certo que há exceções em ambos os casos e sempre existe gente boa se superando com criatividade e ousadia, mas exceções serão sempre exceções.
Com o montanhismo tradicional em declínio pelo aparente esgotamento de objetivos desafiadores e a escalada esportiva se tornando cada vez mais chata, repetitiva e burocrática chegamos a crise atual com a ascensão dos Corredores de Montanha e o advento dos Guias de Self. Aos Corredores de Montanha só importa a contínua superação dos tempos em trilhas previamente consagradas enquanto as empresas de guias entopem os cumes com turistas de ocasião cujo único objetivo é tirar um self para postar no Instagran. Ambos desconhecem totalmente os pilares que sempre sustentaram o verdadeiro montanhismo.
As Travessias Mistas
Mas é da adversidade e da concorrência que surgem as inovações. Com as travessias mistas o montanhismo encontra novos e interessantes desafios. Mistura habilidades do montanhismo tradicional e da escalada apimentadas por um planejamento impecável. É necessário estar leve e rápido, prever com exatidão tudo que vai precisar e ter um profundo conhecimento dos equipamentos, das técnicas e de suas próprias capacidades físicas e intelectuais para se obter sucesso na empreitada.
As travessias mistas começaram a ser teorizadas a bem pouco tempo, coisa de 2 ou 3 anos e não me surpreende se a ideia tenha ocorrido ao mesmo tempo em diferentes pessoas sem nenhuma conexão direta. O fato é que os Nas Nuvens Montanhismo já planejavam sua estreia na modalidade ainda antes do surgimento da pandemia de covid-19, mas a coisa só tomou forma com a criação do CUME e a escalada da Crista Sudeste do Morro Sete unindo veteranos e iniciantes numa jornada que começou na Curva da Ferradura e seguiu pela crista desconhecida, superando trechos de escalada com recursos mínimos para terminar na Casa dos Garbers.
A escalada desta crista uniu o montanhismo tradicional com a escalada fundindo o melhor de cada “modalidade”. Houve exploração de território, contemplação da paisagem, escalada comprometedora em solo, extrema exposição, exercício de orientação, planejamento e muito companheirismo. Acredito que foi o pontapé inicial para os voos realmente mais altos que se seguiram.
Pouco tardou para Juliano Pereira dos Santos, Natan F.L. Lima e Rodrigo (Xandão) Barbosa desembarcarem no sítio Rio das Pedras e subirem até a base do Itapiroca para escalar a via “10 Anos”. A escolha para a estreia foi extremamente simbólica já que faz referência aos 10 anos de camaradagem dentro dos Nas Nuvens Montanhismo (NNM). Reunidos no final da via ensacam o equipamento e partem para o vara mato até o cume despencando em seguida para o Cerro Verde e Tucum, enquanto o Xandão retorna para efetuar o resgate na outra ponta. Na base das vias novamente se encordam e sobem os 300 metros da via “10 Anos Depois” para só terminar a diversão no sítio da Bolinha com cerveja e pastel.
Mar de Caratuvas X Tucum
Entusiasmados com o sucesso do marco inicial nas travessias mistas decidem por apimentar o negócio. Estudando as cartas planialtimétricas descobrem uma linha quase perfeita, bonita e lógica, ligando o Bairro Alto ao sítio da Bolinha passando pelos desejados Ibitirati e Pico Paraná. Para compartilhar a diversão e dividir os esforços convidam o Adriano (Cruel) José Safiano e iniciam a caminhada as 16h00 pela Trilha/Estrada da conceição na tarde de 21 de agosto de 2021 até o Disco Porto.
Com o cair da noite também a temperatura despenca e prosseguiram por dentro do riacho até a base da via “Mar de Caratuvas”. Última chance para beber água fresca e cada um ficou mais pesado carregando 5 litros do precioso líquido que precisaria durar pelas próximas 24 horas.
A subida é forte e muito íngreme antes do primeiro trecho de corda fixa. O Cruel é o primeiro a encarar a canaleta vertical e suja, encontrando 2 chapas em dupla antes de continuar escalaminhando. Logo se reuniram para o segundo lance de corda fixa num diedro barrento. A noite estava fria e perfeita com a claridade da lua cheia iluminando de cima o compacto mar de nuvens e por um momento acabaram por se distrair. Pensavam ter alcançado a P2 e se encordaram para chegar na P3. O Natan começou guiando em meio a uma floresta de caratuvas sem rastro algum. Subiu muito a procura das proteções indicadas no croqui até se dar conta da roubada. Não havia mais retorno e a direita se desenhava um vazio.
Seguiu tateando cuidadosamente, lutando contra o arrasto da corda, a procura de uma fenda para instalação de alguma peça móvel para acalmar a mente. Finalmente escapando das caratuvas, alcançou um platô na rocha e avistou uma fita reflexiva 10 metros acima. Ainda suando frio, montou a parada e liberou a corda para os amigos experimentarem do veneno dentro do mato fechado e vertical. Tocava as badaladas das 23 horas e estavam perdidos na via sem entender o croqui. O cansaço, a confusão e a fome não são boas conselheiras e resolveram esticar o esqueleto bem onde estavam. Mas no platô só cabiam 2 e sobrou apenas um pedaço de trilha quase plana para o Natan. Durante o jantar queimaram os neurônios para se localizar no croqui e eureca! Estavam bivacando na P1. No escuro confundiram a P0 com a P2 e furaram o planejamento, mas agora podiam dormir sossegados.
O sol ensaiava despontar e já estavam encordados com o Cruel puxando a primeira enfiada sobre um diedro barrento e sujo que termina num lance de sexto grau. A pesada mochila ajudou na primeira vaca e o Cruel despencou, mas bom cabrito não berra, voltou a guiar sem o tampão de um dos dedos e mais algumas escoriações nas mãos, venceu o lance e seguiram se revezando na ponta da corda até o platô Jean Claude onde haviam planejado pernoitar. Este platô é apenas mais espaçoso e coberto de mato.
As enfiadas se sucederam com o calor do Sol fritando os miolos e a água devidamente racionada. Um litro d’água por enfiada era o maior desejo e o arrasto da corda quintuplicava o esforço. A via realmente justifica o nome exigindo muita atenção na navegação em meio a um verdadeiro mar de caratuvas. Para alcançar a P7 passaram veneno percorrendo 55 metros com apenas 2 proteções escondidas pelas caratuvas e quase no final suaram sangue para chegar na parada.
O trecho em pedra razoavelmente limpa entre a P8 e a P9 se sagrou como a enfiada mais bonita da via com lances bem mais divertidos do que os anteriores, mas o Juliano já vinha racionando os últimos vestígios de água e a tempos nem bebia, somente molhava a boca. Toda a preocupação e o esforço agora eram direcionados para finalizar a via ainda com luz do dia. O visual na penúltima enfiada foi fantástico e não encontrando os bicos de pedra para proteção esticaram demasiado a corda.
Depois de 11 horas de esforço contínuo finalizaram a via Mar de Caratuvas, as 17h30’ sem mais uma gota d’água. Vagarosamente alcançaram o cume do Ibitirati, cruzando pelo União e na escuridão da noite chegaram ao Pico Paraná. Findou a solidão e o distanciamento na parede vertical onde só se ouvia o barulho do vento e o cantar de algum pássaro distante. O cume estava superlotado de barracas e turistas apertados naquele pequeno espaço. Impossível cruzar sem tropeçar num cordolete ou pisar em alguém mais distraído. O Juliano estava seriamente desidratado e torcendo as pets conseguiram extrair algumas gotas d’água que dividiram com parcimônia antes do Cruel se adiantar na descida para tentar a sorte na bica atrás do Abrigo de Pedras. Era a cartada final para evitar uma caminhada desgastante até o Abrigo Um (A1).
O Abrigo Dois (A2) estava igualmente superlotado de barracas e deixando o Juliano como guarda volumes, cuidando das mochilas o Natan foi ao encontro do Cruel que extraia água da pedra. No retorno encontraram o Juliano segurando um pastel em cada mão, mas o altruísmo acabava aí. Ganhou os pastéis de um turista piedoso pela sua aparência de acabado e não conseguiu devorar com a boca seca. Comeram e beberam fartamente, mas arranjar um espaço para deitar o esqueleto foi outra odisseia. Onde não havia barraca estava minado com dejetos biodesagradáveis, mas depois de muito circular finalmente encontraram um pequeno espaço forrado de capim macio que proporcionou uma boa noite de sono apesar da gritaria geral e da Lua cheia iluminando diretamente a cara.
Leia essa aventura completa na coluna do Natan
O dia amanheceu radiante e temperatura estava agradável quando iniciaram o desjejum as 5h30’ e uma hora depois já estavam a caminho do Itapiroca antes que a zoeira no A2 recomeçasse. Pouco depois das nove horas um Juliano refeito já guiava na via 10 Anos. Depois de um pequeno vara mato chegaram ao cume onde se comunicaram com o Rodrigo (Xandão) Barbosa que pernoitou no Camapuã e com a Luciana (Lu) Kielt que estava a postos para o resgate.
A água há muito deixara de ser problema e desceram a Crista do Itapiroca para as 14h00 encontrar com o Xandão no Tucum e seguirem juntos para a base da via 10 Anos Depois. Pelos 300 metros seguintes o Natan escalou em dupla com o Cruel enquanto o Juliano subia com o Xandão. A escalada de pura aderência foi tranquila e nem teriam condições físicas para encarar algo mais complicado. Já no finalzinho pararam para as fotos da Lu que os esperava entusiasmada.
As 16h30” finalizaram o último lance de escalada e restava ainda a longa pernada até o sítio da Bolinha onde o Leandro (Bolívia) Pereira da Silva os esperava com cervejas estupidamente geladas.
Travessia Itapiroca x Tucum
Após perder o bonde, apesar de convidado, para a travessia anterior Eduardo Cabral ficou encasquetado com a ideia e depois de quatro dias de chuvas rumou para o Itapiroca na companhia de Celso (Celsinho) Luis Maceno Filho. O plano era também emendar a “10 anos” com a “10 anos depois”, mas o destino tem suas manhas.
Na Pedra do Grito são agraciados com a visão de um belíssimo mar de nuvens e duas horas depois já se encordam na base das vias. O Itapiroca tem vias para todos os gostos, de quarto a sétimo grau, o que permite um aquecimento gradual antes de encarar as mais comprometedoras, mas Cabral sentiu as mãos coçarem e entra na “Véio Loko” sem alertar o companheiro. A via tem saída forte, lances delicados e uma exposição que pode abalar o guia. Terem abortado as vias de aquecimento cobraram seu preço.
Antes do meio dia já desciam pela face Norte do Itapiroca em direção ao Tucum por trilha consagrada e na subida aproveitam para visitar o Cerro Verde desfrutando das esplendidas vistas do Pico Paraná e do Siririca para o lado oposto. A meio caminho do Tucum se perdem por instantes em caminhos de rato, mas é na escalaminhada da face Sul que o sol da tarde frita os miolos. A idéia de subir todo aquele paredão para depois descer tudo até a base das vias maltrata o pensamento.
Para Cabral estava tudo ótimo; subiu uma via que já gostava, fez uma travessia inédita para ele, pela primeira vez pisou no cume do Cerro Verde e agora as 14h40 estava encordado para encarar a “Arestona”, uma via que a seu gosto já nasceu clássica. Duas horas depois de muito suor, sangue e diversão começam a ensacar todo o equipamento no cume do Tucum, mas o Celsinho não se mostra muito feliz.
Confortavelmente instalados no cume do Camapuã e entregues a boa arte de devorar um bem merecido lanche diante do estupendo pôr do sol, finalmente o Celsinho desabafa que lhe incomodava o fato de ter sofrido demasiadamente numa via de quinto grau como a “10 anos”. Só então Cabral confessa a fraude esclarecendo que subiram a “Véio Loko”, uma via classificada em 7A e o Celsinho desceu da montanha livre, leve e solto.
Foram 16,7 quilômetros percorridos com altimetria de 2.766 metros, sendo 330 metros de escalada em rocha, em 13 horas e 16 minutos.
Confira no link https://www.relive.cc/view/vMv8ypzXwNO
O montanhismo continua desafiador a todos, mas para alcançar o novo cume agora é necessário um novo montanhista que integre as qualidades generalistas dos antigos e as habilidades recém adquiridas. Força e resistência sempre foram fundamentais nas longas caminhadas, técnica e destreza nas paredes também, mas isto não é mais o suficiente. Há de se resgatar o planejamento e a navegação apurada com muita criatividade. As possibilidades voltam a ser infinitas.
Não acredito em soluções definitivas, mas certamente as travessias mistas vão proporcionar diversão garantida por ainda muitos anos.
3 Comentários
“As possibilidades voltam a ser infinitas”.
Isso aí, Fiori. Excelente artigo!
Muito bom o texto. Poucos tem essa leitura da cena atual.
Caraca vi os caras fazendo a via Mar de Caratuvas, eu estava no Taipa….só víamos a lanternas naquela imensidão ingrime que eh a encosta Leste do Ibitirati…mto top… parabéns!!!