O Acampamento Fantasma

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A seguir O Acampamento Fantasma, 7º capítulo desta história contada em 10 capítulos, escrita para esclarecer alguns mistérios da Serra do Marumbi e aprofundar outros, onde alguns personagens, lugares e acontecimentos são reais enquanto nomes, datas e outros tantos acontecimentos são fictícios. Tudo junto e misturado durante uma hipotética Travessia Alpha-Ômega.

Leia antes os capítulos: 1 –  A MARIA FUMAÇA,  2 –  A CACHOEIRA DOURADA,   3 –  A TRILHA,   4 –  O SOCORRO,   5 –  A ALDEIA  e    6 –  A TEMPESTADE.

 

                        – Falta muito Aldo? Não suporto mais andar.
 
                        – Tem que agüentar até encontrarmos algum lugar mais ou menos plano e seco.
 
Subiram pela encosta do Morro da Mesa até quase o topo e passaram a circundá-lo pela lateral com receio de serem atingidos por algum raio no cume. Isto exigia uma picada com exaustivo trabalho de facão. Varavam moitas intrincadas de macega e taquara numa encosta inclinadíssima para evitar as duas grandes pedras do cume exposto. O movimento o mantinha aquecido, mas Anna estava congelando no vento e na chuva. 
 
Alcançaram uma encosta repleta de enormes pedras cobertas pela floresta, algumas do tamanho de pequenas casas, com profundos sulcos entre elas. Grandes o suficiente para se abrigarem se não fosse o vento gelado assoviando pelos canais. Desceram zigzagueando pelo labirinto com a água escorrendo pelas paredes e fluindo em cascatas na altura das canelas até desaparecer em sumidouros medonhos. Não poucas vezes precisaram escalar as pedras para fugir de gretas intransponíveis.
 
Ficaram felizes com a aproximação do selado onde as árvores os protegiam do vento apesar da lama escorregadia e dos sucessivos tombos. As depressões no terreno se transformaram todas em lagoas, riachos ou atoleiros. Subiam e desciam pequenas elevações até se verem na encosta de outra montanha. Iniciaram nova escalada usando troncos e raízes das árvores como apoio, quase rastejando.
 
Com a mudança de vegetação e pela força inusitada do temporal perceberam a aproximação de outro cume e já não sabiam se isto era bom ou mau. Teriam que fazer novo e difícil contorno para se distanciar dos raios, mas a tempestade começava a arrefecer e decidiram correr este risco. Cruzaram por sobre o cume povoado de macega alta, intrincada e duríssima, se espremendo entre os ramos e os galhos cortantes. 
 
Longos trechos andando agachados, de gatinhas, deitados de peito escorregando na lama e por fim alcançaram uma espécie de canaleta descendo a montanha. A orientação contradizia a bússola, mas ao menos podiam se erguer sobre as pernas novamente e caminhar para baixo. A montanha ditava as normas e pouco importava o desejo dos homens.
 
Vertia água de ambos os lados da canaleta e corria fluída pelo chão, desaparecia por entre paus e pedras para ressurgir mais a frente com maior volume. O vento encanado subia o morro aprisionado pelas paredes laterais e se chocava com os dois moribundos descendo aos tropeços em meio ao caos de troncos podres e degraus de raízes. 
 
A escuridão da noite precoce dificultava ainda mais o avanço truncado por tantos obstáculos. As pernas fraquejavam e faziam paradas cada vez mais prolongadas, mas depois de atravessar uma depressão com água pela cintura e escalar com as unhas um barranco barrento se viram no interior de um bosque com árvores altas, retas e espaçadas. O vento assoviava entre elas e se não fosse o piso encharcado poderiam passar a noite ali. 
 
Cruzaram o bosque a procura de um lugar adequado para armar acampamento e sem encontrar nenhum se depararam com um trecho alagado de mata de galeria. No centro havia um riacho tranqüilo de águas negras sobre o fundo plano de areia.  Cheio demais pela chuva, mas sem corredeiras e isto indicava estarem num planalto relativamente extenso entre as montanhas.
 
Deveria haver algum lugar aceitável nas proximidades para acampar e percorreram o riacho com água pelos joelhos examinando com as lanternas a margem alagada de um lado e a barranca do outro. 
 
Finalmente visualizaram o lugar perfeito numa pequena clareira pouco afastada da barranca do riacho. Alto e distante o suficiente para não ser inundado, plano e limpo para conter até duas barracas, longe o bastante das árvores altas para que o vento não as derrubasse sobre suas cabeças a noite. 
 
Aldo tratou de limpar o terreno extirpando raízes salientes e galhos caídos enquanto Anna descansava as pernas doloridas debaixo da chuva que novamente engrossava. Rapidamente amarrou sua lona plástica azul entre as árvores e com isto providenciou um amplo abrigo. Abriu as mochilas fora da chuva e ao lado montou a pequena barraca da Anna. 
 
Molhados até a medula congelavam no vento e imóveis certamente cairiam vítimas da hipotermia. Era necessário e urgente descartar as roupas encharcadas e despiram-se sem pudor, ajudando-se mutuamente a secar os corpos. Na barraca trataram de entrar nos sacos de dormir, que viajaram protegidos nas embalagens plásticas, e juntaram seus corpos para produção de calor.
 
A pequena barraca oferecia proteção satisfatória apesar das goteiras produzidas pela montagem apressada e aquecia rapidamente o ar segregado em seu interior. Pouco demorou em se dedicarem as tarefas seguintes na escala de prioridades para a sobrevivência. Massagear mãos e pés até novamente o sangue circular pelas extremidades dos corpos e encontrar, em meio à bagunça, algumas peças de roupa seca o suficiente para ajudar na tarefa.   
 
Aldo comprovava o que só havia imaginado, existia de fato um corpo de criança acoplado ao rosto angelical de Anna. Os seios diminutos e a perturbadora ausência de pelos púbicos a aproximava perigosamente de suas fantasias veladas. Nelas jovens adolescentes, aos pares ou em trios, se entregavam a carícias íntimas com olhar ausente ou distante. Nunca as encarava diretamente nos olhos, mas Anna, ao contrário, tinha o olhar penetrante e decidido que o amedrontava e freava seus impulsos. Estava vulnerável e dependente de seus serviços para sobrevivência, mas não passiva e dominada pelas circunstâncias. Demonstrava protagonismo nos atos sem disfarçar certa arrogância nas palavras.
 
                        – Renan deve estar seguro na Estação, mas Oscar me preocupa bastante.
 
                        – Não sei que bicho mordeu o Renan pra enlouquecer daquele jeito. – respondeu Aldo – Mas não queira estar na pele do Oscar agora.
 
                       – Você nunca botou muita fé nele.
 
                      – Não é só isto. – mostrando no mapa – Mesmo conseguindo descer daquela montanha com segurança, veja quanta estrada tem que andar para chegar a algum lugar habitado!
 
Conversavam fervendo dois pacotes de macarrão instantâneo para aquecer também o estômago.
 
                        – Estamos na base da montanha do avião e depois é quase só descida até a civilização. No cume já encontraremos rastros de gente.
 
                       – Não quero mais saber deste avião por um bom tempo. 
 
                      – É, acho que já passamos pela pior parte e uma chuva destas não pode durar muito mais. Amanhã será difícil vestir aquelas roupas molhadas!
 
                      – Pelados e largados! Não te lembra aquele programa de tv?
 
Quase esquecem o clima de tensão depois de alimentados e aquecidos apesar da umidade extrema. A barraca é um casulo protetor e uma fina película de nylon os isola do caos exterior. O clima se descontraia gradativamente. Homens pensam em sexo até no velório da sogra e Aldo sofria com suas dúvidas, complexos antigos e atuais desejos. 
 
“Ataco ou não? Amanhã será tarde demais!”
 
Aqueles olhos determinados e brilhantes o confrontavam com sua mal disfarçada insegurança que o aprisionava numa vida solitária de fantasias com adolescentes ingênuas. 
 
O apagar das lanternas fez desaparecer também aquela última barreira que o desencorajava e freava sua iniciativa. Na escuridão podia mergulhar na fantasia com suas ninfetas submissas onde todos seus desejos eram permitidos. Soltou a imaginação e as ações acompanharam na prática um roteiro previamente definido.
 
                        – Que é isto Aldo? Ficou louco, pare com isto!
 
Tomada de surpresa para reagir de pronto, sufocada pelo peso do adversário e imobilizada pelo saco de dormir passou a debater-se freneticamente. Lutava como um animal acuado pelo predador, mordendo e arranhando com uma das mãos enquanto a outra procurava qualquer coisa solta pelo chão da barraca. 
 
O agrediu com o fogareiro e com as panelas, gritava e urrava sem parar, mas pouco podia contra a força desproporcional do agressor que se enfurecia diante da inesperada resistência. Instintos primitivos afloravam das entranhas mais profundas de seus cérebros. Agora a odiava com a força da natureza crua, queria sufocá-la, queria seu corpo inerte. Aquilo se transformou numa luta de vida ou morte, insana.
 
Depois de minutos infinitos afrouxou o abraço. Imediatamente encolheram-se em cantos opostos da barraca contra o nylon úmido e gelado. Aldo ainda sentia o aço frio penetrando fundo entre suas costelas. Uma, duas, três vezes seguidas e o sangue quente vertendo dos ferimentos. Notou o braço esticado com o canivete suíço marcando a distância entre eles e viu aqueles olhos verdes flamejantes brilhando no escuro. Não eram os olhos de Anna, eram olhos terríveis que lhe prediziam um destino fatal.
 
Correu descalço pela mata, dominado pelo pânico, caiu no riacho e por ele seguiu em desespero. O peito latejando em chamas debaixo da chuva fria. Sua fuga foi interrompida por grandes pedras desalinhadas e bordas afiadas em meio a troncos podres e musgo. Arrastou-se por cima delas até cair numa greta escondida. 
 
Livre da chuva podia ouvir a água escorrer por debaixo dele a uma profundidade indeterminada. Sobre sua cabeça centenas de aracnídeos fedorentos exalavam um cheiro ácido quando acidentalmente tocados. Uma massa disforme em constante movimento.
 
Anna não dormira um só minuto nas ultimas 24 horas. Acompanhou pingo a pingo o final da chuva e com o coração aos saltos se armava a cada ruído da floresta. Os pássaros foram os primeiros a anunciar o começo de um novo dia. A noite interminável finalmente era vencida pelas primeiras luzes do amanhecer. Lentamente o sol vencia as trevas gotejantes e Anna encheu-se de coragem para olhar fora da barraca. Não encontrou Aldo debaixo da proteção do toldo como esperava e se desesperou.
 
Passou a noite inteira lutando contra sentimentos conflitantes. Poderia ter cedido ao inescapável para o apaziguamento da situação, mas foi tudo tão rápido e inesperado. Agira por impulso e já se questionava. Tinha ainda nítida memória de todas as vezes que flertara com o Aldo para enciumar o Oscar no dia anterior. Talvez lhe devesse aquilo e pouco lhe custaria, era o poder feminino para dominar a selvageria masculina, mas como esquecer que o havia esfaqueado na luta? 
 
Percorreu os arredores a procura do Aldo sem encontrar nenhum vestígio. Chamou, gritou e só obteve o silêncio como resposta. Percebeu movimentos furtivos no interior do bosque e os beija-flores vieram lhe fazer companhia nas margens do riacho que já se transformava completamente. Antes escuro e fundo se apresentava agora límpido e transparente, fluindo levemente sobre um fundo de areias brancas. Aqui e acolá brilhavam lindas flores de bromélias, vermelhas como sangue. 
 
Sentada sob o toldo percebia a vida pulsando ao seu redor. Debaixo de cada folha caída movia-se um inseto, um pequeno camaleão a observava de um galho próximo e um ratinho curioso se aproximava furtivamente para encarar aquela estranha figura que invadiu seu território.
 
Assustou-se com os urros distantes de um bugio avisando que a floresta tinha dono e chorou sua solidão. Na barraca ainda tinha alguma erva e muita comida disponível para saciar a larica subseqüente. Sentia-se abandonada e cansada demais para se mover. Sua mente entregava-se ao sono mergulhada em alucinações. 
 
A chuva retornava e desaparecia. Procurava Renan pelos campos imersos na neblina densa e irritava-se com a teimosia de Oscar e seus caprichos inúteis. Criança mimada que não sabia ouvir um não sem fazer birra. Incomodava-se ao se sentir observada pelo Aldo sempre tão estranho e distante. Percebia algo de malévolo naqueles olhos arregalados e doentios querendo penetrar nas mentes para saber o que pensavam dele. Muito inseguro por dentro da carapaça externa de falso Indiana Jones. 
 
A chuva se intensificava e raios voltavam a castigar os cumes da serra. Trovões rolavam como trens desgovernados sobre vales e montanhas. Relâmpagos iluminavam a escuridão com flashes cegantes.
 
                      – Atenção TWR, aqui PP-SDJ 190 na rota 270.
 
                      – Ouvindo SDJ.
 
                      – SDJ ultrapassou 032 de SBBI há 2 minutos e estabilizando.
 
                      – Ok! SDJ faça a aproximação para pouso na…
 
Viu a explosão e o fogo percorrendo a cabine. O cume do morro arrasado e fumegante com pedaços de metal, malas arrebentadas e poltronas espalhadas na chuva. Ouviu os gemidos, o choro e sentiu a dor dos sobreviventes em meio à confusão de corpos estirados no chão preto. Roupas e pedaços de corpos pendurados nos ramos nus da vegetação devastada. 
 
Ouviu batidas sincopadas na fuselagem rasgada da aeronave e contou 25 corpos dispersos, entre vivos e mortos. Uivos tristes e cheiro de pólvora na sombra da noite. Acompanhou o helicóptero de resgate inçando a maca fustigada pelo vento e se surpreendeu com os olhos abertos de Renan dentro do saco plástico preto. 
 
Oscar acordava na escuridão fria fitando apavorado os cintilantes pontinhos verdes brilhantes que se aproximavam aos pares. Aldo a sufoca novamente e a barraca transborda com o cheiro doce do sangue quente emplastando o saco de dormir, suas mãos e seu rosto.
 
Desperta do pesadelo banhada em suor gelado, apavorada, sem compreender os limites da realidade. Não está mais sozinha, a tarde já se foi pela metade e duas fadas flutuam a poucos passos de distância da porta da barraca. Duendes correm por entre as árvores altas numa divertida brincadeira de pega-pega. Melhor descansar por ali mais uma noite, fazer outra viagem e partir pela manhã com a alma lavada. 
 
O vento passando suave pelos troncos eretos do bosque sussurram alguma canção de ninar ao entardecer e as fadas se aconchegam para dormir num ninho de passarinhos.
 
 
Continua no capítulo 8 – O AVIÃO DA SADIA
 
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Sobre o autor

Julio Cesar Fiori é Arquiteto e Urbanista formado pela PUC-PR em 1982 e pratica montanhismo desde 1980. Autor do livro "Caminhos Coloniais da Serra do Mar", é grande conhecedor das histórias e das montanhas do Paraná.

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