“Transpirenaica”, a difícil e espetacular Travessia dos Pirineus

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Conheça a rota Transpirenaica ou Travessia dos Pirineus com mais de mil quilômetros que cruza essa bonita cadeia de montanhas, do Mar Mediterrâneo ao Cantábrico.

Parque Nacional dos Pirineus, entre Espanha e França. Entrei por um lado e saí por outro no retorno ao território espanhol.

Três anos e meio atrás tive a felicidade de percorrer o mágico Caminho de Santiago de Compostela, milenar rota que anualmente leva milhares de pessoas para a Espanha. Fiz o tradicional Caminho Francês, tendo retornado para casa um Marcello muito diferente do que o que embarcou para a Europa em maio de 2019. Encontrei novo sentido para a vida e abri meus olhos para o mundo.

E, nas pesquisas para escrever sobre essa jornada, acabei descobrindo outra rota que se tornaria a “maior aventura da minha vida”. Pelo menos até agora. Lendo sobre os Pirineus, por onde passa a primeira etapa “del Camino”, ouvi falar pela primeira vez sobre a Transpirenaica, uma travessia que corta grande parte dessa imponente cadeia de montanhas, de “ponta a ponta”. Ela começa em Llançá, Girona, e termina em Hondarribia, País Basco, na Espanha, passando algumas vezes também pela França, iniciando no Mar Mediterrâneo e finalizando no Mar Cantábrico.

Último acampamento da cicloviagem, no Camping Faro de Higuer, Hondarribia, Espanha.

Quando vi as primeiras imagens, os impactantes cenários montanhosos e construções históricas me apaixonei imediatamente. Após longos meses de pesquisa e captação de recursos para tal empreitada, em setembro passado tive a felicidade de conhecer os – agora posso dizer – inesquecíveis Pirineus. Foram 22 dias de pedal, totalizando 1.245 quilômetros percorridos e mais de 30 mil metros de altimetria acumulada, rendendo muitas histórias e experiências em duas rodas.

A Transpirenaica começou a ser percorrida nos anos 90. Após a publicação do livro do espanhol Jordi Laparra, os europeus, principalmente, começaram a realizar esse difícil percurso e hoje existe até uma prova de MTB o utilizando como base. Decidi seguir o roteiro “original” para atravessar a imponente cadeia de montanhas que por várias vezes é cortada pela imaginária linha de fronteiras entre diferentes países. Mas, durante as pesquisas, constatei que seria possível “melhorar” essa cicloviagem.

Originalmente a travessia não passa no principado da Andorra, entre Espanha e França. Mas, quando vi que ficava a apenas 30 quilômetros do trajeto marcado no GPS, inclui esse destino na minha viagem. Também fiz essa mudança para conhecer icônicos locais do Tour de France, prova ciclística mais antiga e famosa do mundo, e para refazer, de maneira diferente, o primeiro segmento do Caminho Francês de Santiago.

No principado da Andorra, entre Espanha e França, que originalmente não faria parte da rota Transpirenaica

Sobe, sobe, sombe… Nesse dia foram quase três mil metros de altimetria acumulada, em aproximadamente 30 quilômetros.

Início e campings

Usei como base a famosa cidade de Barcelona, na Catalunha. De lá, segui de trem para Llançá, onde montei meu primeiro acampamento. Esse, aliás, foi outro grande diferencial em relação à expedição anterior em terras europeias. Há muito poucas opções de albergues ou hospedagens “mais em conta” na região dos Pirineus. Por outro lado, os campings são bastante comuns e encontrados a cada 50 quilômetros de distância ou menos. Dessa forma, tive que incluir na minha bagagem uma barraca e material para cozinhar ao longo do percurso.

Dureza de verdade

Em muitos trechos foi necessário empurrar a bicicleta porque, ao que parece, a rota não é muito utilizada ou vem sendo deteriorada ao longo do tempo, o que acaba sendo um complicador em trechos íngremes. Um dos exemplos que talvez tenha se perdido o traçado original da Transpirenaica, pensado mais de duas décadas atrás, é o que fica entre Aguiró e El Pont de Suert. Cerca de oito quilômetros depois de La Torre de Capdela a estrada dá lugar a uma trilha de montanha. Começa a ficar muito íngreme, aumenta consideravelmente o número de pedras grandes e soltas, surge um pequeno rio e quando percebe o ciclista está carregando sua bicicleta e bagagem nas costas, até o topo de uma montanha, sendo necessário realizar o mesmo procedimento do outro lado…

Pedal, caminhada, escalada… Trecho entre Aguiró e El Pont de Suert está intransitável para ciclistas.

Caminho inóspito

Outro ponto que precisa ser observado por quem se propõem a realizar a Transpirenaica é a dificuldade em relação aos pontos de apoio, na grande maioria dos dias. Houve uma etapa em que pedalei mais de 50 quilômetros sem encontrar nenhum estabelecimento comercial ou sequer alguém na porta de uma residência, por exemplo, para pedir um pouco de água. Como já tinha essa informação, sempre me organizava para sair já com todo o lanche da etapa e o máximo de água possível. O que encontrasse pelo caminho seria lucro.

Atravessando montanhas

Se analisado etimologicamente o nome Transpirenaica ele é autoexplicativo, ou seja, significa atravessar os Pirineus. Porém, só se começa a vivenciar a experiência das grandes altitudes da cadeia de montanhas no terceiro dia. No roteiro tradicional, a saída é em Camprodon e, 15 quilômetros depois, uma serrinha asfaltada leva até Tregurà. Logo após cruzar esse povoado de origem celta, a primeira experiência de pedalar entre montanhas de grande altitude, com a estrada já batendo cerca de 1900 metros de altitude, cruzando o Parc Natural de les Capçaleres del Ter i del Freser.

Poucos quilômetros depois do povoado celta Tregurá, onde se começa a vivenciar as altitudes dos Pirineus.

Dois parques em um dia

Na etapa com saída em Bagá, povoado que cheguei após alcançar os 2.106 metros de altitude do Coll de Pal, local onde já se realizou por mais de uma vez etapa da Volta da Espanha, atravessei duas unidades de conservação. A primeira, o Parc Natural del Cadí-Moixeró, marcada mais pela vegetação característica de regiões mais frias e altas, e, logo em seguida, o Parc del Massís del Pedraforca – esse sim chama atenção pelas imponentes formações rochosas, como a própria Pedraforca. Foram duros 17 quilômetros entre esses dois parques, com 1.265 metros de altimetria acumulada e aspereza até na descida, recheada de pedras soltas que me obrigaram a empurrar a bicicleta por um bom trecho.

No famoso Coll de Pall, onde já se realizou a famosa Volta da Espanha algumas vezes

“Bate, bate, bate na porta do céu”

Também com muita subida, mas sendo possível pedalar em sua totalidade, o trecho entre as cidades de Llavorsí e La Torre de Capdela é inesquecível. Muitas e imponentes montanhas, estradinhas de terra bem firme e pequenas pedrinhas, aproximadamente 2.200 de altitude e um frio típico de inverno, mesmo em pleno verão… A descida é por um lugar chamado Vall Fosca, 12 km agora com grandes e incontáveis pedras que fazem o terreno morro abaixo ser tão lento quanto no sentido contrário.

O dia mais bonito

No 12º dia de cicloviagem, entre Campo e Escalona, avistei pela primeira vez o primeiro atrativo que me encantou quando pesquisei sobre a Transpirenaica, o centenário Parque de Ordesa y Monte Perdido. Mesmo de longe, já dá para se ter uma ideia da sua grandiosidade. Em Escalona dormi sonhando em atravessar o Cânion de Añisclo e depois seguir para as partes altas dos Pirineus novamente. O dia começou nublado e, após o povoado de Nerín, veio muita chuva, vento e frio. Busquei abrigo e aguardei para seguir montanha acima, via “Sierra de las Cutas”, tendo a felicidade de chegar ao topo com sol e céu azul para sentar no Mirante de Ordesa e admirar por um longo tempo os girantes paredões entre Espanha e França, imaginando um dia poder caminhar ou escalar boa parte dessas montanhas. Com certeza, esse é o dia mais bonito dessa rota.

Na região de Laspuna, onde se avista pela primeira vez o Parque de Ordesa e Monte Perdido

No mirante da Sierra de Las Cutas, onde se tem a melhor vista para o imponente Parque de Ordesa e Monte Perdido

Há muito mais para ver

Desse mirante até o povoado abaixo, Torla, são 13 quilômetros de descida bem duros também por conta das já citadas pedras soltas. A rota original indica parada nessa cidadezinha, mas tomei rumo contrário, o Vale do Bujaruelo, vizinho ao Ordesa y Monte Perdido. Minha intenção era tirar uma “folga do pedal” para um trekking nessa região, mas um dia inteiro de chuva não permitiu. São muitas possibilidades, tanto que vale uma expedição somente para essa região entre Espanha e França.

No primeiro contato com as altitudes pirenaicas, peguei tempo fechado e até bastante chuva.

No Vale do Bujaruello, a chuva insistente atrapalhou a folga para um trekking nessa bonita região.

Tour de France

Meu acesso à França foi pela rodovia D934, depois de subir 14 íngremes quilômetros na A136, na Espanha, chegando ao encontro das duas no Col de Portalet, que se eleva a 1.794 metros de altitude e está na área do Parc National dos Pyrénéos. Minha ideia era seguir direto da Espanha para o cume do Col de Aubisque, um dos icônicos trechos do Tour de France, que inclusive passou por lá dois meses antes de mim, e lá, na casa dos 1800 metros de altitude, realizar um acampamento selvagem. Porém, a previsão indicava uma forte tempestade naquela tarde e, por conta disso, optei em seguir diretamente para a Vila de Laruns.

Na subida para o Col de Aubisque ainda havia as mensagens de incentivo aos atletas que disputam o Tour de France.jpg

No dia seguinte, mais chuva. Somente lá pelas 13h o clima melhorou um pouco. Mesmo com chuvisco e muito frio deixei a maior parte dos equipamentos no camping e segui para o Aubisque. Não poderia deixar de vivenciar a experiência de percorrer a mesma estrada por onde centenas de atletas já passaram disputando metro a metro um lugar ao sol, montanha acima, como se estivessem pedalando no plano. E, apesar da adversidade climática, valeu cada segundo.

Ainda estavam na pista as pinturas feitas para incentivar os ciclistas e, a cada quilômetro, as placas indicando inclinação e distância para o cume. Impossível não imaginar a gigante torcida vibrando com a passagem dos pelotões. Quando cheguei ao topo da montanha, as gigantes esculturas das bicicletas, em homenagem à prova, deram o sinal que eu havia concluído a jornada. Mesmo com todo o entorno tomado pelas nuvens, por vezes não enxergando mais do que um metro à frente, estava feliz por demais para reclamar de qualquer coisa.

Mais Tour e La Vuelta

O objetivo inicial era conhecer também o Col de Soulor, mas as condições climáticas, que atrasaram o horário de saída, me impediram. Para voltar para Espanha, escolhi outro caminho. Subi o Col de Marie Blanc, que em 2023 vai receber o Tour de France, e desci em Escot, na França, pegando a rodovia N134 até o Col de Somport, nova fronteira com terras espanholas e onde, nesse país, já ocorreu etapa de “La Vuelta”. O retorno foi bem longo, quase 100 quilômetros e 2.308 metros de altimetria acumulada.

O Caminho de Santiago

A antepenúltima etapa foi de reencontro. Em Roncesvalles, Espanha, a Transpirenaica cruza com a rota que me fez descobri-la, o Caminho Francês de Santiago de Compostela. Dormi mais uma vez no Real Colegiata e, no dia seguinte, fiz o primeiro trecho da peregrinação ao contrário, de Roncesvalles a Saint-Jean-Pied-de-Port. Dessa vez foi de metro em metro e não contando quilômetros, como na anterior. Relembrei, comparei e revivi cada pedacinho na agora minha despedida dos campos de altitude dos Pirineus. Foi especial demais. Acho que demorei mais do que para subir em 2019 – mesmo sendo, no sentido França, mais descida do que subida. Mas não tinha pressa nenhuma. Fiz foto, contemplei, fiquei rindo igual a um bobo o tempo todo.

Três anos e meio depois, o reencontro com a famosa placa do Caminho de Santiago, em Roncesvalles, Espanha

O reencontro com o mar

Pelo projeto inicial, pretendia realizar a travessia em 19 dias, mas foram necessários 22 para percorrer o difícil trajeto montanhoso. Em um bom darwinismo, é preciso se adaptar para continuar em frente. Assim, no final dos 1.245 quilômetros percorridos entre Llançá e Hondarribia eu estava bem diferente do ciclista que havia desembarcado no aeroporto de Barcelona semanas antes. Havia crescido como pessoa e ganhado muito mais do que perdido ao tomar decisões necessárias para a viagem fluir melhor. Pela rota original, de Saint-Jean-Pied-Port deveria retornar em direção à Espanha e seguir por trilhas e montanhas até chegar a Irun e posteriormente ao destino final. Porém, pelo que apurei nas minhas pesquisas, essa rota é bastante mutável e, dificilmente, alguém a percorre exatamente pelo trajeto idealizado mais de duas décadas atrás.

Mais de 20 dias depois, o reencontro com o mar. Comecei no Mediterrâneo e terminei no Cantábrico, na região do País Basco

Assim, resolvi seguir pela rodovia D918 até outra Saint-Jean, agora a “de Luz”, também na França. Ali, o primeiro contato visual com o mar novamente. Mas não fui à beira-mar. Peguei outra rodovia, a D912, margeando o Cantábrico até o povoado de Hendaye, onde cruzei a fronteira para a Espanha pela última vez. Já estava em Irun, cidade onde, aliás, tem início outra rota que leva a Santiago, o Caminho do Norte. Apenas uma passada rápida e toquei em frente até a praia de Hondartza, em Hondarribia, para o reencontro oficial com o mar.

 

Dessa vez, infelizmente, não foi possível me banhar – como fiz no Mediterrâneo. Somente molhei os pés, senti o geladinho do oceano Atlântico Norte e comemorei a finalização, com sucesso, desse grande desafio. Em seguida, toquei para o camping Faro de Higuer, no topo de uma “montanha”, ao lado do farol de mesmo nome, onde montei minha barraca pela última vez. E, agora, com uma vista espetacular para as ondas quebrando nas rochas ao lado do Cabo Higuer.

É muita subida!

Além da longa distância, outro diferencial dessa cicloviagem é a quantidade de montanhas subidas e descidas. No total, 31.137 metros de altimetria acumulada e quase o mesmo número no sentido inverso. Outro fator que precisa ser observado é os terrenos difíceis que precisei atravessar, íngremes e pedregosos, portanto impossíveis de serem vencidos pedalando uma bicicleta carregada com roupas, ferramentas para uma eventual manutenção e material de cozinha e camping. Mas empurrei onde foi preciso empurrar com grande felicidade, comemorando a oportunidade de poder realizar tal caminho que, pelo que constatei em extensa pesquisa, foi realizado em sua totalidade por um brasileiro pela primeira vez. Para saber e ver mais sobre essa espetacular cicloviagem, acesse o Instagram @mochileiro_marcello

 

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Sobre o autor

Marcello Medeiros é Biólogo e Jornalista, escrevendo sobre montanhismo e escalada desde 2003. Praticante de montanhismo desde 1998, foi Presidente do Centro Excursionista Teresopolitano (CET) entre 2007 e 2013.

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