Formávamos, com nossas habilidades de arquitetos recém-formados, rápidas transformações: o chão nos postos de combustíveis desses vilarejos à beira da estrada virava nossos assentos, a parede se unia e os transformavam em confortáveis poltronas; com uma caixa de madeira, tínhamos uma mesa e com um isqueiro instalávamos um fogão. Cortávamos alimentos nessa cozinha com a tábua apoiada no chão, e a mesma superfície que era a base da poltrona, virava bancada, ou qualquer coisa que desse na telha, variando com a função que nossa imaginação permitisse.
Quando chegamos ao cruce do vilarejo de Aparício, a chuva se fez, mas já estávamos abrigados. Era mais um malogrado posto, não fosse a localização ainda relevante, com marcas explícitas da decadência que atingira a região.
Foram duas horas em que tomamos café sentados no conjunto único de cadeiras de plástico mais mesa que nos aguardava, agora tão reais, encostado na pequeníssima loja de conveniência. Como frentistas aproveitando o descanso. Além do café, servimos biscoitos, colocamos os casacos e cada qual exercitou suas atividades de dias de chuva, retirei um livro dos alforjes e Caio tratou as fotos que vinha registrando. Dormi sentado agradecendo a ambiência perfeita para uma pausa.
Quando despertei, o grosso da tempestade já havia cessado e uma garoa mantinha a poesia. Personagens rurais atravessavam o posto em tempos descompassados, um grupo de cada vez. Poderíamos tentar uma carona, mas a vontade de prolongar esse intervalo era maior. Javier, o dono do posto era um sujeito estranho, mas tranquilo. Vinha dele o fornecimento da água quente para o café, que aquecia no cômodo por detrás da loja.
Era o meio da tarde. Um caminhoneiro veio ter com a gente: disse que a felicidade estaria em nosso caminho. Concordamos, falei que para mim a felicidade era ali mesmo, como estávamos, nessa tarde de café e chuva: momentos inesperados, inevitáveis e improváveis como esse.
Levantei e busquei um pouco de natureza nos arredores. O entorno era formado por vegetação arbustiva e alguns espaços eram bastante convidativos para que passássemos a noite por ali. Javier disse que sim, poderíamos ficar à vontade e escolhermos o lugar ideal para instalarmos nossas carpas, havia o banheiro se quiséssemos usar.
Não pensamos duas vezes e armamos nossas barracas nesse regalo da mãe natureza, usando o perímetro de uma árvore com seus braços estendidos como um vilarejo que agora nos pertencia, domínio anexado às cadeiras de plástico em frente ao posto.
(…)
No entanto, o banheiro em si era o retrato da decadência e não permitia que fôssemos demasiadamente românticos em relação à natureza humana: um labirinto de paredes que cheiravam a mijo por todos os lados. Não havia luz, então apenas o que entrava pelas janelas superiores desse fim de tarde em um dia nublado era o que revelava os estreitos compartimentos com suas paredes revestidas de musgo, vasos sem tampa, circuito de águas empoçadas pelo chão. O chuveiro era um cano que fazia seu papel como cano. Nenhuma porta velava as aberturas íntimas, como esses vestiários em que não há pudor na exibição dos corpos. Assim, necessitados de um banho, cada qual fez uso de seus conhecimentos estratégicos de sobrevivência. Foi necessário o uso de sandálias muito bem calçadas e lanternas que, ao fim, guiaram os passos à saída o mais breve possível.
(…)
Articulávamos os preparativos para nossa janta, pois com nossa mente imaginativa uma cozinha viria a ser em breve, quando uma visita não agendada pareceu surgir em nossa direção. Era um pequeno garoto que vinha saltitante como uma lebre, não percebendo os lobos que se escondiam nessa moita. Quando se deu conta de que havia alguém instalado ali, deu meia volta revelando um rolo de papel higiênico que trazia em uma das mãos (a outra se manteve em posição de proteção à parte traseira e mais abaixo de suas costas), e voltou correndo ao caminhão de seu pai. Coitado, pobre garoto, mas terrível momento para os viajantes: vinculamos fatos e aromas e uma reflexão mais profunda revelou que a grande árvore do vilarejo era um generoso cagódromo para caminhoneiros, forasteiros e demais interessados. Caio se desequilibrou com essa conclusão e, na escuridão, pisou num desses infortúnios que se camuflavam à terra, sujando sua sandália e espalhando a indesejável revelação na entrada de sua barraca.
Amargo destino. Concordamos que a janta não deveria ser feita nesse banheiro e, perturbados, ainda conseguimos forças para, instalados em nossos móveis plástico embaixo da cobertura do posto, e sem muita poesia, preparar um arroz com azeite e queijo ralado. Javier bebia e fumava com mais dois companheiros lá dentro, transformando a loja de conveniências numa conveniente sala de estar.
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Os acampamentos seguintes passaram a ser em locais abertos e arejados. Em Bajo Hondo armamos as barracas ao lado do galpão metálico que protegia os viajantes dos ventos que vinham do Sul e tínhamos, além disso, a vista para a antiga linha de ferrocarris com sua locomotiva abandonada: haviam formado vilarejos como esse e depois caíram no abandono com a inauguração das autopistas distantes, modernos postos de combustíveis e a popularização dos carros. Os tempos eram outros. Lá fora, o Cruzeiro do Sul testemunhou o barulho das chapas metálicas e toda a decadente embriaguez dos sonhos de cada um, além do frio noturno que se fez durante a madrugada.
LUÃ OLSEN,
BARILOCHE – Argentina
15.03.18