A travessia do Morro Doce

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O Morro Doce é um bairro do Distrito Anhangüera que deve seu nome ao fato de estar situado no sopé dum respeitável serrote, onde seus primeiros habitantes cultivavam cana-de-açúcar pra produzir cachaça. Localizada as margens do km 24 da Rod. Anhangüera, esta imponente elevação é conhecida pelos locais como “Morro do Jesus” por exibir a inscrição “Jesus” a quem trafega pelo Rodoanel Mario Covas. Tomei então um dia pra cruzar toda extensão deste morro numa pernada que começou em Sampa e findou em Osasco. Caminhada árdua que, apesar do desnível baixo de 300m, além de ganhar os 1030m do ponto culminante tem como recompensa a melhor vista dum dos maiores cartões-postais da cidade, o Pico do Jaraguá.

Pro rolê existem duas conduções que já deixam no começo da pernada: uma que parte da Lapa e outra do centro. Por motivos logísticos decidi me encontrar com Nando na segunda opção, no caso, na frente a estação do Metrô Anhangabaú onde embarcamos no latão com letreiro “Morro Doce”. O busão pegou um pouco de transito na região central da cidade e só começou a andar um pouco mais quando cruzou a Lapa pra ganhar de vez a Rod. Anhanguera  (SP-330). A janela da direita do latão emoldurava a silhueta espetada do Pico do Jaraguá, enquanto a da esquerda descortinava a do nosso destino, de contornos mais abaulados mas não menos imponentes. No trevo com a Estrada de Perus o latão deu a volta pra logo depois deixar a Anhangüera e penetrar no miolo dos minúsculos bairros daquele distrito, indo de encontro ao sopé do Morro Doce.

Subindo por estreitas vielas do Jd Britânia praticamente em linha reta, enfim saltamos no ponto final do buso, na Rua Eduardo Grusius. Era pouco antes das 10hr e o dia mostrava-se lindo quando arrumamos a mochila nas costas e apenas continuamos subindo a mesma via, morro acima, nesta área predominantemente residencial.

Num piscar de olhos o asfalto tangencia uma matinha por onde cai um córrego e empina forte de vez, fazendo suor escorrer pela ponta do nariz. Olhando por cima do ombro percebo o quanto já subimos, envoltos numa paisagem urbana que remete á La Paz, onde casebres se espremem pelas dobras íngremes e fundas da serra.

Antes de chegar no final da via desvio na última saída á direita e pronto, não tem mais erro. O asfalto dá lugar á terra batida no mesmo momento em que cruzo pelas últimas (precárias) moradias que disputam espaço já na encosta florestada do morro, teimando em subi-lo cada vez mais. Isso porque o bairro vem se expandindo com a iminente construção dum Ceasa perto dali. No final da íngreme via de chão o terreno aparenta nivelar e avisto a vereda nascendo em meio ao alto capinzal e se pirulitar na diagonal, encosta acima. Pronto.

Num piscar de olhos o borburinho urbano mesclado álgum cântico evangélico dá espaço ao farvalhar do arvoredo e ao cantarolar das aves. Mas logo aparece uma bifurcação e a gente simplesmente segue reto, ignorando a via mais batida que continua subindo pela esquerda. A gente então cruza uma clareira pra depois dar continuidade á pernada pela encosta, que se mostra íngreme e repleta de pasto tomando conta do caminho, até finalmente sumir de vez. No entanto, com empenho é possível alcançar um descampado na parte mais baixa da crista do serrote. Ali se tem uma bela panorâmica do outro lado da serra, que privilegia toda extensão do fundo e verdejante vale da Faz. Itahyê, onde o espelho dágua dum lago reflete o céu límpido daquela manhã.

Com esforço, é possível avistar logo atrás o abaulado serrote do Jaraguá-Mirim e a urbe de Alphaville e Tamboré.
Após descansar do lado de gravatás espinhentos retrocedemos até a bifurcação anterior e prosseguimos a ascensão pro alto do morro. Daqui em diante a subida é suave e se dá praticamente numa linha reta interminável na direção sudeste, numa trilha cujas margens se encontram ornadas de várias tipos de flores. O inconfundível corte vertical na encosta sugere da vereda ter sido outrora uma estrada de extração, uma vez que o bosque de eucaliptos em volta corrobora essa suposição. Mas não demora pra sair no aberto, onde os horizontes do quadrante norte se expandem na mesma medida que a brisa fresca sopra o rosto. No caminho reparo numas discretas ramificações tocando pra direita, que são sumariamente ignoradas em prol do cume e da travessia.

Assim, pouco antes do meio-dia alcançamos uma enorme clareira antecedendo o cume, e o Nando encostando o esqueleto no chão me obriga a descansar junto dele. E assim corre nosso breve descanso naquele lugar com vestígios de fogueira, sujeirinhas de pequenos carnívoros e, acredite, nenhum lixo. Isso é surpreendente se levar em consideração que se está bem do lado dum agitado centro urbano. Mas surpreende também a vista dali, que descortina uma bela panorâmica de toda urbe do Distrito Anhanguera esparramando sua geometria cinza em volta, delimitado ao fundo pela silhueta escarpada da Serra do Tico-Tico e da Reflora, pertencente a Cia Melhoramentos, e o Morro do Pavão, já na Cantareira. Em tempo, como era dia útil o alto do morro era totalmente nosso, mas depois tomamos conhecimento que aos finais de semana costuma ser muito mais (mal) frequentado. Ainda assim minha dica é ir com bem pouca gente, sem chamar muito a atenção e de forma discreta. Estas precauções são necessárias sempre na proximidade de centros urbanos periféricos  pois durante a subida não deixamos de reparar que havia gente nos encarando.

Revigorados, damos continuidade á subida agora por uma trilha bem menos óbvia, mas ainda assim ganhando altitude de forma suave e quase imperceptível. Mas não demora pra picada sumir de vez e nos obrigar a avançar pelo vegetação baixa da encosta, desviando da floresta mais cerrada que passa a tomar conta do alto. Na verdade bordejávamos a floresta pela esquerda nos segurando em sua vegetação, quase na beirada dos precipícios ao lado. O avanço era moroso não apenas pela ausência de caminho, mas pela declividade do terreno, das voçorocas de capim-gordura e touceiras de samambaias que surgiam a nossa frente. Mas suando em bicas e devagar e sempre atingimos um patamar descampado que pareceu ser o cume, pois havia uma “bandeira” improvisada no centro. Sentamos então um pouco pra descansar naquele pasto ralo, onde o celular high-tech do Nando marcava 1030m, mas devidamente recompensados com uma vista frontal belíssima do Pico do Jaraguá. O cartão-postal de Sampa erguia-se de forma imponente, feito um castelo de mato e pedra, tendo ao lado o trevo do Rodoanel e a geometria da urbe paulista, bem atrás. Pausa pra muitas fotos!

Após beliscar um lanche e bebericar mais goles de água prosseguimos a travessia do morro agora por dentro da mata, pela crista. Esta decisão foi tomada pra evitar os penhascos da encosta e por encontrar vestígios de trilha no alto da cumieira. E assim fomos avançando pela abaulada crista com mais desenvoltura, no meio da floresta, sem perder os marcos concretados e marcas de facão no arvoredo, provavelmente feitas por caçadores.

Eventualmente havia que desviar mato caído, engolir teias-de-aranha ou se desvencilhar de vegetação espinhenta que teimava em nos segurar, fácil de vencer. Na verdade a mera existência de uma rota, mesmo parcialmente fechada, era melhor que rasgar mato fechado ali.

Fomos então avançando até que a vereda sumiu em definitivo. Não bastasse, o celular do Nando ficou sem bateria e nos obrigou a navegar a partir dali á moda antiga, ou seja, com bússola. Ali, sentados no meio da mata, fomos obrigados a tomar decisões de rota, uma vez que retornar estava fora de cogitação. Minha idéia original era tocar pra leste/nordeste e sair na Rod. Anhangüera, mas a forte declividade e a mata espessa nos fez repensar o caminho a seguir. Optamos então tocar pra sul/sudeste, onde o terreno se mostrava muito mais amigável e decerto cairíamos na Faz. Itahiê. Pronto.

E assim começamos a descer bem forte, ora em linha reta ora em ziguezagues, conforme o terreno e a vegetação permitissem. As vezes encontrávamos vestígios de trilha precária, que utilizávamos apenas se fosse na direção desejada, mas que logo depois desapareciam. E assim fomos perdendo altitude aos poucos, nos firmando na mata e afastando obstáculos que ficassem no caminho. Eventualmente surgiam frestas na mata que mostravam o quanto faltava pra chegar no pé da serra, o que as vezes era desanimador pelo mar de vegetação que eram emoldurados. Mas devagar e sempre prosseguimos nesse mesmo esquema adotado, e sempre sem perder a direção sul/sudeste.

Chegamos enfim no que pareceu uma nascente, que na sequência cavava um pequeno e estreito vale que resolvemos acompanhar não apenas por ir na direção desejada, mas porque sua água nunca foi tão deliciosa diante nossos cantis vazios. A descida por aquele fundo vale ora se dava pelas pedras do leito, pela água ou alternando suas margens, conforme o caminho se mostrasse mais desimpedido. Numa destas margens encontramos restos duma garrafa pet, cunhando nossa decisão de ter seguido por ali. Desnecessário dizer que até aquele momento estávamos imundos de suor, mato e terra.

A perda de altitude enfim terminou as margens dum enorme banhado, que tivemos que contornar chafurdando a bota na água e lama, até que finalmente emergimos numa estrada, que revelou ser da Faz. Itahiê. Fim de perrengue! Mas nossa presença não passou despercebida, uma vez que apareceu um tiozinho com dois cachorros estridentes a quem explicamos nossa situação. Ele era um segurança local que, assim como outros que andam motorizados pela estrada, evitam a entrada na propriedade e nos lagos da fazenda onde não raramente morrem jovens afogados. Contou de caçadores no meio da mata, de algumas particularidades da fazenda e deu indicações de busão pra sair dali.

Fomos então gentilmente conduzidos á saída, no caso, a entrada da fazenda por aquele setor, nas beiradas do bairro Três Montanhas. Esse bairro nasceu do loteamento feito pelo então proprietário da Fazenda Doutor Manuel Paiva Ramos, na década de 40,e seu nome se deve a estar situada entre o Pico Jaraguá, Morro Doce e Jaraguá-Mirim. E assim, pouco antes encostávamos num boteco á espera de condução até a Estação Osasco da CPTM, pra depois cada um seguir pro seu respectivo lar.

O Morro Doce é um bairro tranquilo e pacato mas isso parece ter seus dias contados. Atualmente o lugar passa por uma expansão acelerada de sua urbanização, que agora vai tomando inclusive as encostas do imponente serrote. No próprio inicio da vereda de acesso ao pico os mesmos moradores adentram cada vez mais nas dobras do morro, reduzindo ainda mais o pouco verde que aquele contraforte ainda exibe. Enquanto ainda resta morro pra trilhar, é possível tentar novas rotas no sentido norte, rumo Vila Palmares ou até os limites da Fazenda Itahiê daquele quadrante. Ou então tentar passar pela inscrição “Jesus” e chegar na Rod. Anhanguera mediante muita ralação. Ou simplesmente alcançar o alto e se deliciar com uma vista do Pico do Jaraguá diferente do habitual.


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Sobre o autor

Jorge Soto é mochileiro, trilheiro e montanhista desde 1993. Natural de Santiago, Chile, reside atualmente em São Paulo. Designer e ilustrador por profissão, ele adora trilhar por lugares inusitados bem próximos da urbe e disponibilizar as informações á comunidade outdoor.

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